Fuja de terapias “ortomoleculares”

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6 jul 2020
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ortomolecular

Um dos mitos mais resistentes, em termos de saúde humana, é o da “alimentação perfeita”: a ideia de que um consumo equilibrado e correto de nutrientes garante condições ideais de saúde, incluindo virtual imunidade a doenças infecciosas, ao câncer e, até, aos efeitos do envelhecimento. Do dado evidente de que a dieta tem efeitos sobre a saúde, tenta-se inferir um poder sobrenatural de prevenção e cura: só o que nos impediria de gozar de saúde eternamente perfeita seria a alimentação incorreta. A lógica é a mesma que sugere que só o que impede um halterofilista de empurrar a Terra para fora de sua órbita é treinamento incorreto.

A chamada “medicina ortomolecular” brota desse mito, mas com uma virada própria: o pressuposto de que os níveis ideais de certos nutrientes para o corpo humano são muito maiores, até, do que os encontrados normalmente nos alimentos, e portanto requerem suplementação, por exemplo, sob a forma de cápsulas contendo megadoses de vitaminas. É o casamento da “cura natural pela dieta” com a indústria farmacêutica.

Alguém poderia supor que o conceito saiu da cabeça de um gênio do marketing, mas na verdade ele apareceu numa publicação do nobelista Linus Pauling (1901-1994) na revista Science, em 1968. Um pedigree aparentemente impecável — o que só vem mostrar que ideias ruins também nascem em berço de ouro.

Em seu artigo (intitulado “Psiquiatria Ortomolecular), Pauling afirma que “diversos argumentos podem ser apresentados em defesa da tese de que as concentrações moleculares ótimas de substâncias normalmente presentes no corpo humano podem ser diferentes das concentrações encontradas na dieta (…) e, para nutrientes essenciais (vitaminas, aminoácidos essenciais, ácidos graxos essenciais), diferentes das quantias mínimas necessárias para a vida”.

 

Fanático por Vitamina C

Pauling foi a única pessoa a ganhar o Nobel sozinho duas vezes – o de Química, em 1954, e o da Paz, em 1962 – e também um dos poucos nobelistas a manter uma carreira original e produtiva após o prêmio, desenvolvendo trabalhos importantes na área de bioquímica até a década de 60.

A partir do final dos anos 60 e início dos 70, no entanto, Pauling passou a defender agressivamente a ideia de que as doses “ótimas” — isto é, as que trazem o maior benefício possível para a saúde humana — de nutrientes essenciais seriam muitas vezes maiores que as encontradas numa alimentação normal. Segundo Pauling, o consumo de 50 vezes o nível recomendado diário de vitamina C poderia evitar ou curar resfriados, tese que se comprovou falsa. Mas a reputação do nobelista ajudou a lançar – e enriquecer – a indústria das cápsulas de vitamina e suplementos alimentares, que segue firme e forte até os dias de hoje.

Pauling também se convenceu de que a vitamina C poderia curar o câncer, e que complexos envolvendo outros nutrientes, como selênio e vitamina E, poderiam curar todas as doenças conhecidas, incluindo câncer. Em 2008, uma revisão de duas dezenas de estudos sobre o assunto mostrou que não só a suplementação de vitaminas não é capaz de evitar câncer gastrointestinal, como suplementação de antioxidantes (a vitamina C é um antioxidante) está correlacionada a um aumento de mortalidade em pacientes de câncer.

A despeito de sua dieta rica em vitaminas, Linus Pauling morreu de câncer de próstata em 1994.

 

Entre nós

No Brasil, a “medicina ortomolecular” é uma atividade que pode ser classificada como quase clandestina: além de não constituir especialidade reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), muitas de suas práticas típicas, como a prescrição de doses exageradas de vitaminas e sais minerais como “preventivos”, ou na ausência de deficiências comprovadas desses nutrientes, são explicitamente proibidas por resolução de 2012 do mesmo Conselho.

A proibição tem sentido. Como escrevem Edzard Ernst e Simon Singh no livro Truque ou Tratamento, “em doses excessivas, vitaminas podem fazer mal. Virtualmente todas essas substâncias causarão efeitos adversos se consumidas em overdoses exageradas por longos períodos — e é exatamente isso o que recomendam os proponentes da medicina ortomolecular”.

A despeito disso, profissionais que se apresentam como “ortomoleculares” têm aparecido com certo destaque no contexto da atual pandemia, incluindo alguns médicos. Mesmo a insistência equivocada, feita em alguns círculos, de que o tratamento da COVID-19 requer suplementação de vitamina D e zinco trai uma afinidade com o pensamento ortomolecular.

As especulações de Linus Pauling sobre os “níveis ótimos” de certos nutrientes no organismo serem muito maiores do que os encontrados numa dieta regular nunca foram confirmadas cientificamente e, postas em prática, essas ideias trazem riscos. Suplementação nutricional é útil para pessoas que têm dieta pobre ou dificuldade na absorção natural de algum nutriente, não para otimizar a saúde de quem já come bem, ou evitar que gente saudável fique doente.

O clássico livro-texto de oncologia Holland-Frei Cancer Medicine resume perfeitamente: “Não há evidência de que terapia ortomolecular ou de megavitaminas seja efetiva no tratamento de qualquer doença”.

 

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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