Banho "detox" para os pés só desintoxica sua carteira

Questão de Fato
26 fev 2020
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dinheiro

A ideia de que vivemos imersos num banho de “toxinas” – termo muito mal definido, já que, a partir de determinada dose, qualquer molécula ou elemento químico existente pode se mostrar tóxico – é uma das mentiras mais lucrativas do século 21 (se quiser saber maia sobre doses e toxicidade, confira aqui). O grau de má-fé dos que lucram com ela varia: tomar um suco de couve com maçã e água de coco pode até ser uma experiência interessante, embora a rigor não “desintoxique” nada, mas coisas como o Ionic Detox Footbath realmente só existem para tirar gordura da carteira dos incautos. 

Caso nunca tenha ouvido falar sobre o “produto”, ele está ganhando fama graças à imagem a seguir, que, vista sem o contexto adequado, parece mesmo bem impressionante:

 

DETOX_PE

 

Segundo os fabricantes, a cor da água muda porque as “toxinas” do corpo estão saindo pelos poros dos pés do voluntário ali. E de fato, se você testar o produto com seus próprios pés, a água mudará de cor, e a associação mais rápida que nos vem à mente é de que algo ruim está saindo da gente. Mas a verdade é que o banho para os pés detox iônico serve, no máximo, como pretexto para uma explicação interativa em aulas de química/física sobre eletrólise.

Caso você já tenha comprado, pretenda comprar ou conheça algum centro de estética que realize o procedimento, faça um experimento bem simples: ligue o aparelho sem que os pés de ninguém estejam dentro da bacia. Resultado? A água também mudará de cor. E não é porque o ambiente está carregado de “toxinas”. A explicação é bem mais simples.

 

Como funciona?

O produto completo é composto de uma bacia, que precisa ser enchida com água morna e sal, além de dois eletrodos, que podem ser de cobre e ferro, por exemplo. Ao ligar o aparelho na tomada, uma corrente elétrica empurra elétrons de um eletrodo para o outro, tendo a água salgada como meio. Começa também um processo conhecido como corrosão, que lança na água metal extraído de um dos eletrodos, ou elementos químicos que compõem as ligas de aço que fazem parte das peças do produto. O acúmulo desses metais, como ferro, cobre, manganês, entre outros, muda a cor da água. 

Além disso, gases como oxigênio, cloro e hidrogênio também são liberados, por isso as bolhas. Portanto, mesmo que você não coloque os pés na bacia, a água irá borbulhar e mudará de cor, que pode variar de um marrom escuro a esverdeado, dependendo do metal utilizado nos eletrodos, da fonte da água, quais as ligas de aço presentes e por quanto tempo o aparelho opera.

Agora, se quiséssemos fazer um teste um pouco mais rigoroso, poderíamos medir a concentração de diversos elementos químicos presentes na água antes e depois de utilizar o aparelho, com ou sem os pés imersos. Poderíamos também utilizar água destilada ou água da torneira. E um exame ainda mais rigoroso poderia avaliar se o banho iônico detox é capaz de remover elementos potencialmente tóxicos das pessoas pelos pés. Ou, até mesmo, acelerar a saída desses elementos pela urina e pelos cabelos. Seria um trabalho imenso. Ainda bem que um grupo de cientistas já fez isso pra gente.

 

Ético, mas imperfeito

O estudo, realizado por pesquisadores canadenses para avaliar o conceito do banho iônico, foi dividido em duas fases (I e II).  O objetivo da Fase I foi estabelecer qual a contribuição da máquina para a liberação de Elementos Potencialmente Tóxicos (EPTs). O experimento foi feito com ou sem os pés dos voluntários imersos em três tipos de água: salgada, destilada ou da torneira. Na parte “com pés” do teste, os voluntários utilizaram o banho de pé iônico uma vez por semana, por 30 minutos, durante 12 semanas consecutivas.

