
Com essas palavras, o advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay, encerrou sua sustentação oral no caso que ficou conhecido como “o crime da 113 Sul”. O caso envolve um triplo homicídio ocorrido em 28 de agosto de 2009 em um apartamento na quadra 113 da Asa Sul, uma área nobre de Brasília. As vítimas foram José Guilherme Villela, então ministro do Tribunal Superior Eleitoral, sua esposa, Maria Carvalho Mendes Villela, e a empregada doméstica Francisca Nascimento Silva. Os três foram brutalmente assassinados com mais de 70 facadas.
Inicialmente, dois homens confessaram o crime: Leonardo Campos Alves, ex-porteiro do prédio, que alegava ser maltratado pela família, e seu sobrinho, Paulo Cardoso Santana. Mais tarde, eles mudaram suas versões. Passaram a envolver um terceiro, Francisco Mairlon Aguiar, e afirmaram que o crime teria sido encomendado por Adriana Villela, filha do casal. Os três homens foram condenados e cumprem pena por homicídio qualificado.
Kakay atua como advogado de Adriana Villela, condenada pelo Tribunal do Júri de Brasília a 61 anos e 3 meses de prisão. Contudo, a defesa busca a anulação do julgamento, alegando nulidades processuais e que a decisão dos jurados foi manifestamente contrária às provas.
O julgamento do recurso teve início no último dia 11 de março de 2025, na Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O ministro Rogério Schietti, relator do processo, votou pela manutenção da decisão do Tribunal do Júri, mas o julgamento foi suspenso por um pedido de vista do ministro Sebastião Reis.
Vidente e tortura
O caso da 113 Sul tem várias nuances, algumas grotescas, cada uma merecendo análise própria. Três merecem ser mencionadas aqui:
* A delegada inicialmente responsável pela investigação, Martha Vargas, incluiu no inquérito uma pista baseada no relato de uma “vidente”, Rosa Maria Jaques. Foi a própria vidente quem a procurou para “revelar” a localização da chave do apartamento – a suposta prova que levaria aos culpados. Seguindo essa pista, a delegada prendeu três jovens que moravam no local onde a chave foi encontrada. A vidente chegou a afirmar ainda que uma foto do ex-ministro José Guilherme Villela, publicada em um jornal, piscou para ela, confirmando sua intuição.
* A delegada Martha Vargas foi posteriormente condenada e presa por manipular provas e ordenar a tortura dos suspeitos. Além de basear a investigação no relato da vidente, foi acusada de plantar a tal chave do apartamento na casa indicada pela vidente. A delegada também teria ordenado torturas físicas e psicológicas, como sufocação com plástico e banhos frios, para forçar os suspeitos a confessar o crime. Eles foram posteriormente libertados.
* A Innocence Project Brasil, organização que combate condenações injustas, assumiu em 2024 a defesa de Francisco Mairlon Aguiar, que está preso há 14 anos. Em depoimento recente, Paulo Cardoso Santana, que confessou o crime, admitiu ter mentido ao incriminar Francisco Mairlon Aguiar e Adriana Villela. Segundo ele, os delegados “fizeram de tudo” para forçá-lo a dar essas declarações.
Este artigo não pretende se pronunciar sobre a culpabilidade ou inocência de Adriana Villela, nem aprofundar os detalhes alarmantes sobre a condução da investigação policial.
Em particular, a relação promíscua do Judiciário brasileiro com o espiritismo já foi discutida nesta revista e em outros lugares. Nesse contexto, vale mencionar também o espaço que as constelações familiares conquistaram no Judiciário — um tipo de “terapia” não reconhecida pelo Conselho Federal de Psicologia , baseada na crença de que vidas passadas influenciam nosso comportamento. Esse episódio acrescenta mais um capítulo a essa verdadeira história de terror.
Exploramos aqui uma quarta dimensão do caso: a admissibilidade de um laudo pericial baseado em metodologia ainda não aceita pela comunidade científica. O comentário irônico de Kakay reproduzido acima, mencionando os prêmios Nobel de Química e Física, refere-se à conclusão do Laudo nº 15.000, elaborado pelos papiloscopistas do Instituto de Identificação da Polícia Civil do Distrito Federal (II-PCDF).
O controvertido laudo apresenta o resultado de um exame de datação de um vestígio encontrado na cena do crime: um fragmento de impressão identificado como a palma da mão esquerda de Adriana Villela.
