
Não faz muito tempo, quem quisesse informações médicas sobre um assunto - e não quisesse consultar um especialista - tinha que mergulhar em uma vasta e complexa literatura científica, muitas vezes restrita a bibliotecas de escolas de medicina e outras instituições do tipo. O trabalho era tanto que mesmo profissionais de saúde usualmente recorriam aos chamados "vade-mécum" (nome derivado da expressão latina para "vem comigo" ou "vamos juntos"), verdadeiros compêndios, como uma lista de todos os tipos de remédios e seus usos.
O advento da internet, no entanto, trouxe todas estas informações para a ponta dos dedos, e os avanços nos mecanismos de busca facilitaram ainda mais o acesso. Vimos o surgimento do "Dr. Google", e nos últimos anos, com a explosão das redes sociais, a ascensão dos "influencers" em saúde. Com isso, o que já era um problema - a falta de confiança na medicina e na ciência por trás dela; e a busca por tratamentos ditos "alternativos" - ganhou caráter de epidemia. Para qualquer lado que se olhe, especialmente online, tem alguém oferecendo uma solução para qualquer condição.
Câncer? Tome aqui a "cura", seja na forma de bolinhas de açúcar (homeopatia), uma pílula milagrosa (fosfoetanolamina sintética, Krebiozen e tantas outras que surgiram ao longo da história), dietas radicais - com ou sem enemas de café (Terapia Gerson, alguém?) -, um misterioso "protocolo nazista" e mais um mundo de promessas vazias. Processo bem ilustrado na minissérie "Vinagre de Maçã" (Apple Cider Vinegar), em cartaz na Netflix.
Em seis capítulos, o programa conta a história de Annabelle "Belle" Gibson, australiana que ganhou fama dentro e fora da internet alegando tratar durante anos um câncer terminal no cérebro com uma combinação de dieta, exercícios, produtos "naturais" e terapias "alternativas". Detalhe: Belle nunca teve câncer, e tudo não passava de uma grande fraude, que enganou milhões de pessoas, além de grandes empresas como a editora Penguin - que publicou um livro de receitas assinado por ela - e a Apple - que tinha em The Whole Pantry, aplicativo de Belle, um dos destaques de sua loja e planejava incluí-lo como um dos poucos softwares de terceiros pré-instalados para o lançamento de seu Apple Watch, em 2015.
Para além da fraude de Belle, também chama a atenção na minissérie a personagem de Milla Blake. Embora fictícia, ela é supostamente inspirada em outra conhecida influencer de saúde australiana, Jessica Ainscough. Vítima de um tipo raro de câncer, Ainscough - assim como Blake - rechaçou os tratamentos convencionais (no seu caso, a amputação do braço afetado na altura do ombro, após o fracasso de uma quimioterapia experimental) e abraçou terapias alternativas - notadamente, a mencionada Terapia Gerson (na minissérie, oferecida por um certo "Instituto Hirsch"). E, como Belle, usou a internet para contar sua saga, sob o apelido de "The Wellness Warrior" ("A Guerreira do Bem-estar"). Ainscough sucumbiu ao câncer em 2015, cerca de sete anos após o diagnóstico e mesmo ano que a fraude de Belle veio a público.
Do Dr. Google ao Tik Health
De lá para cá, o cenário se agravou. Influenciadores são cada vez mais a fonte de informação escolhida do público - principalmente os mais jovens - e a ferramenta de propaganda preferida das empresas, abocanhando fatias cada vez maiores de seus orçamentos de marketing. Diante disso, também aumenta a preocupação com disseminação de desinformação sobre saúde e promessas vazias por estas figuras no que já foi apelidado de "Tik Health".
Exemplo disso foi estudo publicado no ano passado sobre a promoção de falsas curas de câncer no TikTok. O levantamento aponta que 81% dos 200 conteúdos analisados não eram confiáveis, numa combinação de cinco tipos de narrativas não mutuamente excludentes: relatos de casos anedóticos pessoais de sobreviventes de câncer compartilhando suas histórias de recuperação; profissionais de saúde negacionistas revelando uma "cura milagrosa"; teorias da conspiração expondo a "verdade" sobre instituições médicas "corruptas" e curas milagrosas mantidas em segredo ou suprimidas pelo establishment; mensagens espirituais destacando a importância da fé, religião e do "pensamento positivo" para superar a doença e se curar; e publicações supostamente "informativas" que na verdade oferecem e vendem produtos e serviços para pacientes.
Já mais recentemente um grupo de pesquisadores da Universidade de Portsmouth, Reino Unido, decidiu mapear riscos à saúde representado pelos influenciadores. A revisão da literatura científica sobre o assunto, publicada recentemente no periódico Psychology and Marketing, alerta que o crescente poder dos influenciadores está criando um cenário de consumo em saúde e bem-estar preocupante, com impactos negativos em seis eixos: promoção de produtos prejudiciais; disseminação de desinformação; reforço de padrões de beleza irreais; fomento de uma cultura de comparações; práticas enganosas de consumo; e questões de privacidade.