A Fase II tinha vários objetivos, incluindo se o banho poderia (1) remover efetivamente os EPT através dos pés dos participantes; (2) aumentar a liberação de EPT através da urina; (3) aumentar a liberação de EPT nos cabelos dos voluntários. O estudo passou pela avaliação de um comitê de ética e foi financiado pela Holistic Health Research Foundation, uma organização que busca promover o entendimento científico de terapias ditas complementares e alternativas.  

FASE I: Os resultados são apresentados em várias tabelas, e divididos por etapas. Primeiro, mostra-se a mudança na concentração de alguns elementos químicos antes e depois de o aparelho ser ativado em água destilada, e sem pés imersos. Após o uso do aparelho por 30 minutos, a água mudou de cor e a concentração dos elementos cromo, cobre, cobalto, ferro, manganês, molibdênio, níquel e silício aumentou significativamente. Houve aumento de EPT, com destaque para o alumínio, antimônio, arsênio e cádmio. Utilizando água da torneira, os pesquisadores também reportaram um aumento de EPT, com uma concentração significativamente maior de antimônio,  arsênio e cádmio. 

O teste com os pés dos voluntários imersos no banho foi feito apenas utilizando água da torneira, e os pesquisadores observaram mudança na coloração da água e constataram que a presença dos pés não alterou significativamente a concentração de EPT. Ou seja, pôr ou não pôr os pés na água não influencia em praticamente nada o resultado final, quanto à presença dos elementos químicos analisados.

Repetindo: as “toxinas” aparecem na água mesmo quando ninguém põe os pés lá. É razoável concluir, portanto, que elas não saíram “pela sola dos pés” de ninguém.

FASE II: A análise de elementos químicos na urina e no cabelo dos participantes não foi conclusiva. No geral, não houve alterações significativas na eliminação de EPT tanto nas amostras de cabelo quanto nas de urina. 

Na conclusão do estudo, os autores reconhecem várias limitações, como a falta de controle no transporte das amostras e o baixo número de participantes. Mas também destacam que todas as análises foram feitas por laboratórios independentes e de referência para esse tipo de teste. Além disso, os laboratórios não foram informados quanto à fonte de água analisada e ao protocolo de coletada das amostras. Portanto, quem conduziu a análise da água não sabia se ela tinha vindo de um experimento que comparava situações diferentes. Isso é importante para evitar que preconceitos ou expectativas afetem o modo como cada amostra é manipulada, o que poderia interferir nos resultados. 

Por fim, os autores deixam claro que o estudo foi uma prova de conceito sobre o banho detox iônico, e afirmam que não há evidências de que os banhos iônicos ajudem a promover a eliminação de supostos elementos tóxicos do corpo. Além disso, observam que o aparelho, por si só, pode liberar quantidades mínimas de EPT na água quando ligado, embora seja improvável que causem danos ou resultem no aumento da absorção de material tóxico pelos pés dos participantes. 

Sem ética e perigoso

Mascarar esse tipo de equipamento com algo que soe como ciência é jogada de marketing. Os fabricantes jogam algumas palavras que fazem o espectador pensar “nossa, isso parece científico” e, principalmente, divulgam depoimentos de pessoas que juram ter melhorado da noite para o dia após o primeiro uso do aparelho mágico.

O artigo científico que mostrou que as “toxinas” saem do próprio aparelho, não dos pés do usuário, foi publicado em novembro de 2011. Em 2014, o fabricante do mesmo produto utilizado naquele estudo foi procurado por um grupo que vai pelo nome “The Thinking Moms' Revolution (TMR)”, algo como “A revolução das mães pensantes”, que também gostaria de pesquisar as propriedades medicinais do equipamento. Dentre outras atividades reportadas no site, a TMR dedica-se a promover o uso da homeopatia e a fazer campanhas contra vacinas

No caso do banho detox, o grupo avaliou a eficácia do produto no tratamento de crianças diagnosticadas com autismo. A primeira parte do estudo foi publicada no blog da TMR. Sim, o estudo não foi publicado em uma revista científica, revisada por outros cientistas. Não que isso seja um critério absoluto de qualidade, mas ter o estudo avaliado por especialistas antes de apresentá-lo ao público costuma ser uma boa ideia. Mas este é, de longe, o menor dos problemas do “estudo”.

A eficácia da desintoxicação iônica dos pés com o intuito de “curar o autismo” foi avaliada pelo TMR-ATEC Survey, que é um questionário de avaliação diagnóstica de 77 itens, desenvolvido por Bernard Rimland e Stephen Edelson, no Autism Research Institute. Segundo os autores do estudo, o questionário foi preenchido por avaliadores especializados. Com base nos resultados obtidos deste questionário, os autores concluem que a desintoxicação é um elemento essencial no processo de recuperação do autismo. E continuam com a frase:

Esses resultados estabelecem alta confiança de que o uso continuado do sistema de banho para desintoxicação IonCleanse® pode ser usado como uma ferramenta eficaz no tratamento do Transtorno do Espectro do Autismo.”

O questionário usado é, de fato, reconhecido por diversos centros de pesquisa e adotado para avaliar o efeito das intervenções em pacientes diagnosticados com autismo. Porém, a maneira que o estudo foi desenhando é, no mínimo, incorreta:

Dos participantes do estudo, 50% foram selecionados aleatoriamente para receber as sessões de banho iônico nos pés, e 50% fizeram parte do grupo de controle, que não recebeu o tal tratamento. As avaliações pré- e pós-banho iônico foram realizadas utilizando o questionário para todos os participantes, e os avaliadores não sabiam de antemão quais crianças receberam o escalda-pés e quais não. 

Os autores alegam que não foi viável montar um grupo placebo, pois era possível observar que a água mudava de cor durante a terapia real. Cada paciente fez um total de 32 tratamentos. O teste de pré-avaliação foi realizado sete dias após o início da terapia e a pós-avaliação, concluída sete dias após o último tratamento. Além disso, o estudo foi declarado (pelos próprios autores) como um ensaio clínico de risco não significativo. 

Aqui já observamos problemas gravíssimos. A questão do placebo poderia ter sido resolvida com facilidade. Que tal produzir uma máquina que solte tinta colorida e faça bolhas, mas que não seja o banho iônico? Porém, o mais grave é o estudo não ter passado por um comitê de ética. Crianças são uma população vulnerável, especialmente crianças com necessidades especiais. Não cabe aos autores, pessoalmente, avaliar se o estudo representa, ou não, risco. 

Fora todo esse problema, temos um grave defeito conceitual básico, brilhantemente definido pela médica americana Harriet Hall como “Ciência da Fada-do-Dente”: pesquisar os efeitos e propriedades de um fenômeno antes de estabelecer se o fenômeno de fato existe. Você pode medir quanto dinheiro a Fada-do-Dente deixa embaixo do travesseiro, se ela deixa mais dinheiro para o primeiro ou o último dente, se a recompensa é maior se você deixar o dente em um saquinho de plástico em vez de embrulhado em uma folha de seda. Você pode até obter resultados reproduzíveis, estatisticamente significativos, produzir gráficos, tabelas e achar que aprendeu alguma coisa. 

fadinhas

Mas você não aprendeu o que acha que aprendeu, porque não se preocupou em estabelecer, antes de embarcar no programa de pesquisa, se a Fada-do-Dente é real. Essa é uma preocupação que aparece com clareza no primeiro estudo. Já no trabalho realizado pela TMR, ninguém se seu ao trabalho de determinar se esses banhos para os pés podem mesmo puxar toxinas para fora do corpo. Também não se pesquisou se essas "toxinas" sem nome têm mesmo algo a ver com autismo. Nem se os pacientes recrutados estavam em pontos comparáveis do espectro autista.  O produto continua à venda, pela internet, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Nas redes sociais, aparecem naqueles anúncios que perseguem os pobres incautos que caem na asneira de pesquisar alguma palavra-chave relacionada, como “detox”. Mas as únicas “toxinas” que o produto vai tirar de você são as que estão na tinta usada para imprimir o seu suado dinheirinho.

Luiz Gustavo de Almeida é doutor em microbiologia e pesquisador do Laboratório de Genética Bacteriana do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, coordenador nacional do Pint of Science no Brasil

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