
Em 16 de fevereiro, a Quaest publicou sua mais recente pesquisa sobre as classes sociais brasileiras, realizada com 2.000 respondentes em 2024. Os principais resultados foram: 66% se consideram de classe média; quase todos concordam que o Estado deve garantir saúde e educação gratuitas.
Contudo, a descoberta mais impactante foi o aumento dos preços dos alimentos: 80% dos entrevistados, tanto da classe baixa quanto da alta, afirmaram que encher o carrinho ficou mais caro.
Segundo matéria publicada na BBC News Brasil, a alta nos preços de itens essenciais, como café (39,6%), óleo de soja (29,2%), carne (20,8%), leite longa vida (18,8%) e, mais recentemente, ovos, é um dos fatores responsáveis pela queda de popularidade do governo Lula.
Diversas medidas têm sido sugeridas para contornar o problema. Por exemplo, a Associação Brasileira de Supermercados (Abras) propôs modos de reduzir o desperdício de alimentos, incluindo a modernização do sistema de prazos de validade para o modelo “Best Before”, uma alternativa ao sistema atual de prazo de validade para produtos perecíveis. No entanto, uma outra pesquisa da Genial Quaest, conduzida neste ano e com 4.500 participantes, mostrou que 63% dos entrevistados são contra a mudança.
Além da visão negativa da sociedade, a venda de produtos fora do prazo de validade é considerada crime, com penas de 2 a 5 anos de detenção ou multa, o que dificulta a implementação dessa proposta.
Embora concorde que um alimento não se torne automaticamente impróprio para o consumo simplesmente porque sua data de validade expira de um dia para o outro, acredito que há inúmeras nuances nesse tema que merecem um escrutínio mais aprofundado – evitando cair na simplificação tosca de rotular a indústria como ruim ou boazinha.
Contudo, antes de aprofundarmos essa discussão, é válido entendermos como funciona o modelo vigente de vencimento.
Data de Vencimento
Para esta questão, estou utilizando como base teórica o novo “Guia para determinação de prazos e validade”, publicado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2024.
No Brasil – diferentemente do que muitos acreditam – não é a Anvisa quem estipula o prazo de validade dos alimentos, mas sim o fabricante, que é responsável por garantir a segurança e a manutenção das características de seus produtos durante esse período.
Podemos definir prazo de validade como “o intervalo de tempo no qual o alimento permanece seguro e adequado para consumo, desde que armazenado e transportado de acordo com as condições estabelecidas pelo fabricante”. Isso significa que o alimento deve permanecer seguro para o consumo durante o armazenamento (ou seja, não causar infecções e intoxicações alimentares) e manter suas características de composição e qualidade.
Com exceção de alguns produtos isentos de registro de data de validade – como frutas e hortaliças frescas, vinhos e produtos de panificação e confeitaria, todos os demais produtos precisam apresentar essa informação no rótulo.
Pensando nos fatores que afetam diretamente a validade do produto, podemos dividi-los em dois grupos:
Fatores extrínsecos: incluem o tipo de processamento; a temperatura de processamento e armazenamento; a exposição à luz; o tipo de embalagem e a atmosfera em que o alimento é armazenado; e a umidade relativa do ambiente.
Fatores intrínsecos: próprios dos alimentos, como características de composição, bioquímicas e presença de microrganismos.
Fabricantes precisam basear o prazo de validade em três fatores principais: (1) a razão nutricional, que garante que as características nutricionais e de composição do produto se mantenham até o final do prazo declarado; (2) a razão de segurança, que envolve identificar e controlar microrganismos patogênicos ou substâncias tóxicas para garantir que o alimento seja seguro para consumo; e (3) a deterioração, que justifica o prazo de validade com base no tempo necessário para que o alimento apresente alterações sensoriais indesejáveis.