"Cada vez mais os impactos negativos dos SMIs (sigla em inglês para social media influencers, ou 'influenciadores das mídias sociais') nos indivíduos, comunidades e na cultura digital estão ganhando a atenção do público e pedindo respostas políticas", comentam os autores. "A pesquisa acadêmica precisa acompanhar o ritmo destes desenvolvimentos. Ao revisar as análises existentes e sistematizar os estudos em arcos temáticos, avançamos em uma compreensão mais detalhada dos potenciais prejuízos associados aos marketing de influenciadores e apontamos direções para futuras investigações acadêmicas e respostas regulatórias".
Para tanto, os pesquisadores começam por definir quem afinal são estes chamados "influenciadores". Segundo eles, são indivíduos que conquistam credibilidade em um determinado setor ou nicho de mercado por meio de sua presença online e que, à diferença de celebridades "tradicionais" cuja fama está associada a campos institucionalizados como dramaturgia, música ou esportes, dependem de sua "marca pessoal" e uma interação frequente e consistente com sua audiência. Eles também variam em alcance, indo dos "nano" e "micro" influenciadores, com relativamente poucos seguidores, aos "macro" influenciadores, com uma audiência maciça espalhada em múltiplas plataformas.
Poder parassocial
Muitas vezes vistos como formadores de opinião ou especialistas em seus respectivos campos, os influenciadores também frequentemente fazem revisões e análises de produtos, usando suas interações com os seguidores para influenciar decisões de consumo. Para isso, eles lançam mão de um fenômeno conhecido como relação parassocial, alimentando um sentimento de intimidade em seus seguidores que mimetiza relações reais e desperta conexões emocionais. Algo como responder ao "boa noite" do apresentador do telejornal elevado à décima potência. O sucesso do marketing dos influenciadores depende em grande parte deste mecanismo, que permite cultivar uma audiência leal ao mesmo tempo que mantêm uma aura de autenticidade e originalidade, e assim guiar decisões de consumo.
"Esta dinâmica encoraja os influenciadores e mostrar um estilo de vida glamouroso e de sonhos, cheio de viagens, luxo e aparentes infinitas recompensas", observam os autores. "Estas aparências podem ser inspiradoras para os seguidores, dando a eles acesso a informações que antes estavam limitadas às elites da sociedade. Mas, sob esta superfície brilhante também está uma realidade mais complexa e perturbadora".
Os pesquisadores destacam que à medida que os influenciadores se envolvem com a promoção de marcas, a autenticidade de suas recomendações diminui, e a linha divisória entre uma opinião genuína e o interesse comercial fica cada vez mais tênue. Isto levanta questões éticas, de transparência e integridade, especialmente quando os influenciadores falham em distinguir claramente conteúdos orgânicos de propagandas pagas. Mas, mais que dilemas éticos, o marketing de influenciadores afeta aspectos psicológicos e sociais, moldando percepções de beleza, sucesso e autoestima. Eles se tornam modelos idealizados de comportamento que seus seguidores podem tentar imitar, influenciado sua cognição e levando suas expectativas a níveis irreais.
"O conteúdo curado e perfeito que os influenciadores produzem contribui desta forma para o surgimento de uma cultura de comparação e de padrões inatingíveis, exacerbando questões relacionadas à insatisfação com a imagem corporal, baixa autoestima, e problemas de saúde mental, particularmente em um público jovem e mais impressionável", acrescentam os autores.
Eixos problemáticos
É o caso da promoção de produtos prejudiciais, primeiro dos eixos problemáticos da atuação dos influenciadores identificado pelos pesquisadores. Para além de explorar a confiança dos seguidores para promover escolhas de consumo pouco saudáveis, como bebidas açucaradas, pílulas dietéticas, chás "detox" e suplementos para a perda de peso que podem impactar negativamente a saúde dos seguidores, especialmente se usados sem levar em conta possíveis riscos e efeitos adversos, o próprio comportamento exibido pelos influenciadores pode estimular atitudes danosas da audiência.
Os pesquisadores apontam como exemplo pesquisa de 2024 com estudantes do ensino médio americano que indicaram influenciadores como normalizadores do consumo de álcool na adolescência. Já outro levantamento de 2020 indicou que a maioria dos influenciadores (63,5%) já havia publicado conteúdos relacionados ao álcool, em publicações que invariavelmente mostravam seu consumo de maneira positiva. Mas embora cerca de 20% destas postagens mostrassem claramente as marcas das bebidas, apenas uma pequena fração informou se tratar de conteúdos pagos, e menos ainda traziam alertas para o consumo consciente.
"São achados alarmantes. Estes comportamentos relatados beiram a criminalidade", avaliam os pesquisadores. "Publicações relacionadas ao álcool podem expor menores de idade a este tipo de conteúdo, violando códigos publicitários e leis penais. Tais publicações também podem aumentar o consumo de álcool de uma faixa etária vulnerável".
