O “inimigo do Iluminismo” no trono da Inglaterra

Apocalipse Now
13 mai 2023
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rei coroado

 

Em 1982, mais de quatro décadas antes de ser coroado monarca do Reino Unido o (então) príncipe Charles foi eleito presidente da Associação Médica Britânica (BMA, na sigla em inglês). Vale lembrar que Charles não é médico e nunca estudou Medicina: sua única qualificação acadêmica é, nas palavras do biógrafo Tom Bower, “um diploma medíocre de História”. Mas se regimes monárquicos provam alguma coisa, é que a loteria dos úteros garante, a alguns, privilégios que vão muito além do que o mérito permite – ou a prudência recomenda.

O ano em questão marcava o 150º aniversário da Associação, e Charles teria de fazer um discurso no banquete comemorativo da data. No que deve ter sido dos momentos mais constrangedores da augusta história da BMA, o futuro rei houve por bem não se ater ao esperado – uma mensagem sóbria de parabéns e congratulações – e, em vez disso, lançou-se numa crítica à profissão médica, por sua suposta falta de contato com a realidade espiritual. O príncipe se apresentou como o portador de “uma mensagem para os nossos tempos, tempos em que a ciência divorciou-se da natureza”. Trechos do discurso citados no livro “Charles, the Alternative King”, de Edzard Ernst, incluem:

“Todo o imponente edifício da medicina moderna, a despeito de todos os seus sucessos de tirar o fôlego, encontra-se, como a célebre Torre de Pisa, desequilibrado”.

“O médico deve ter intimidade com a natureza. Deve ter a intuição necessária para entender o paciente, seu corpo, sua doença. Deve ter o ‘sentimento’ e o ‘toque’ que lhe permitem entrar em comunicação simpática com os espíritos do paciente”.

“Por séculos, a cura tem sido praticada por curandeiros populares guiados por sabedoria tradicional que vê a doença como uma perturbação da pessoa inteira, envolvendo não apenas o corpo do paciente, mas sua mente, sua autoimagem, sua dependência do ambiente físico e social, bem como sua relação com o Cosmos”.

E por aí afora.

 

Príncipe detox

O histórico do atual rei Charles III como campeão da pseudociência e do charlatanismo médico é longo e extremamente bem documentado, assim como sua hostilidade ao uso da lógica e da razão – Charles é um “intuitivo” que já se disse orgulhoso de ser visto como “inimigo do Iluminismo”. Na biografia “Rebel King”, Tom Bower conta como, em reuniões com autoridades de saúde pública – arranjadas por seu staff particular, valendo-se do peso social e do prestígio da Família Real –, Charles “ignorava a pauta predefinida e começava a pregar a importância da Terapia Gerson”.

“Este seria um tema recorrente em sua vida”, escreve outra biógrafa, Sally Bedell Smith, em “Prince Charles: The Passions and Paradoxes of an Improbable Life”. “Por causa da posição de Charles, autoridades públicas e especialistas acabariam vendo-se obrigados a prestar atenção a suas ideias, por mais extravagantes que parecessem”.

A “Terapia Gerson”, promovida com afinco por Charles, é uma combinação de dieta “orgânica” rigorosa, enemas de café, às vezes combinados a ozônio retal, usada, supostamente, para “detoxificar” o corpo – e que promete curar de diabetes a câncer. A dieta prescrita tende a ser pobre em nutrientes importantes; os enemas causam desidratação e desequilíbrio eletrolítico, além de trazer risco de infecções e outros problemas. É uma terapia cruel e inútil. Mas é “natural” e “detox”, o que para o então príncipe devia parecer suficiente.

Detoxificação parece ser uma ideia fixa do filho mais velho da saudosa rainha Elizabeth II. Em 1990, Charles estabeleceu uma empresa, Duchy Originals, que atualmente se chama Waitrose Duchy Organics. O negócio principal da companhia é a venda de alimentos orgânicos, mas em 2008 o futuro rei resolveu lançar, em parceria com uma farmácia homeopática, uma série de remédios fitoterápicos, incluindo o “Duchy Herbals Detox Tincture”, feito à base de alcachofra e dente-de-leão.

Essa “tincture” funcionaria, segundo palavra de um executivo da firma, como “um auxílio natural para a digestão e um apoio aos processos naturais de eliminação do corpo”, o que parece uma forma muito britânica de descrever um laxativo. Seja como for, a aventura do futuro rei no universo da picaretagem “detox” atraiu críticas pesadas, e o produto acabou saindo do mercado.