A decisão sobre o prazo de validade de um produto deve ser respaldada por documentos e registros que comprovem sua fundamentação, incluindo resultados de testes e experimentos que podem incluir a observação controlada da deterioração do produto por meses ou anos, a exposição deliberada do produto a condições críticas de temperatura e umidade ou ao ataque de microrganismos.
Agora que temos essa informação, surgem novas questões: "o que mudaria no modelo Best Before?" e, ainda mais importante, "esse modelo seria benéfico para o Brasil?"
Modelo Best Before
Segundo João Dornellas, presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), em seu artigo para o Correio Braziliense de 2021, o modelo Best Before é um conceito regulatório que indica um período mínimo em que um produto mantém seu sabor e valor nutricional, desde que armazenado corretamente e com a embalagem fechada. Após essa data, o produto pode ainda ser seguro para consumo, mas deve ser avaliado sensorialmente pelo consumidor, que deve verificar a aparência, o odor e o sabor.
Esse modelo aplica-se a produtos estáveis à temperatura ambiente, com baixa atividade de água (água disponível para processos que levam à deterioração), esterilizados ou embalados a vácuo. Alimentos perecíveis, como leite pasteurizado e carnes in natura, manteriam a data de validade tradicional, enquanto produtos como leite UHT, conservas e macarrão poderiam adotar o modelo Best Before.
Na prática, o modelo funcionaria como uma segunda data de validade, indicando até quando o produto mantém suas características ideais para consumo. Após essa data, o produto ainda seria seguro, embora pudesse apresentar alterações. Por exemplo, bolachas poderiam perder a crocância e o aroma.
De certa forma, isso daria ao consumidor a autonomia para decidir se o produto ainda está próprio para consumo — desde que compreenda os conceitos envolvidos.
Uma pesquisa conduzida em 2019, intitulada "Misunderstood Food Labels and Reported Food Discards: A Survey of U.S. Consumer Attitudes and Behaviors”, investigou como os consumidores dos EUA interpretam rótulos de validade e como isso influencia o descarte de alimentos.
O estudo, que ouviu 1.029 adultos dos EUA, consistiu em uma pesquisa nacional online, representativa da população, abordando a percepção dos consumidores sobre os rótulos de validade, e mostrou um alto grau de confusão sobre o significado de expressões como "Melhor se usado até", "Melhor antes de", "Mais fresco até" (indicadores de até quando se espera que o produto mantenha a qualidade) e "Expira em" e "Consumir até" (indicadores de até quando o consumo é considerado seguro para consumo).
O trabalho reforça a importância da padronização dos rótulos de validade, uma vez que o uso de diferentes expressões pode gerar dúvidas e induzir o consumidor ao erro. A pesquisa também sugere que os rótulos relacionados à segurança alimentar exigem campanhas educacionais mais robustas.
Claro, não se pode generalizar os resultados para o Brasil e presumir que a população enfrentaria dificuldades semelhantes na diferenciação entre os rótulos ("data de vencimento" e "melhor consumir até"), especialmente quando consideramos que, diferentemente dos EUA, os rótulos no Brasil são padronizados e regulamentados. Infelizmente, as pesquisas sobre o tema são escassas em nosso país, sendo o artigo “Influência da data de validade nas decisões de compra e consumo de produtos alimentícios” de Bressan, F. e Toledo, G., o mais pertinente que encontrei. Este estudo examinou a influência da data de validade nas atitudes e decisões de compra e consumo de alimentos.
A pesquisa foi desenvolvida em duas etapas. Na primeira, os pesquisadores realizaram entrevistas para coletar dados qualitativos sobre o conhecimento, atitudes e motivações das pessoas, além de explorar como a data de validade impacta suas decisões de compra e consumo. Na segunda, houve levantamento quantitativo para analisar o conhecimento e comportamento dos consumidores. Os dados foram submetidos a diferentes análises para verificar se há correlação entre os fatores identificados na etapa qualitativa e o objetivo do estudo.