O laudo
A antiga Coordenação de Crimes contra a Vida (Corvida) da PCDF, responsável pela investigação, solicitou aos papiloscopistas que determinassem se um fragmento de impressão papilar poderia ter sido produzido em 13 de agosto de 2009.
O vestígio havia sido encontrado em uma porta de armário no escritório do apartamento onde ocorreram os crimes. Ele foi coletado em 2 de setembro de 2009, cinco dias após o evento.
A referência à data de 13 de agosto veio da declaração de Adriana Villela, que afirmou ter estado na casa dos pais 20 dias antes da coleta da impressão. A datação do vestígio ajudaria a diferenciar as versões da defesa e da acusação: se o exame estimasse a idade do vestígio em torno de 20 dias, a perícia se tornaria uma prova a favor da defesa; se essa idade fosse estimada em torno de 5 dias, a perícia seria uma prova a favor da acusação.
O exame realizado pelos papiloscopistas partiu da premissa de que as características físicas das linhas de deposição de materiais de uma impressão papilar mudam ao longo do tempo devido a fatores ambientais, e que essas mudanças são detectáveis e mensuráveis. As impressões papilares se formam quando as cristas das papilas dérmicas entram em contato com uma superfície – no caso, a porta do armário. Com o tempo, a morfologia (altura e largura) e a qualidade das linhas sofreriam alterações devido à degradação provocada por fatores como temperatura e umidade.
Para analisar essa variação, os papiloscopistas realizaram dois estudos experimentais. O primeiro experimento foi feito no local do crime, enquanto o segundo ocorreu em laboratório, sob condições controladas. Eles buscavam “identificar a relação entre tempo, umidade e temperatura sobre impressões palmares apostas em superfície de madeira revestida com tinta esmalte impermeável”.
Os ensaios foram feitos com doadores voluntários. Cada um deles teve duração de 24 dias. Em ambos, usaram a mesma superfície (porta do armário) e as mesmas técnicas empregadas para a revelação e coleta da impressão palmar de Adriana Villela. Ainda, pediram que as revelações fossem realizadas pelo mesmo perito.
O Laudo 15.000 concluiu que, depois de 24 dias, as impressões palmares sofreram alterações físicas, com redução na largura das cristas e piora na qualidade da impressão. Com base nisso, os peritos avaliaram que, se a impressão palmar de Adriana Villela tivesse sido depositada 20 dias antes de sua revelação, como ela afirmou, deveria apresentar sinais de degradação similares aos resultados experimentais das impressões reveladas com “idade” de 20 dias.
Segundo a avaliação dos papiloscopistas, a impressão palmar questionada (coletada na cena do crime no dia 2 de setembro) tinha sinais de degradação mais similares aos resultados experimentais das impressões reveladas entre 3 e 9 dias após a sua produção.
Peritos contestam
O juiz da Vara do Tribunal do Júri de Brasília solicitou que o Laudo nº 15.000 fosse analisado pelos peritos criminais do Instituto de Criminalística (IC) da Polícia Civil do Distrito Federal. Havia duas questões em debate: a primeira, sobre a competência dos papiloscopistas do Instituto de Identificação para a realização de um exame de datação de vestígio; a segunda, sobre a validade da metodologia de datação utilizada.
A disputa sobre a competência decorre, em parte, de um antigo conflito entre essas categorias profissionais. Os papiloscopistas são policiais civis vinculados aos institutos de identificação estaduais e geralmente mais próximos aos delegados. Os peritos criminais, por sua vez, estão ligados aos institutos de polícia científica, como os institutos de criminalística, e historicamente lutam por maior autonomia em relação à estrutura policial. Essa rivalidade entre papiloscopistas e peritos criminais se intensificou com a aprovação da Lei 12.030/2009, que determinou a exigência de formação específica para os peritos oficiais de natureza criminal, classificando-os em três categorias: peritos criminais, peritos médico-legistas e peritos odontolegistas.
A discussão sobre quem deveria realizar um exame de datação é relevante. Afinal, determinar a idade de uma impressão digital e determinar a sua origem são procedimentos completamente distintos. Enquanto o exame para determinação de origem envolve, via de regra, a comparação visual entre as imagens de uma impressão papilar questionada e a impressão papilar de um suspeito, o exame para determinação de idade exige conhecimentos em química, física e biologia.