 

Gurus

A paixão de Charles pela natureza – ou, ao menos, por uma visão romântica do que ele entende por “natureza” –, a afinidade pelo pensamento mágico e sua rejeição da racionalidade científica vêm de longa data, e são atribuídas por biógrafos a uma série de influências que atuaram sobre o príncipe no início da idade adulta. Cita-se a atriz anglo-indiana Zoe Sallis, que na década de 1970 levou Charles a interessar-se por vegetarianismo, misticismo oriental e a confiar mais na intuição do que nos fatos; e, de forma mais intensa, o grande farsante sul-africano Laurens van der Post.

Van der Post (que morreu em 1996, aos 92 anos de idade) é uma figura que merece um artigo à parte. Hoje largamente esquecido, entre as décadas de 1950 e 1970 teve grande sucesso como escritor e intelectual, principalmente graças a seus relatos autobiográficos da vida entre os bosquímanos da África e em campos japoneses de prisioneiros na Indonésia, durante a 2ª Guerra Mundial. Também produziu uma biografia de Carl Jung. Seus livros sobre a vida como prisioneiro dos japoneses inspiraram o filme “Furyo – Em Nome da Honra”, de Naigisa Oshima, estrelado por David Bowie.

Van der Post, um homem altamente carismático e um excelente contador de histórias, tornou-se uma espécie de mentor espiritual do jovem Charles. Sua esposa, Ingaret Giffard, era amiga de Jung e, como psicanalista, tratou a princesa Diana e interpretou sonhos de Charles. Van der Post foi padrinho do príncipe William e também orientou Margaret Thatcher.

Após sua morte, pesquisas conduzidas por biógrafos demonstraram que muitos dos aspectos mais impressionantes da vida de Van der Post (tal como relatada por ele mesmo), desde detalhes da infância na África até seus supostos atos de heroísmo na 2ª Guerra, eram mentiras, invenções. Seus livros sobre o folclore dos bosquímanos eram na verdade plágio de obras do século 19. Além disso, o biógrafo JDF Jones descobriu documentos provando que, em 1949, já casado com Ingaret, o sul-africano havia seduzido e engravidado uma menina de 14 anos.

Van der Post ofereceu a Charles um poderoso coquetel de misticismo junguiano misturado à idealização romântica da “sabedoria natural” dos povos caçadores-coletores da África, reforçado por doses duplas e triplas de pura e simples bajulação. O príncipe teria sido colocado no mundo como um escolhido do destino, para executar a missão de restaurar o respeito do homem pelo próprio espírito; restaurar o amor pela natureza, e trazer a Humanidade de volta ao plano original da vida. O autor sul-africano converteu Charles a uma forma “psicanalítica” de vitalismo, em que a “força vital” que sustenta a vida e promove saúde flui pelo inconsciente coletivo junguiano.

(Nada disso faz o menor sentido ou tem qualquer base na realidade, caso o leitor esteja se perguntando: já discutimos a quimera do vitalismo de modo detalhado em outros artigos, por exemplo este e este).

De acordo com Sally Bedell Smith, Van der Post foi apenas o primeiro (e mais influente) de uma longa série de gurus a que Charles viria a se apegar ao longo da vida – todos, de uma forma ou de outra, gratificando a vaidade do príncipe e libertando-o do esforço de ponderar e pensar: pois a intuição espiritual privilegiada já basta. Cientistas e especialistas? Um bando de gente teimosa e dogmática.

 

E o rei?

Uma questão que vem sendo repetida desde que Charles sucedeu ao trono, tornando-se rei Charles III, é até que ponto a posição de soberano do Reino Unido será usada por ele em sua missão sagrada de destruição do Iluminismo e coroação (sem trocadilho) da intuição espiritual. As amarras institucionais que pesam sobre o rei são muito mais estritas do que as que prendiam o mero herdeiro. O príncipe Charles tentando empurrar Terapia Gerson para as autoridades sanitárias era apenas constrangedor; o rei, se fizer a mesma coisa, flertará com um escândalo constitucional.

Também é preciso reconhecer que, enquanto príncipe, Charles foi comicamente ineficaz em sua missão sagrada. O sistema de saúde britânico baniu a homeopatia há alguns anos. A organização criada por Charles para promover a integração de terapias alternativas à medicina, a Prince’s Foundation for Integrated Health, foi fechada em 2010, em meio a um embaraçoso escândalo de corrupção.

O atual rei Charles III mantém-se, até o momento, como patrono de entidades britânicas ligadas à medicina alternativa, como a Faculdade de Homeopatia, o Colégio de Medicina e Saúde Integrada e da tradicional farmácia homeopática Ainsworth, papéis que aceitou antes de ascender ao trono. O fato de não ter se desvencilhado desses títulos sugere que suas simpatias continuam onde sempre estiveram.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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