Doze voluntários participaram das entrevistas e apresentaram opiniões divergentes quanto ao conhecimento e à importância da data de validade. Alguns sabiam da presença da data de validade, mas não tinham conhecimento sobre como era determinada, considerando-a apenas como uma referência. Por exemplo, um dos entrevistados comentou: “De modo geral, o que observo é que os alimentos continuam bons para o consumo mesmo depois do vencimento da data de validade”.
Mas houve participantes que, além de compreenderem como as datas de validade eram determinadas, mencionaram que a observam sempre.
A segunda etapa da pesquisa envolveu 199 participantes, sendo 54,3% mulheres e 45,7% homens.
Entre os achados mais relevantes, destaca-se uma relação significativa entre "conhecimento sobre a data de validade" e o "comportamento de consumo de alimentos". No entanto, não houve relação entre o conhecimento e o consumo de alimentos com validade vencida, o que sugere que, embora o conhecimento influencie o comportamento alimentar, ele não é determinante.
Além disso, não foi observada uma relação significativa entre o conhecimento sobre riscos associados à data de validade e a conferência da data ao comprar e consumir alimentos, indicando que os consumidores baseiam suas decisões mais na aparência do alimento e em sua experiência pessoal do que nos riscos potenciais de consumir alimentos com validade vencida.
Embora ambos os artigos mencionados apresentem limitações importantes, acredito que eles destacam um ponto crucial para a implementação do modelo Best Before no Brasil. Antes de qualquer coisa, é fundamental promover ações educativas para que a população consiga compreender o significado de cada rótulo. Isso ajudaria a minimizar os riscos de intoxicações alimentares.
Também é necessário que as indústrias, agências reguladoras ou pesquisadores independentes conduzam estudos para garantir que, mesmo após o vencimento da data Best Before, os alimentos não apresentem microrganismos patogênicos em quantidade suficiente para causar intoxicações alimentares.
Estudo publicado na Foods, em 2020, intitulado “Microbiological Quality of Foodstuffs Sold on Expiry Date at Retail in Portugal: A Preliminary Study”, aborda essa questão. Trata-se de uma pesquisa realizada em Portugal e que avaliou os indicadores microbiológicos de higiene e deterioração de diferentes produtos alimentícios vendidos em supermercados na data de vencimento. Para avaliar os indicadores, foi realizado um estudo preliminar envolvendo 94 amostras de produtos de origem animal. Com base nos resultados microbiológicos, os alimentos foram classificados como satisfatórios ou não satisfatórios.
Como esperado, os produtos processados apresentaram as menores contagens microbiológicas em comparação aos produtos crus.
No total, 70,21% das amostras (67 de 94) falharam em pelo menos um critério microbiológico. Das 26 amostras de alimentos crus, 25 falharam em pelo menos um critério (96,15%). Quanto aos alimentos processados, das 68 amostras analisadas, 42 falharam em pelo menos um critério (61,76%).
Os autores destacam que a data de validade é indicada com uma ampla margem de segurança, mas que, mesmo assim, fatores como alterações na cadeia de frio ou manuseio inadequado podem comprometer a segurança dos alimentos.
De maneira geral, os resultados indicam que o risco de intoxicação alimentar é baixo, uma vez que bactérias patogênicas não foram detectadas. No entanto, os microrganismos não patogênicos estavam elevados em mais de 70% das amostras, indicando que as condições de armazenamento e manuseio não foram satisfatórias, e não são adequadas ao longo da vida útil dos produtos.
Como muitos fabricantes propõem a extensão do prazo de validade de produtos alimentícios, é necessário destacar que, com base nas análises, isso só poderia ser sugerido para produtos processados. Ainda assim, essa prática deveria ser cuidadosamente avaliada.
O estudo tem limitações, incluindo uma amostra reduzida. Mas permite refletir sobre um aspecto importante na adoção do Best Before. Por mais que se afirme que essa medida aumentará a autonomia do consumidor para verificar se o produto está adequado para consumo, além de combater o desperdício alimentar, é fundamental que a indústria desempenhe seu papel, conduzindo estudos paralelos para definir claramente os limites da segurança do produto.
