Enemas de café: ineficazes e perigosos

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21 nov 2023
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café luminoso

 

Apesar de já termos passado da data do Halloween, uma prática atroz – e muito semelhante à colonterapia – ganhou destaque nas últimas semanas. O site ABC13 publicou no dia 30 de outubro de 2023 um artigo alertando sobre uma tendência do Tik Tok que ensinava e enaltecia a prática dos enemas de café. Para quem não está familiarizado com o termo, “enema” significa “introdução de água e medicamentos líquidos no organismo por via retal” (Dicionário Houaiss).

O artigo “Colonic Irrigation and the Theory of Autointoxication: A Triumph of Ignorance over Science” de autoria de Ernst, E. (1997) define os enemas de café como “uma derivação perigosa da colonterapia. Sendo parte de uma dieta anticâncer pouco ortodoxa, e administrado a cada quatro horas para auxiliar no alívio dos sintomas de dor, náusea, entre outros relacionados à desintoxicação. Seus proponentes afirmam que a cafeína absorvida no cólon ocasiona vasodilatação do fígado, o que, por sua vez, aumenta o processo de eliminação das toxinas. Destaca-se que não há comprovação científica que corrobore os benefícios supracitados”.

Infelizmente, essa resposta esclarecedora não foi o suficiente para impedir que praticantes e clínicas integrativas continuassem exaltando os – inexistentes – benefícios dos enemas de café.

 

Promessas infundadas

Uma dessas clínicas, encontrada online, com um daqueles sites pré-fabricados onde o destaque principal vai para um número de WhatsApp, oferece pseudociências clássicas já discutidas aqui na RQC, caso do tratamento ortomolecular, ozonioterapia e colonterapia. Chama atenção o blog que a empresa mantém, onde essas terapias são promovidas com um marketing extremamente agressivo. A seguir, um resumo do que dizem a respeito do enema de café. Aviso: apesar de o parágrafo parecer uma peça satírica, adianto que se trata, infelizmente, de um compilado de falácias conhecidas – apelo à autoridade e ao natural – num vocabulário calculado para soar “científico”.   

Max Gerson, um médico especialista em câncer, desenvolveu um programa que utiliza o enema de café para tratar pacientes com câncer. Durante suas pesquisas, ele observou que a prática desintoxicava e restaurava o fígado. A retenção de café no intestino por 15 minutos resulta em uma dilatação das vias biliares, o que facilita a excreção das toxinas armazenadas no fígado. Apesar do enema de café ser um tratamento pouco convencional, é difícil encontrar uma técnica tão eficaz para a desintoxicação e restauração do fígado. De acordo com estudos realizados pelo Instituto Gerson, os efeitos benéficos do enema de café são decorrentes da estimulação da produção de transferase glutationa, um dos principais desintoxicantes do corpo. A maioria das pessoas acredita que o enema pode auxiliar na limpeza e cura do cólon, reduzir os níveis de toxicidade em 600% e ajudar e curar doenças crônicas e câncer.

Felizmente, o autor do texto original tem escrúpulos (ou serviços a vender) e alerta os leitores para não realizarem a prática em casa sem orientação de um profissional habilitado.

A terapia Gerson e o Instituto Gerson, baseado no México, são pouco conhecidos do grande público no Brasil, mas no mundo de língua inglesa, principalmente na mídia britânica, é possível encontrar diversos relatos de celebridades e mesmo pessoas comuns que perderam a vida ao abandonar tratamentos cientificamente validados contra câncer e adotar o protocolo Gerson, que inclui uma dieta rigorosíssima e a aplicação dos enemas. O príncipe (agora rei) Charles da Inglaterra costumava defender a prática, daí sua relativa popularidade no Reino Unido.

Num resumo sobre o assunto publicado em seu blog pessoal, Edzard Ernst – autor de diversos estudos e revisões sistemáticas sobre terapias alternativas – sintetiza da seguinte forma o estado atual da terapia Gerson: “os proponentes tiveram cerca de 100 anos para produzir evidências; falharam em fazê-lo; portanto, a terapia, na melhor das hipóteses, não está comprovada; também é biologicamente implausível; além disso, é cara; crucialmente, não está livre de efeitos adversos graves; é promovida apenas por aqueles que parecem ganhar dinheiro com isso”.

 

Mas para mim funciona!

Um defensor da prática poderia argumentar que há artigos que corroboram os efeitos positivos da ferramenta terapêutica, como o escrito por Isaacs, L. (2021) intitulado “Coffee Enemas: A Narrative Review” e publicado na Alternative Therapies in Health and Medicine – onde mais poderia ser, não é mesmo?

Ali, a autora explica que recomendou enemas de café para diversos pacientes ao longo de décadas, e muitos relatam alívio de sintomas como dor de cabeça, fadiga, constipação, mal-estar, dor muscular, dor nas juntas, entre outros.

Após essa pequena introdução, ela explica a história por trás da prática, os possíveis mecanismos de ação que gerariam as “benesses”, os riscos que a terapia pode apresentar – trataremos disso em oura seção do texto.

Por fim, a autora expõe o que a motivou a utilizar os enemas de café na sua atuação clínica. Como essa parte contém trechos fundamentais para identificar falácias lógicas e argumentos com roupagem científicas, os citarei ipsis litteris:

“(...) No meu último ano na escola de medicina, desenvolvi uma síndrome de fadiga crônica que se intensificou durante o internato. Testei os enemas de café e me senti muito melhor. Por conta disso, estava disposta a acordar 45 minutos mais cedo para realizá-los, mesmo em momentos em que estava desesperada para dormir um pouco mais.

“Os enemas de café podem aliviar a constipação, mas esse não é o único benefício. Podem auxiliar na fadiga, mal-estar, dores de cabeças, artralgias (dores nas juntas), mialgias (dores musculares) e dificuldades de concentração. Os pacientes geralmente relatam uma melhora na sensação de bem-estar após realizá-los.

“Os críticos dos enemas de café costumam dizer que a prática persiste por ser um triunfo da ignorância sobre a ciência e que os praticantes, como eu, possuem um incrível poder de persuasão para criar um efeito placebo robusto e duradouro. Acho difícil de acreditar que o efeito placebo possa explicar a melhoria que os pacientes relatam, especialmente quando não acreditam que os enemas os ajudarão”.

Logo no início, somos contemplados por uma sequência de experiências anedóticas (casos isolados) que não têm validade científica: é impossível discernir se as melhoras apresentadas são de fato decorrentes da terapia, ou de algum outro fator desconhecido.

Além disso, os sintomas mencionados como desfechos clínicos positivos pela autora podem ser, como os críticos afirmam, provocados pelo efeito placebo; ou pelo fato de os pacientes estarem utilizando outros tratamentos ao mesmo tempo que realizam os enemas; ou, ainda, pelo curso natural da doença – é normal que um sintoma esvaneça após alguns dias.

 

Os riscos

A prática não é isenta de riscos. Kim, S. et al (2012) relataram um estudo de caso em que uma mulher de 27 anos chegou ao hospital reclamando de dores abominais e dor anal após a administração de um enema de café quente, para aliviar a constipação. Após a realização dos exames, ela foi diagnosticada com perfuração retal e peritonite.

Son, H. et al. (2020) realizaram uma revisão sistemática de estudos de caso sobre segurança e eficácia da autoadministração dos enemas de café. Ao analisar os bancos de dados, foram obtidos 11.364 estudos; entretanto, somente nove tinham qualidade suficiente para serem incluídos.

Como resultado, os autores afirmam que a revisão sistemática realizada não encontrou nenhum estudo de caso que indicasse eficácia clínica na autoadministração dos enemas de café. Agora, em relação à segurança, com base em evidências de qualidade aceitável, observou-se que os eventos adversos mais comuns foram as queimaduras retais e colite.

Para entender a quantidade e a razão do risco, os pesquisadores buscaram mais evidências relacionadas a eventos adversos e encontraram dois estudos de caso. Um relacionado a um médico que realizou o procedimento de enema de café em um paciente, causando uma lesão no reto e no cólon. E outro a respeito de dois eventos adversos menores (náusea, distensão abdominal) observados em 42 pacientes que utilizaram enemas de café para tratar a constipação.

Como conclusão, os autores afirmam que, apesar das limitações apresentadas pela revisão sistemática, ela evidencia nitidamente os potencias efeitos deletérios que a prática pode ocasionar.

Caso ainda reste dúvidas em relação a essa prática atroz, termino com um trecho magistral de Sissung, T. et al. (2019) em seu artigo intitulado “How do you take your coffee?”

“Os enemas de café resultaram na morte de dois pacientes com câncer que apresentavam anormalidades de fluídos e eletrólitos. Os enemas também ocasionaram sepses, comas, desidratações, colites e constipação. Muitas dessas reações adversas podem estar associadas tanto às intervenções dietéticas quanto aos enemas. Os efeitos diretos dos enemas de café incluem queimaduras severas no reto e perfurações retais. Esses efeitos adversos provavelmente causariam complicações graves em pacientes oncológicos, que frequentemente são imunodeficientes e têm um processo de cicatrização mais lento”.

Moral da história: café, somente pela boca.

 

Mauro Proença é nutricionista

 

REFERÊNCIAS

ERNST, E. Colonic Irrigation and the Theory of Autointoxication: A Triumph of Ignorance over Science. Journal of Clinical Gastroenterology 24(4):p 196-198, June 1997. Disponível em: https://journals.lww.com/jcge/fulltext/1997/06000/colonic_irrigation_and_the_theory_of.2.aspx.

BELLINGHINI, R. Câncer: a crueldade das falsas promessas. 2018. Disponível em: https://revistaquestaodeciencia.com.br/dossie-questao/2018/11/18/cancer-crueldade-das-falsas-promessas

ERNST, E. The Gerson Therapy: possibly the worst câncer quackery of them all. 2020. Disponível em: https://edzardernst.com/2020/11/the-gerson-therapy-possibly-the-worst-cancer-quackery-of-them-all/

ISAACS, L. Coffee Enemas: A Narrative Review. Alternative Therapies. May/june 2021. Vol. 27 No. 3. Disponível em: https://www.drlindai.com/Alt-ther-5-2021.pdf

KIM, S. et al. Rectal perforation due to benign stricture caused by rectal burns associated with hot coffee enemas. Endoscopy 2012; 44(S 02): E32-E33. Disponível em: https://www.thieme-connect.com/products/ejournals/html/10.1055/s-0031-1291512

SON, H. et al. The safety and effectiveness of self-administered coffee enema. Medicine (Baltimore). 2020 Sep 4; 99(36): e21998. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7478478/

SISSUNG, T. et al. How do you take your coffee? Lancet Oncol. 2019 Jul;20(7):913-914. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lanonc/article/PIIS1470-2045(19)30387-0/fulltext

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