Mas o principal ponto de controvérsia foi o conteúdo do Laudo nº 15.000, não sua autoria. Segundo o Parecer Técnico dos peritos do IC, “o trabalho realizado pelo Instituto de Identificação não possui sustentação técnico-científica suficiente para concluir a idade do fragmento de impressão papiloscópica questionado”. Os peritos destacaram que a própria bibliografia citada no Laudo nº 15.000 reconhece a falta de uma metodologia confiável para determinar a idade desse tipo de vestígio.
Os peritos criminais do IC também apontaram diversos problemas na condução dos experimentos, que comprometeriam a fiabilidade das conclusões sobre a impressão palmar de Adriana Villela. O parecer destacou:
* A falta de uma análise química da impressão palmar de Adriana Villela, essencial para prever seu envelhecimento;
* A desconsideração de variáveis como a força e duração do toque, se a mão deslizou, se estava limpa ou contaminada com algum produto;
* O uso de um vaporizador para manter a umidade do ambiente sem variação, o que não reflete condições reais; e
* A margem de erro dos testes, que não permitia descartar a hipótese de que, mesmo passados mais de 20 dias, as variáveis medidas poderiam ter permanecido inalteradas.
O laudo não diz o que importa
Um problema adicional pode ser apontado no Laudo nº 15.000: a ausência de interpretação dos resultados na conclusão. Os papiloscopistas se limitaram a descrever os dados obtidos, sem oferecer uma análise do que esses achados significam. A conclusão, apresentada na página 32 do laudo, é resumida em três pontos:
“[O fragmento de impressão palmar]
1. Não apresenta características morfométricas e qualitativas de impressões palmares reveladas com 20 dias transcorridos da sua aposição;
2. Apresenta características morfométricas (largura das cristas), percentual do número de cristas presentes e qualidade da impressão (delimitação das bordas, das cristas e contraste entre cristas e sulcos) similares às características dos fragmentos revelados com 3 e 9 dias transcorridos de sua aposição;
3. Não apresenta características morfométricas (larguras das cristas) similares àquelas dos fragmentos apostos e imediatamente revelados (t0).”
A literatura de ciência forense e a série de padrões internacionais ISO 21.043 consolidaram o entendimento de que, em geral, um exame pericial é composto por quatro etapas: coleta, análise, interpretação e comunicação. A etapa de interpretação – ausente no Laudo nº 15.000 – consiste em avaliar o significado dos achados periciais no contexto do caso, considerando as dúvidas que o requisitante deseja esclarecer.
Um exemplo simples: em uma investigação de furto a uma residência onde houve a quebra de uma janela, a polícia localiza um suspeito duas horas após o crime e encontra fragmentos de vidro em sua roupa. O suspeito nega relação com o furto, mas o exame pericial mostra que os vestígios de vidro na roupa do suspeito e o vidro da janela quebrada são indistinguíveis com os métodos analíticos utilizados.
A mera apresentação desse resultado analítico ao requisitante do exame não é suficiente para auxiliar o investigador ou o julgador a determinar se o suspeito esteve na cena do crime. A coincidência entre as características das amostras de vidro terá maior ou menor valor incriminatório a depender de uma série de fatores, como, por exemplo, a raridade do vidro analisado e a profissão do suspeito: fosse ele o funcionário de uma vidraçaria, a presença de fragmentos de vidro em sua roupa teria um peso muito menor.
Muitos autores argumentam que a essência da atividade pericial está na etapa de interpretação, pois é o momento em que ele mais contribui com o sistema de Justiça. A redação do Laudo nº 15.000 se limitou a informar uma diferença (ponto 1), uma similaridade (ponto 2) e uma ausência de similaridade (ponto 3), sem avançar para uma interpretação conjunta desses achados.
Os achados deveriam ser interpretados seguindo a chamada “abordagem avaliativa” (evaluative reporting), um método para a avaliação de evidências em que o perito informa qual hipótese – acusatória ou defensiva – é corroborada pelos achados periciais, e qual é a força dessa corroboração. Uma forma de visualizar essa abordagem é pensar em uma balança de pratos: um prato recebe as provas da acusação, o outro recebe as da defesa. O papel do perito é informar em qual prato a prova pericial deve ser colocada e qual é o seu peso. Quanto maior o peso da prova pericial, maior é a sua capacidade de modificar as posições dos pratos da balança; quanto menor o peso, menor essa capacidade.