Então, isso significa que sou contra uma possível mudança? Na verdade, não. Uma das minhas atividades favoritas é percorrer supermercados, observar as prateleiras dos produtos próximos ao vencimento e me vangloriar, ao chegar em casa, da quantidade de descontos que consegui. Além disso, o modelo parece ter alguma eficácia no combate ao desperdício, o que poderia ajudar a resolver o problema do descarte de 46 milhões de toneladas anuais de alimentos no Brasil. De acordo com Dornellas, 68% das perdas ocorrem em casa e 13%, no varejo. Se o sistema for implementado, pode-se reduzir até 10%. No entanto, como o desperdício de alimentos é um assunto denso e envolve outros fatores, além de programas de outros países, pretendo discuti-lo de forma mais aprofundada em um artigo separado.
Gostaria de reforçar algo que mencionei anteriormente: caso esse modelo seja implementado, além de um controle adicional mais rigoroso por parte dos fabricantes e de uma resolução da Anvisa que defina a quais alimentos seria aplicável, é imprescindível a adoção e execução de programas educacionais para que os consumidores adquiram mais conhecimento sobre o que cada expressão significa e a quais sinais devem ficar alertas na hora do consumo de produtos com a expressão “melhor consumido até”. Além disso, como mencionado no final do artigo de Bressan, F., seria interessante adotar ações educacionais nos pontos de venda. Um exemplo seria o exame de produtos com validade vencida ao microscópio — embora eu acredite que isso nunca ocorrerá, é uma ideia interessante.
Mauro Proença é nutricionista
REFERÊNCIAS
QUAEST. 66% dos brasileiros consideram serem classe média. 2025. Disponível em: https://quaest.com.br/quaest-66-dos-brasileiros-se-consideram-classe-media/.
CARRANÇA, T. Medidas para baratear comida demoram e não beneficiariam Lula neste mandato, diz economista. 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cj65p8563elo
ABRAS. ABRAS reforça propostas ao Governo para combate à inflação. 2025. Disponível em: https://www.abras.com.br/clipping/noticias-abras/118148/abras-reforca-propostas-ao-governo-para-combate-a-inflacao.
QUAEST. Aprovação do Governo Lula: Janeiro/2025. Disponível em: https://quaest.com.br/wp-content/uploads/2025/01/GENIALQUAESTJAN25.pdfhttps://quaest.com.br/wp-content/uploads/2025/01/GENIALQUAESTJAN25.pdf.
ANVISA. Guia para determinação de prazos de validade de alimentos: Versão 2. de 03 de junho de 2024. Disponível em: https://regoola.io/wp-content/uploads/2024/07/1Guia-no-16_2018_Versao-2.pdf.
DORNELLAS, J. Best before: opção contra o desperdício de alimentos. 2021. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2021/11/4966948-best-before-opcao-contra-o-desperdicio-de-alimentos.html.
NEFF, R. et al. Misunderstood food date labels and reported food discards: A survey of U.S. consumer attitudes and behaviors. Waste Manag. 2019 Mar 1:86: 123-132. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30770169/.
BRESSAN, F. e TOLEDO, G. Influência da data de validade nas decisões de compra e consumo de produtos alimentícios. Estudios Gerenciales 36(157): 439-453. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/348107027_Influencia_da_data_de_validade_nas_decisoes_de_compra_e_consumo_de_produtos_alimenticios.
MAIO, R.; DÍEZ, J. e SARAIVA, C. Microbiological Quality of Foodstuffs Sold on Expiry Date at Retail in Portugal: A Preliminary Study. Foods. 2020 Jul 13;9(7):919. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32668583/.
ABRAS. Como o “Best Before” contribui para o melhor aproveitamento dos alimentos. 2023. Disponível em: https://www.abras.com.br/clipping/noticias-abras/114110/como-o-best-before-contribui-para-o-melhor-aproveitamento-dos-alimentos.