
O número de notícias (e até mesmo artigos revisados por pares) dizendo que a "espiritualidade" é boa para você, que as pessoas que são mais espirituais vivem vidas melhores e mais significativas, que a espiritualidade ajuda a alcançar melhores resultados de saúde, mesmo no caso de doenças graves; que a profissão médica e os sistemas de saúde em geral são negligentes quando não levam em conta as “necessidades espirituais” dos pacientes... Bem, é impressionante.
Não dá para folhear uma seção de Saúde ou Bem-Estar de uma revista ou jornal sem tropeçar em algo assim. Não faz muito tempo, o Conselho Federal de Medicina (CFM) até instalou uma Comissão de Saúde e Espiritualidade.
Dadas a forma como esse material aparece na mídia – "Hora de integrar as necessidades espirituais nos cuidados de saúde", "Espiritualidade ligada a melhores resultados de saúde, cuidados do paciente" são manchetes até comedidas, mas a nota do G1 sobre a nova comissão abre falando em “milagres” – pode-se imaginar que as pessoas que se agarram aos seus cristais de energia ou contam suas contas do rosário vivem vidas mais longas e mais felizes do que materialistas e ateus; que a oração tem resultados benéficos de saúde verificados em estudos duplo-cegos; que pagar por aulas de ioga ou meditação pode reduzir tumores malignos.
Que manter crenças sobrenaturais diminuirá sua pressão arterial.
Nada, no entanto, poderia estar mais longe da verdade. O truque está na definição de "espiritualidade" que esses artigos e notícias usam, ou presumem, e que não é a do senso comum, de crença na existência de um mundo espiritual além do material, ou da adesão a alguma religião que prega realidades sobrenaturais. Em vez disso, a “espiritualidade” que faz bem, de acordo com o que atesta um editorial da Lancet Regional Health Europe , é a seguinte:
“De acordo com a Conferência Internacional de Consenso sobre Cuidados Espirituais na Saúde, a espiritualidade é a maneira como os indivíduos buscam o significado último, propósito, conexão, valor ou transcendência. A espiritualidade pode incluir religião organizada, mas vai além, incluindo maneiras de encontrar um sentido último, conectando, por exemplo, com a família, comunidade, natureza ou coisas que as pessoas consideram sagradas”.
Colocando essa definição bastante generosa para trabalhar e substituindo-a na minha frase de abertura, “pessoas que são mais espirituais vivem vidas melhores e mais significativas”, temos “pessoas que encontram mais significado em suas vidas vivem (...) vidas mais significativas”, o que pode soar bastante tautológico. Se você definir espiritualidade como “conexão significativa” — qualquer tipo de conexão significativa, sem necessidade de sobrenatural —, você não está falando sobre a palavra da língua portuguesa, “espiritualidade”, mas sobre outra coisa.
O Dicionário Houaiss define “espiritualidade” como “qualidade do que é espiritual; característica ou qualidade do que tem ou revela intensa atividade religiosa ou mística; religiosidade, misticismo”. Já “espiritual” significa, pelo mesmo dicionário, “concernente ao espírito; próprio do espírito ou a ele pertencente; semelhante ao espírito; desprovido de corporeidade; imaterial; relativo à religião, a misticismo, a crenças; sobrenatural, místico; tudo que não é material”.
Como não há nada de incorpóreo, místico, ou sobrenatural em coisas como “família, comunidade, natureza” – todas dotadas de uma corporalidade muito concreta –, algo está errado. E realmente, quando você expande a definição de espiritualidade para incluir toda e qualquer "maneira de encontrar o sentido último", você está definindo (digamos) revolucionários marxistas ortodoxos, ateus e materialistas, empedernidos em seu compromisso inabalável com a futura utopia comunista, como seres altamente espirituais.
Até mesmo os magnatas de Wall Street, que podem ver o dinheiro como sagrado e ter, na sua multiplicação, o propósito definitivo de suas vidas são, nesse sentido, profundamente espiritualizados. Os lamas de Armani.