Adotados nos exames de genética forense desde os anos 1990, os laudos avaliativos vêm sendo progressivamente utilizados em outros ramos da perícia, como os exames de verificação de locutor e de comparação de imagens faciais. Em particular, sua adoção também é recomendada em exames de datação na fase processual.
Ao não apresentar uma interpretação dos resultados analíticos na conclusão do Laudo nº 15.000, os papiloscopistas, na prática, delegaram a tarefa de interpretação dos achados periciais ao julgador, que não dispõe dos conhecimentos científicos necessários para avaliar o quanto os dados pesam a favor ou contra uma ou outra hipótese.
O que diz a comunidade científica?
Posteriormente à produção do Laudo nº 15.000, um dos profissionais que assina a peça, Rodrigo Meneses de Barros, e outras duas investigadoras brasileiras, uma delas também papiloscopista, publicaram um artigo sobre datação de impressões palmares, na revista Science and Justice. Nele, os próprios autores reconhecem que se trata de uma metodologia ainda em fase de testes:
“À medida que a impressão latente envelhece, mudanças significativas na proporção relativa de seus componentes podem afetar a morfologia das cristas, tornando a morfometria uma possível ferramenta para avaliar o envelhecimento de impressões digitais latentes. Considerando a pesquisa ainda muito limitada na área, este estudo busca avaliar a morfometria das cristas de impressões palmares latentes ao longo do tempo, com o objetivo de identificar um padrão de envelhecimento” (p. 403, tradução livre, ênfase adicionada).
O trabalho acima é citado em um artigo de revisão sobre o tema, publicado em 2016 na revista Forensic Science International. Neste trabalho de revisão, Aline Girod e outros pesquisadores em ciência forense explicam que muitos métodos já foram propostos para estimar a idade de impressões digitais. Alguns, como é o caso do estudo do Laudo nº 15.000, analisam mudanças visuais em características físicas (morfométricas) das impressões.
Contudo, os autores questionam a crença amplamente difundida de que a observação visual da qualidade de um fragmento de impressão latente pode ser determinante para estimar sua idade. “Quanto melhor parece, mais recente é” – é uma máxima que costuma ser repetida. Um dos casos mais intrigantes relatados no artigo envolve um assalto a uma igreja, em que impressões coletadas na cena do crime pareciam recentes, mas, na realidade, haviam sido deixadas por um indivíduo que estava preso com base nas mesmas impressões, coletadas um ano antes.
Outros métodos mencionados na revisão são baseados em propriedades químicas, utilizando métodos analíticos para verificar a composição da impressão papilar ao longo do tempo. Há também técnicas que consideram informações contextuais da investigação, como a frequência de limpeza da superfície onde o fragmento foi encontrado. Apesar da variedade de métodos propostos na literatura relevante, os autores sustentam que “nenhum desses métodos é atualmente avançado o suficiente para aplicação prática”.
Os autores explicam que a determinação da idade de um fragmento de impressão digital é influenciada por diversos fatores, não se limitando a condições ambientais como temperatura e umidade. Elementos como as características do doador (idade, nutrição), as condições da deposição (pressão, duração do toque), a técnica de revelação utilizada (pó de fuligem, sensor sem contato) e o tipo de superfície onde a impressão foi deixada (vidro, plástico, metal, madeira) também desempenham um papel fundamental. E assim concluem:
Estudos mais recentes, publicados em 2020 e 2025, continuam em busca de métodos confiáveis para estimar a idade de vestígios de impressões digitais – o que indica que tais métodos ainda não estão prontos para uso como prova nos processos criminais. As passagens abaixo confirmam essa conclusão:
Judiciário sem filtro
A declaração do advogado Kakay, com a qual iniciamos este texto, não era novidade para os ministros do STJ. A defesa de Adriana Villela já havia contestado a admissibilidade do Laudo nº 15.000 tanto nesta Corte quanto em outras instâncias do Judiciário, questionando seus aspectos formais (por ter sido elaborado por papiloscopistas) e materiais (sua confiabilidade científica).
