
Não existe razão para imaginar que o uso de máscaras durante a pandemia de COVID-19 tenha agravado casos da doença ou contribuído para um aumento no número de mortes. Uma avaliação estatística publicada recentemente, sugerindo o contrário, já teve algumas de suas principais limitações apontadas (um resumo bom, mas não exaustivo, pode ser encontrado aqui).
O trabalho compara excesso de mortalidade durante a pandemia ao uso (autodeclarado) de máscaras em 24 países europeus, e calcula que essas coisas têm um grau razoável de superposição: países em que as pessoas diziam usar máscara com mais frequência tiveram, de acordo com os cálculos dos autores, mais chance de ver mais mortes.
Existem dois pontos aí que invalidam, logo de cara, qualquer tentativa de usar esses resultados para afirmar que as máscaras estão implicadas no excesso de óbitos: o primeiro é a natureza observacional do estudo.
Detectar que duas coisas andam juntas não permite concluir que uma causa a outra. Por exemplo, tanto a concentração de CO2 na atmosfera quanto a expectativa de vida da população brasileira subiram ao longo do século 20 – de fato, o coeficiente de correlação entre as duas variáveis é 0,993, um grau de associação muito mais extremo do que o 0,477 encontrado para máscaras e mortes, calculado no artigo recente. Alguém vai dizer que mais CO2 aumenta a longevidade nos trópicos?

Os próprios autores do estudo reafirmam, seguidas vezes, que o formato observacional não permite concluir causalidade.
O segundo ponto, que vem sendo muito pouco discutido, é que o dado sobre máscaras utilizado se refere ao uso autodeclarado – proporção da população que declarava usar máscara sempre que saía de casa. Ou seja, a correlação detectada foi entre número de pessoas que dizem usar máscara e excesso de mortes, não entre uso efetivo de máscaras e excesso de mortes.
Pode parecer uma diferença irrelevante, mas não é. Fora as questões da memória e do autoengano (a pessoa pode até achar que usa máscara o tempo todo, mas na verdade vive esquecendo de colocá-la), existe aí ainda a armadilha da desejabilidade, quando pessoas respondem a pesquisas não com a verdade, mas com o que acham que o entrevistador quer ouvir, ou com o que acreditam que vai aumentar seu prestígio, ou mentem porque têm vergonha: se um entrevistador do DataFolha parar você na saída do metrô e perguntar se você já jogou lixo na rua, qual seria sua resposta?
No caso do uso de máscaras durante a pandemia, ainda mais em países com fortes campanhas e pressão social pró-máscara, admitir ser relapso pode muito bem ter sido difícil e embaraçoso. Além disso, não há nada nos dados usados que elucide a qualidade do uso da máscara – não adianta 100% da população usar máscara se 90% deixa o nariz de fora.
Correlações não provam nada, mas podem ser sugestivas, isto é, chamar atenção para possibilidades que merecem ser investigadas com instrumentos que, esses sim, vão demonstrar (ou descartar) relação de causalidade. Mas algo que a brincadeira entre CO2 e longevidade ajuda a ver é que, para uma correlação poder ser considerada realmente sugestiva, é preciso haver uma lógica, algum mecanismo empírico plausível, costurando a conexão entre as variáveis: por que o uso de máscaras estaria aumentando o número de mortes? Qual o nexo?
Enfim, correlações não provam relação de causa e efeito, mas podem sugerir fortemente – se houver nexo lógico ou plausibilidade de mecanismo, e se houver controle adequado dos fatores de confusão: fenômenos ocultos que possam estar por trás do aparente compasso entre as variáveis analisadas.
Os autores do artigo afirmam, logo no início, ter dado thorough consideration (algo como “atenção cuidadosa” ou “consideração minuciosa”) a fatores de confusão. Mas ficaram só na promessa.
Controles fundamentais para elementos que poderiam explicar a diferença de excesso de mortalidade entre os países, como características e capacidades do sistema de saúde de cada nação, principalmente a capacidade de reagir a emergências (leitos de UTI, por exemplo), além da distribuição regional das cepas do vírus – algumas mais letais que outras –, não foram incorporados.
O resultado apresentado vai na contramão de uma série de outros trabalhos – como este, que associou o relaxamento do uso de máscaras em Portugal a um aumento nas mortes por COVID-19; este, que associou a obrigatoriedade do uso de máscaras à mitigação da pandemia em comunidades vulneráveis; este, estimando o número de vidas salvas pela obrigatoriedade do uso de máscaras na cidade de Nova York. E também este levantamento recente, publicado em fevereiro, que avaliou quase 450 estudos publicados para concluir que “o uso de máscaras em locais públicos demonstrou reduzir significativamente a incidência de COVID-19, as mortes por COVID-19 e outras mortes relacionadas à pandemia de COVID-19”.
Assim como trabalhos recentes sobre cloroquina e ivermectina, o novo estudo sobre máscaras foi cooptado como arma retórica por grupos inconformados com um ou mais dos elementos da suíte de políticas públicas – uso de máscaras, distanciamento, lockdowns, vacinas – que se tornou consensual durante a recente pandemia. Mais preocupante é a constatação de que o estudo sobre máscaras parece ter sido concebido e executado exatamente para se prestar a tal papel.
A conclusão que os autores oferecem (“em nível populacional, as máscaras não apenas não conseguiram prevenir a transmissão da COVID-19 na Europa, mas também podem ter contribuído para efeitos adversos imprevistos”) é muito mais forte do que os dados e a plausibilidade biológica da associação permitem afirmar.
Parte significativa das referências mobilizadas para sustentar a hipótese de que as máscaras são inúteis ou perigosas é feita de autocitações (remetendo a outros artigos dos mesmos autores) ou não compreende artigos científicos, mas peças de opinião assinadas por jornalistas conservadores. Artigos que apontam eficácia de máscaras (por exemplo, este e este) e constam das referências não são discutidos ou enfrentados de modo substancial.
A própria estratégia de apresentar coeficiente de correlação de 0,477 numa tabela com os coeficientes de outras correlações em que o nexo causal é plausível (por exemplo, vacinação, que se correlaciona negativamente com excesso de mortes numa taxa de 0,659), induzindo a uma ideia de falsa equivalência entre as associações, sugere que estamos diante de retórica, não ciência.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)