O curioso é que nem sempre foi assim. Por exemplo, a edição de 2001 do Oxford Handbook of Religion in Health cita uma definição de 1997 de “espiritualidade”, proposta precisamente para uso em pesquisa em saúde, que veio com esta ressalva: “o termo sagrado não deve ser aplicado a” coisas como família ou empregos, mas reservado apenas para conceitos com “atributos divinos” (negrito meu).
Então, bem, por que a mudança? Por que o conceito se tornou tão mais inclusivo nas décadas seguintes?
Só posso especular, mas o fato saliente é que — estudo após estudo, ano após ano — todas as vezes em que algum resultado científico encontrou quaisquer supostos benefícios de crenças/práticas sobrenaturais (ou “divinas”, ou “espirituais” no sentido mais honesto e estrito), os resultados demonstraram-se falsos (como o infame estudo de fertilidade Lobo/Wirth), totalmente ridículos ou melhor explicados por fatores puramente seculares, como o apoio de amigos e da comunidade e/ou vários outros fatores de confusão muito materiais.
Um “fator de confusão” é algo que produz o mesmo efeito do fenômeno que você está investigando, mas que não é o fenômeno em si: você pode achar que a calçada molhada confirma sua hipótese de que choveu recentemente, mas na verdade foi seu vizinho que usou uma mangueira para empurrar lixo para a sarjeta.
Um exemplo mais específico: a velha história de que “as pessoas que vão a cultos religiosos toda semana são mais saudáveis do que aquelas que não vão” não leva em conta que as pessoas precisam de um mínimo de saúde para sair de casa e chegar ao culto, para começo de conversa, enquanto o conjunto daqueles que não frequentam a igreja incluirá a maioria dos doentes graves, que estão acamados ou confinados em casa, ou internados em hospitais.
Então, para salvar a noção quentinha-fofinha (e politicamente conveniente, comercialmente útil, ótima peça de marketing, grande clickbait) de que crenças e práticas sobrenaturais/religiosas são relevantes para a saúde, tornou-se necessário expandir o conceito de "espiritualidade" ao estilo Humpty-Dumpty, até que passasse a incluir todos os fatores de confusão que realmente têm algum efeito e, assim, preservar um protagonismo de fachada para o sobrenatural e a religião.
(Humprty-Dumpty é um personagem do livro Alice Através do Espelho que, a certa altura, diz: “Quando eu uso uma palavra, ela significa exatamente o que eu quero que signifique - nem mais, nem menos.”)
A coisa ficou tão fora de controle que um estudo recente descobriu que na Dinamarca as pessoas têm várias necessidades “espirituais”. E, eis que as necessidades religiosas apareceram por último nessa lista!
Uma coisa é reconhecer que as pessoas precisam de paz interior, conexão com os outros e significado, e que levar em conta tais necessidades deve fazer parte de qualquer tratamento médico decente.
Outra, bastante diferente, é se referir a essas necessidades pelo rótulo guarda-chuva “espiritual”. Fazer isso, especialmente ao criar manchetes para a mídia, é fraude publicitária: você abre seu estudo deixando as pessoas pensarem em cristais, fantasmas, orações e fadas, mas depois vai lá admitir, pelo quinto ou sétimo parágrafo ou em uma nota de rodapé, que participar ativamente um clube de xadrez, cuidar dos gatinhos da praça ou colecionar selos seria tão eficaz quanto.
E a situação é confusa, porque outros ramos da ciência ainda usam "espiritual" no sentido pré-Humpty-Dumpty: por exemplo, há um estudo mostrando que as pessoas que são espirituais no sentido estrito – fazendo, por exemplo, treinamentos para acessar vidas passadas ou ler auras – tendem a ser mais presunçosas e excessivamente confiantes. Esta “espiritualidade” é a mesma que a outra? Narcisismo e “sentido último” estão relacionados? Talvez alguém devesse fazer um estudo.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)