Para a defesa, o Laudo nº 15.000 do Instituto de Identificação era ilícito e imprestável, e não poderia ser utilizado para fundamentar a decisão de pronúncia. Além disso, argumentou que essa questão deveria ser analisada pelo juiz nessa fase do processo, seguindo a lógica do sistema norte-americano, em que a relevância e a confiabilidade da prova científica são avaliadas em uma etapa processual que antecede a apresentação das provas aos jurados leigos.
A pronúncia é considerada uma etapa de filtragem do processo, na qual o juiz verifica a materialidade do crime e a existência de indícios suficientes de autoria ou participação, encaminhando o caso para julgamento pelo júri. No caso de Adriana Villela, a decisão de pronúncia se baseou em três elementos: testemunhas que relataram ter ouvido dizer que ela teria encomendado o crime; depoimentos contraditórios de dois corréus, que só a mencionaram na cena do crime posteriormente e em circunstâncias suspeitas; e a conclusão do Laudo nº 15.000 sobre o tempo em que se produziu a impressão palmar de Adriana.
Tanto o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) quanto o STJ decidiram manter a pronúncia de Adriana Villela. No entanto, a decisão não foi unânime nos dois tribunais. O relator do caso no STJ, ministro Sebastião Reis, considerou que o laudo, por ter sido contestado pelo Instituto de Criminalística (IC), não era suficiente para determinar a autoria dos crimes. Contudo, em voto divergente e escrevendo pela maioria, o ministro Rogério Schietti afirmou:
E acrescentou:
Não seria demais imaginar que, em tal situação, os jurados tenderiam a confiar nos peritos com melhor retórica, o que não necessariamente coincidiria com os peritos com melhores fundamentos científicos em seus argumentos.
O que decidiu o STF
Insatisfeita, a defesa entrou com um Habeas Corpus (HC n. 174.400/DF) no STF, alegando que usar o Laudo nº 15.000 como base para a pronúncia configurava ilegalidade. Argumentou novamente que os papiloscopistas não têm competência funcional para produzir esse tipo de prova, e que a datação de impressões digitais é um método pouco confiável. Também defendeu que a validade do laudo deveria ser analisada pelo juiz que preside o Tribunal do Júri, e não pelos jurados; e pediu a anulação da pronúncia ou, alternativamente, a exclusão do laudo do processo.
Em decisão monocrática, o ministro Luís Roberto Barroso concedeu parcialmente o pedido da defesa com um voto contraditório. Ele afirmou que o Laudo nº 15.000 não era ilícito, mas determinou que o juiz presidente do Tribunal do Júri informasse aos jurados que o documento foi “subscrito por sete técnicos papiloscopistas, que não são considerados peritos oficiais”, cabendo a eles decidirem o peso que deveria ter no conjunto das provas. Ou seja, além de decidir sobre a culpa ou inocência da ré, os jurados (leigos) deveriam acumular a atribuição de avaliar a validade científica da metodologia de datação de impressões papilares proposta pelos autores do Laudo nº 15.000.
As duas partes recorreram: a acusação alegou que o esclarecimento aos jurados poderia ser mal interpretado, enquanto a defesa sustentou que isso não era suficiente e que a prova deveria ser excluída. Por unanimidade, o STF decidiu que os papiloscopistas podem atuar como peritos em um exame de datação; e decidiu – vencido o ministro Barroso – não manter o esclarecimento aos jurados, por considerar que isso poderia enfraquecer e influenciar o valor a ser atribuído ao laudo dos papiloscopistas.
A discussão final foi conduzida pelo então presidente do STF, ministro Luiz Fux. Pelo teor da conversa entre os ministros, percebe-se que o foco estava exclusivamente na questão da competência dos papiloscopistas, sem abordar a distinção entre o exame de datação e o exame de identificação papiloscópica, nem a ausência de uma metodologia de datação de impressões digitais validada pela comunidade científica relevante.
Curiosamente, o ministro Fux encerrou com o comentário: “Vou juntar um voto escrito. Fiz questão de me aprofundar neste estudo”.
O voto do ministro Luiz Fux
Em seu voto, Fux fez amplas considerações sobre a perícia papiloscópica e sua aceitação na jurisprudência brasileira. No entanto, suas observações ignoraram a diferença entre a identificação de impressões digitais, realizada por papiloscopistas, e a datação de vestígios, sejam eles papiloscópicos ou não. Essa confusão fica evidente quando o ministro Fux afirma que “exigir que a perícia papiloscópica seja realizada por um profissional diferente dos papiloscopistas equivale a defender que o laudo pericial seja elaborado por alguém sem expertise para analisar a matéria controvertida”.
A incoerência se aprofunda quando ele alega que tal exigência violaria os critérios de controle da qualidade prova científica. Neste ponto, cita o precedente Daubert v. Merrell Dow Pharmaceuticals, Inc. da Suprema Corte dos Estados Unidos (EUA). Contudo, sua citação não reproduz com precisão os critérios estabelecidos neste precedente e ignora dois pontos fundamentais da decisão da Suprema Corte: primeiro, que cabe aos juízes – e não aos jurados – a função de garantir a validade científica das provas, vista como um critério de admissibilidade; segundo, que a análise deve focar não apenas nas conclusões dos laudos, mas principalmente na metodologia utilizada para produzi-los.
Em Daubert, a Suprema Corte dos EUA estabeleceu cinco critérios que o juiz pode usar para avaliar a validade científica e a fiabilidade da metodologia utilizada pelos peritos: (1) se a teoria ou técnica pode ser testada e já foi testada; (2) se foi publicada em revista revisada por pares; (3) se existe uma taxa de erro conhecida ou potencial; (4) se existem padrões para sua aplicação; e (5) se existe aceitação na comunidade científica relevante.
O caso Daubert envolveu a admissibilidade do testemunho de um perito que alegava que os defeitos congênitos dos filhos da Sra. Daubert foram causados pelo uso do medicamento Bendectin. A opinião do perito foi rejeitada porque se baseava em uma reanálise de estudos anteriores que não foi publicada em um periódico com revisão por pares.
Em seu voto, o ministro Fux mencionou apenas os critérios (1), (3) e (5) acima, ignorando os demais pontos estabelecidos pela Suprema Corte. A omissão do critério (2) é particularmente irônica, pois foi justamente a falta de revisão por pares que levou à exclusão da prova no caso Daubert. Ainda mais contraditório é que os próprios critérios que ele mencionou – taxa de erro e reconhecimento pela comunidade científica relevante –, se analisados com rigor, justificariam a exclusão do Laudo nº 15.000 antes de sua apresentação aos jurados.
Ciência ou opinião?
No caso da 113 Sul, a maioria dos ministros tratou a divergência entre os peritos como uma simples diferença de opiniões que deveria ser resolvida pelos jurados. No entanto, nem todas as opiniões têm o mesmo peso: algumas são mais bem fundamentadas do que outras. Há diversos sinais – como aqueles mencionados no caso Daubert – que, se considerados, podem ajudar até mesmo um observador leigo a identificar qual lado tem mais credibilidade.
Se o Judiciário tivesse alguma formação em metodologia científica, por exemplo, saberia que existe uma hierarquia de evidências na literatura acadêmica. Por exemplo, um artigo de revisão sistemática tem mais valor do que um estudo isolado.
O Judiciário brasileiro ainda é tímido em sua função de guardião da boa ciência. Em vez de aplicar critérios de admissibilidade com base em fundamentos epistemológicos, prefere aceitar provas de baixa fiabilidade e deixar a avaliação para o julgador do caso. Este não é um caso isolado. Uma decisão de 2022 do STJ, que curiosamente também faz referência ao precedente Daubert, admitiu o uso de uma perícia de autópsia psicológica. O relator, ministro Rogério Schietti, reconheceu que se tratava de um “meio de prova ainda não padronizado pela comunidade científica e fundado, inegavelmente, em aspectos subjetivos”, mas entendeu que a preservação da cadeia de custódia e a possibilidade de contraditório seriam suficientes para justificar sua admissibilidade.
No direito brasileiro, as provas em geral são excluídas do processo criminal quando há violação de direitos fundamentais, como a inviolabilidade do domicílio, a intimidade ou a integridade física. No entanto, não se reconhece que provas periciais sem fundamento científico são irregulares e devem ser inadmissíveis. Afinal, a falta de fiabilidade de uma informação técnico-científica compromete o direito a um julgamento racionalmente motivado e ao devido processo legal.
Rachel Herdy, Professora Associada, Faculdade de Direito, Universidad Adolfo Ibáñez, Chile
Paulo Akira Kunii, Perito Criminal Federal
Aline Thaís Bruni, Professora Associada, Departamento de Química da Universidade de São Paulo (Ribeirão Preto)