Outro problema identificado pelos autores é a disseminação de desinformação. Eles destacam que ao estabelecer as relações parassociais, os influenciadores podem ter um apelo que supera o de políticos e celebridades, apesar de muitas vezes não serem mais bem informados ou terem um conhecimento especializado. Entre outros, eles citam um estudo publicado em 2022 que mostrou como os influenciadores podem ser um poderoso meio de propagação de informações equivocadas ou enganosas em saúde. Usando um influenciador fictício que postava desinformação sobre medidas de prevenção da COVID-19, eles fomentaram a desconfiança dos participantes quanto a atitudes como o uso de máscaras para evitar a disseminação do vírus.
"Sem regulamentação e fiscalização, os influenciadores podem explorar seu status privilegiado para direcionar seguidores a crenças e hábitos perigosos", indicam.
Já os três eixos problemáticos seguintes têm forte relação entre si. Para começar, os pesquisadores apontam como os influenciadores reforçam padrões de beleza irreais, citando estudos sobre o uso de filtros para promover ideais de imagens corporais que pode impactar negativamente a autoestima dos seguidores, especialmente mulheres adolescentes e jovens adultas, que diante disso podem adotar dietas extremas ou se submeter a procedimentos estéticos radicais.
Problema que emana principalmente das chamadas influenciadoras de "fitness" ou "bem-estar", com levantamento das postagens de quatro das profissionais com mais seguidores nos EUA publicado ano passado detectando objetificação de corpos em mais da metade delas. Já outro estudo mostrou que a exposição a estas imagens traz efeitos negativos no humor e satisfação com o próprio corpo de mulheres jovens sem levar a qualquer melhoria em sua prática de atividades físicas. Mas os homens também não são imunes, com um estudo de 2020 mostrando como a exposição a imagens de homens de peito nu com musculaturas idealizadas também reduziu a satisfação dos participantes com o próprio corpo quando comparadas à exposição a imagens de moda masculina.
Insatisfação que se estende à vida como um todo com a contínua exposição ao aparente estilo de vida glamouroso dos influenciadores que fomenta uma cultura de comparação. Os autores citam estudos que mostram que quanto mais os seguidores veem estes conteúdos, maiores suas sensações de inadequação e baixa autoestima e mais eles se engajam em comportamentos negativos de comparação social, despertando sentimentos como inveja. Mas, neste caso, não são só os seguidores que sofrem. A pressão para manter uma imagem "perfeita" nas redes sociais e a chamada "economia da validação" - traduzida em números como curtidas, comentários e compartilhamentos - leva muitos influenciadores a crises de ansiedade, depressão e outras questões de saúde mental.
Daí também que alguns influenciadores se envolvem em práticas de consumo enganosas ou fraudulentas. Elas incluem tanto a promoção de produtos sem esclarecer que se tratam de conteúdos pagos quanto a de itens piratas, ilegais, drogas ou outras substâncias proibidas. Uma pesquisa feita no Reino Unido em 2023, por exemplo, mostrou que mais de um quinto (22%) dos ouvidos comprou ao menos um produto falsificado depois que ele foi promovido por um influenciador.
Por fim, há o problema da privacidade. Os pesquisadores destacam que os influenciadores - especialmente os "megainfluenciadores", que podem chegar a milhões de seguidores nas redes sociais - são verdadeiras fábricas de dados, que podem acumular e gerir quantidades enormes de informações pessoais de seus seguidores. Segundo os autores, diversos estudos apontam um comportamento paradoxal dos usuários de redes sociais entre o fornecimento destes dados e o desejo de privacidade, mas, no fim, uma grande quantidade de informação acaba nas mãos de influenciadores. Segundo eles, mesmo que os influenciadores coletem estas informações de boa-fé, a falta de conhecimento sobre cibersegurança e compreensão sobre riscos deixa estes dados vulneráveis para uso em casos de roubo de identidade e outros crimes digitais.
De acordo com os pesquisadores, a abordagem acadêmico-científica deste "lado escuro" do marketing de influenciadores tem implicações importantes. Primeiro, ampliar a compreensão sobre este mercado, incorporando dimensões sociais, éticas e legais e enfatizando uma visão multidisciplinar que integra perspectivas da publicidade e psicologia. Segundo, destacar o papel da autenticidade e transparência nas decisões de consumo, aprofundando as investigações sobre os mecanismos de construção de confiança nas interações digitais via relações parassociais. Terceiro, apontar a crescente importância da inclusão e do bem-estar na criação de conteúdos, dando uma base para teorizar como empresas e marcas podem estimular normas sociais positivas via suas parcerias com influenciadores.
"Ao jogar luz sobre estas questões, pesquisadores podem contribuir para discussões mais bem informadas e intervenções políticas voltadas à promoção de práticas mais éticas e responsáveis no âmbito da indústria dos influenciadores", concluem.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência