Câncer: a crueldade das falsas promessas

Dossiê Questão
22 nov 2018
Frutas vermelhas e hambúrguer

Foi nas conversas com profissionais de cuidados paliativos que, finalmente, compreendi um fenômeno comum nas páginas mantidas em redes sociais por defensores de terapias alternativas contra o câncer. A esmagadora maioria das postagens era de filhos, irmãos, netos, maridos e esposas de doentes, e não dos doentes, que eram bem poucos em relação ao total.

Segundo esses especialistas, são as pessoas próximas que geralmente pressionam o paciente a embarcar nessas aventuras pseudoterapêuticas e dietas “curativas”, inconformados com os efeitos – ou falta de efeito – dos tratamentos convencionais, principalmente quando o médico que acompanha o paciente explica que não há mais nada a fazer em termos de cura da doença.

Não são poucos os pacientes, especialmente os terminais, que cedem às pressões da família apenas para ter um pouco de sossego. Uma especialista em cuidados paliativos conta que um paciente grave, que mal se alimentava, sempre ganhava cestas de frutas vermelhas, “que são anti-oxidantes e combatem o câncer”, dos filhos que o visitavam.

Era cesta atrás de cesta: cereja, morangos enormes, mirtilo, amora, framboesa. E o doente fingindo que adorava, para não preocupar a família.

Depois de uma dessas visitas, o paciente disse para a médica: “Doutora, se a senhora gosta, leva as frutas. O que eu queria mesmo era um cheeseburger, bacon e fritas. Posso?” O desejo foi prontamente atendido.

No caso recente da chamada fosfoetanolamina sintética, “a pílula da USP”, que chegou às manchetes em 2016, as postagens em grupos fechados de redes sociais seguiam uma lógica: primeiro, pedidos de indicações de como conseguir as cápsulas para pai, marido, filha, prima, tia. Em seguida, o relato feliz de que as pílulas haviam sido obtidas e que o parente “já está bem melhor, parou de vomitar, está comendo e bem mais forte, e nem precisa mais da morfina”, às vezes acompanhadas por fotos ou vídeos do doente.

 

Início da linha do tempo de falsas terapias contra o câncer

Lembro-me do vídeo de um advogado que postou imagens da mãe, com câncer de pâncreas terminal, caminhando lentamente por uma garagem, enquanto ele pedia: “mostra, mãe, como você está bem melhor”.  O rosto dela dizia que não, mas ele queria acreditar. Os relatos de melhoras prosseguiam por dois ou três meses e, de repente, paravam.

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Mas, não é tudo uma conspiração da indústria farmacêutica?

Algum tempo depois, a mesma pessoa informava que o parente infelizmente tinha morrido. E a pessoa justificava-se afirmando que “começou a tomar tarde demais. Com a graça de Deus, vai funcionar para vocês” ou “ele estava indo tão bem, mas acho que nos venderam ‘fosfo’ falsa, que não é de São Carlos, desta última vez.”.

Ou seja, a morte nunca é resultado de uma falsa cura, mas culpa do próprio paciente, que tomou o suposto medicamento “tarde demais” ou foi enganado com “falso” medicamento falso.

O caso da fosfoetanolamina sintética foi o mais ruidoso de tempos recentes, e alimentou-se do ambiente online e do momento político do País, mas as falsas promessas de uma solução simples e indolor para o trauma e a complexidade do câncer têm uma longa história.

A primeira cápsula da USP

A década era a de 60, mais precisamente 1967, quando a revista O Cruzeiro publicou uma entrevista com o professor Walter Radamés Accorsi, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP), um estudioso das propriedades medicinais das plantas. Accorsi havia “descoberto” que a casca do ipê roxo (Handroanthus impetiginosus) continha substâncias capazes de conter o câncer.

Não havia internet, WhatsApp ou redes sociais, mas a história de que chá da casca de ipê roxo curava câncer se espalhou de tal forma que a pobre árvore quase desapareceu de algumas regiões brasileiras. Accorsi produziu cápsulas do composto, que distribuía gratuitamente a quem pedisse na Esalq.

Não é de hoje, portanto, que essa prática – a oferta de supostas “curas” para o câncer desprovidas de comprovação científica, que viram folclore e empurram falsas esperanças para os desavisados – acontece nos campi da USP. O episódio, de certa forma, prefigurou a vinda da “pílula do câncer”.

Da graviola à maconha

Uma série de sites e lojas de “produtos naturais” comercializa as cápsulas ou o chá até hoje, algumas combinando o ipê roxo com a graviola, que é a mais recente versão da mesma história: a promessa de uma cura simples e “natural” para uma doença que, na verdade, é extremamente complexa.

Pouco tempo atrás, pesquisadores de uma universidade federal, estudando compostos chamados acetogeninas, presentes nas folhas da graviola, determinaram que essas moléculas eram capazes de matar células cancerosas in vitro, isto é, em amostras tumorais isoladas do organismo, mantidas em laboratório. Um professor que deu aulas sobre câncer a esta repórter costuma dizer que, in vitro, “até cuspe mata célula cancerosa”. Mas, no organismo vivo, a história é bem diferente.

A pesquisa da graviola era preliminar, requeria confirmação e testes mais rigorosos. Dados internacionais, afinal, mostram que mais de 90% dos compostos que atacam o câncer in vitro acabam se mostrando inúteis quando testados em organismos vivos. Até mesmo a maioria dos candidatos a medicamento para câncer que funcionam em animais acabam se revelando inúteis para seres humanos.

Em pouco tempo, no entanto, apareceram cápsulas e extratos de graviola vendidos como cura do câncer, além, é claro, de receitas de chá de folhas da planta.

Há pesquisas que indicam que as acetogeninas, em grande concentração, trazem risco de causar o mal de Parkinson. E o extrato concentrado da fruta pode reduzir a eficiência da quimioterapia, porque as mesmas acetogeninas sobrecarregam o fígado.

Minha memória mais antiga de falsas curas do câncer é a do chá de casca de ipê roxo, “que cura ‘aquela doença’”, como se dizia nas conversas na cabeleireira, porque câncer é “palavra que não se fala porque atrai”, como me ensinaram em casa.

Estrutura molecular de uma acetogenina

 

Exceto aos domingos, no Fantástico, que todo mundo assistia, nos anos 70, quando o então repórter Hélio Costa, mais tarde senador e deputado federal, apresentava uma “nova cura do câncer” programa sim, programa não.

Provavelmente, foi nessa época que passei a desenvolver uma indignação inflamada diante de curas milagrosas em geral, e curas milagrosas do câncer, em particular. Meu fascínio pelo câncer também nasceu nessa época e, por algum tempo, namorei a ideia de fazer Medicina (Patologia, claro) e mais tarde, Genética. Meu ídolo de adolescência era Steven A. Rosenberg, pioneiro no desenvolvimento da imunoterapia para o câncer – faça as contas. Rosenberg trabalhou 40 anos para que sua ideia se tornasse realidade no tratamento do câncer. Acabei optando pelo jornalismo, mas escrevo sobre saúde e ciência há mais de 30 anos, e câncer continua sendo fascinante para mim.

Por conta disso, amigos costumam tirar dúvidas comigo quando têm suspeita ou diagnóstico de câncer, ou me indicar para outros na mesma situação. Há dois anos, um amigo de rede social pediu que conversasse com o filho de um casal de suas relações. O rapaz, de pouco mais de 20 anos, estudante de uma das mais renomadas universidades do País, recebeu diagnóstico de linfoma de Hodgkin, um tipo de câncer com prognóstico geralmente favorável, e decidiu que se trataria com óleo de maconha. A família entrou em pânico.

Há muita pesquisa em torno dos compostos da Cannabis sativa e, por enquanto, apenas os efeitos de alguns canabinoides (substâncias derivadas da maconha) para controle de convulsões refratárias a tratamento, isto é, que não respondem a medicamentos convencionais, foram reconhecidos pela ciência. Mas há dezenas de alegações não comprovadas, entre elas a de que óleo de maconha cura câncer, todo tipo de câncer.

O estudante, porém, me disse que pretendia, sim, fazer químio, mas que tinha consultado sua oncologista, que não viu problema no uso do derivado da Cannabis. Meses depois, já em remissão, o rapaz anunciou em rede social que estava curado pelo óleo de maconha, sem mencionar a químio. Em conversa privada, me disse que tinha certeza que o que funcionou foi o tal óleo.

Conheço três outras pessoas que tiveram Hodgkin, fizeram quimioterapia e estão em remissão. Nenhuma usou óleo de maconha, mas esse tipo de argumento não costuma afetar quem foi convencido pelo discurso dos tratamentos ditos alternativos.

E mesmo a opção por um tratamento alternativo como via complementar, ou paralela, ao curso principal traz riscos: um estudo internacional publicado neste ano mostra que pacientes que adotam essa estratégia muitas vezes tendem a negligenciar as terapias corretas, e põem a vida em perigo.

Fosfo, o fenômeno

Em junho de 2016, assisti, acompanhada de amigos cientistas e jornalistas, a um evento, supostamente científico, no Sindicato dos Farmacêuticos de São Paulo, que se anunciava como um simpósio sobre a fosfoetanolamina, a tal “pílula do câncer da USP”.

Durante mais de 20 anos, Gilberto Chierice, professor do Instituto de Química da USP, campus São Carlos, hoje aposentado, produziu – em instalações inadequadas para a fabricação de medicamentos – e distribuiu, gratuitamente, cápsulas contendo o que ele chama de “fosfoetanolamina sintética”, sem ser perturbado por reitores, diretores de departamento ou autoridades policiais e sanitárias. Isso, a despeito do fato de que a distribuição, no Brasil, de “remédios” não reconhecidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ser, em princípio, ilegal.

Estrutura molecular da fosfoetanolamina

Em pelo menos uma entrevista a uma afiliada da Rede Globo, Chierice, um químico industrial excelente, mas leigo em Biologia ou Medicina, deu a entender que os tratamentos convencionais para o câncer, como a quimioterapia, atrapalhariam o funcionamento de sua cápsula milagrosa e, segundo pessoas que iam lá buscar as tais pílulas, recomendava que esses tratamentos fossem interrompidos, algo que nega hoje em dia.

Foi a presença dele que me levou ao evento no Sindicato dos Farmacêuticos.

“Ele é fofinho”, dizia uma moça entusiasmada por estar diante do inventor. “A gente logo vê que é um homem com uma aura maravilhosa”, afirmava outra, tentando tocar no químico Chierice enquanto ele entrava no auditório, como se buscasse encostar nas vestes de um santo.

Conversei com muitos dos presentes, entre um café e outro, e a grande maioria era de pessoas com parentes com câncer. Vários martelavam na tecla de que não é o câncer que mata, mas a quimioterapia.

Muitos disseram que seus parentes estavam passando bem, mas morreram assim que começaram a químio. A verdade é que estavam apenas aparentemente bem, mas já em estágio avançado da doença. É algo como receber um diagnóstico de hipertensão e culpar o remédio para pressão alta, que se começou a tomar anteontem, pelo infarto que chega.

Testes de laboratório, em animais (conduzidos sob os auspícios do extinto Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação) e um estudo piloto seres em humanos (patrocinado pelo governo do Estado de São Paulo) revelaram que a promessa da “fosfo” era apenas uma miragem.

Informações falsas, ameaças reais

As promessas, nunca cumpridas, de curas milagrosas para o câncer não proliferam apenas por aqui. O fenômeno é global, intensifica-se e acelera-se graças às redes sociais e ao WhatsApp. Pesquisas indicam que as redes familiares desse aplicativo de mensagens são as maiores disseminadoras de informações falsas, notadamente na área da saúde.

No recente surto de febre amarela, foram esses grupos que espalharam notícias descabidas, como a de que não havia surto, que tudo era uma farsa montada pelas multinacionais farmacêuticas para desovar estoques de vacinas próximos ao vencimento.

Mas o maior produtor do mundo da vacina contra a febre amarela não é uma multinacional, mas BioManguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), vinculada ao Ministério da Saúde brasileiro.

 Também foram esses grupos que espalharam histórias de gente que ou morreu ou pegou febre amarela logo depois de tomar a vacina, que, portanto, devia “ser perigosa”. Resultado: o Estado de São Paulo, que tinha registrado 103 casos de febre amarela ao longo de 2017, registrou 537 casos da doença de janeiro a agosto deste ano. O vírus, que ano passado circulava em 14 cidades, está presente em 63 cidades paulistas. E isso antes do verão, que é a temporada em que os mosquitos se reproduzem em grande quantidade.

Conspirações

Os argumentos em favor desta ou daquela cura milagrosa quase sempre envolvem uma conspiração mundial de médicos, pesquisadores e das multinacionais farmacêuticas, que escondem do público uma medicação simples, barata, sem efeitos colaterais e que cura todos os mais de 200 tipos de câncer que existem. Os envolvidos aceitariam participar desse golpe monumental porque ganhariam muito dinheiro com a quimioterapia.

A verdade, no entanto, é que as grandes indústrias farmacêuticas costumam acompanhar o desenvolvimento de pesquisas promissoras – historicamente, quando aconteceu de porem a ética de lado e partirem para a manipulação dos resultados de pesquisas, foi para exagerar, e não minimizar, a eficácia deste ou daquele produto. E nenhuma veio atrás da fosfoetanolamina ou da graviola.

Fosfoetanolamina, aliás, é vendida há décadas na Europa e Estados Unidos como suplemento alimentar e nem por isso a incidência de câncer caiu nessas regiões. 

 

Segue a linha do tempo das falsas curas

De fato, dois ex-associados de Chierice, o médico Renato Meneguelo e o biotecnólogo Marcos Vinícius de Almeida, passaram a fabricar fosfoetanolamina em Miami, despachá-la para o Uruguai e a vendê-la pelo correio como “suplemento alimentar” para brasileiros.

Testes realizados em amostras dessas cápsulas pelo pesquisador e professor titular do Instituto de Química da Unicamp, Luiz Carlos Dias, mostraram que o produto sequer contém a tal fosfoetanolamina, mas 96% de compostos inócuos não solúveis em água – a fosfo é solúvel – e 4% de fosfato ácido de monoetanolamina, uma impureza tóxica, mas que, pela baixa concentração, não deve causar prejuízos à saúde dos consumidores das cápsulas. 

Por lei, os fabricantes não podem afirmar que a cápsula cura câncer ou algo parecido – já que não têm evidências científicas para respaldar uma alegação do tipo –, mas nem precisam: quem compra, conhece a lenda.

Choque emocional e bicarbonato

O médico Ryke Geerd Hamer, que morreu ano passado, desenvolveu sua “nova medicina alemã” dizendo que toda doença tinha origem num choque emocional, que vírus e bactérias não causam doenças, que doenças não existem e toda medicina moderna é uma conspiração dos judeus para matar não-judeus.

Hamer perdeu seu diploma quando atendeu a Olivia Pilhar, de 6 anos, portadora de tumor de Wilms, um câncer renal comum em crianças. O médico afirmou que a criança não tinha um tumor, mas “conflitos”, e por isso a família deixou a Áustria para que ele pudesse “tratá-la”.

A criança piorou. O tumor, que chegou a pesar 4 quilos, disseminou-se pelo abdome da menina e afetou sua respiração. O governo austríaco interveio, a família retornou ao país, a menina foi tratada e está viva: a demora reduziu suas chances de cura de 90% para 10%, mas ainda assim, Olivia sobreviveu.

Outro que perdeu o diploma por conta de falsas promessas de cura do câncer foi o médico italiano Tullio Simoncini, que saiu dizendo que o câncer é causado pelo fungo Candida albicus, o mesmo que causa o “sapinho” na boca e pode atingir outras partes do corpo. Simoncini diz que o câncer não passa de um supercrescimento desse fungo e, portanto, pode curar o câncer com injeções de bicarbonato de sódio. Em 2005, foi condenado por homicídio após a morte de um paciente e novamente em 2011, por uma segunda morte.

Mesmo após duas condenações de homicídio e a perda de diploma, Simoncini segue publicando livros e divulgando seu “tratamento”, posando de vítima (de conspiração da indústria farmacêutica, claro).

Terapia Gerson

Em 1927, o médico alemão de origem judaica Max Gerson desenvolveu uma dieta para tratamento da tuberculose, e logo depois acreditou que sua invenção funcionava também para enxaqueca e, no ano seguinte, para câncer.

Essa é outra marca das falsas terapias: elas prometem ser a cura única de várias doenças diferentes. O pedido de patente brasileiro para a fosfoetanolamina de São Carlos (PI 0800463-3 A2) fala em correção de disfunção celular e metabólica (ou seja, as várias formas de diabetes, qualquer disfunção de tireoide, pituitária e outras glândulas), inclui atividades antiproliferativas, apoptóticas (contra o câncer), antiepiléptica e neuroprotetora, o que engloba desde doenças neurodegenerativas como Alzheimer, Parkinson, até AVC.

Enfim, Gerson fugiu da Áustria para a França, seguiu para a Inglaterra e estabeleceu-se nos Estados Unidos, onde passou a aplicar sua dieta em pacientes terminais de câncer, baseado na crença de que a doença era causada por acúmulo de toxinas e por falta de enzimas do pâncreas.

“Toxinas”, aliás, é outra palavra característica dos falsos tratamentos. A dieta Gerson era vegetariana e incluía a ingestão de sucos e suplementos vitamínicos de hora em hora, e a administração de óleo de rícino e enemas de café quente. Não é preciso ser médico para imaginar o efeito devastador de constantes lavagens intestinais, e de óleo de rícino, um laxativo, em pacientes terminais já bastante debilitados. 

Gerson publicou um livro, alegando ter curado 50 pacientes terminais, o que nunca foi comprovado. Seus seguidores, obviamente, diziam haver uma conspiração dos médicos contra ele. Sua licença para clinicar foi suspensa em 1958, e no ano seguinte ele morreu de pneumonia.

O médico deixou uma filha, Charlotte, que estabeleceu o Instituto Gerson, em 1977, para promover a “terapia” criada pelo pai. A dieta original previa a ingestão de fígado cru de bezerro e, por causa disso, pelo menos dez pacientes contraíram uma infecção causada por uma bactéria rara, a Campylobacter fetus, e foram hospitalizados, cinco deles em coma.

O fígado cru saiu da dieta, mas tanto o instituto quanto Charlotte continuam de pé, ela com 96 anos completados em março, promovendo a tal “cura natural”.

Creme cáustico

Moda nos Estados Unidos, o Cansema ou black salve, é uma pasta que, aplicada à pele, queima e destrói o tecido, deixando uma escara profunda e preta. Esse produto era usado por volta de 1900 para “tratar” problemas de pele, desapareceu do mercado porque apareceram tratamentos bem melhores e voltou agora, promovido por “terapeutas alternativos e naturais” como cura para o câncer de pele.

Uma americana com câncer de mama resolveu usar a pasta e documentou seu “progresso” nas páginas de um grupo favorável ao produto, até que seu quadro se agravou. Ela procurou um médico, mas morreu pouco tempo depois. As autoridades de saúde norte-americanas têm feito alertas periódicos contra o produto.

O Creme Cansema é um produto curativo com uma história milagrosa com raízes desde o século 19. Apenas a supressão e a ganância têm impedido suas enormes vantagens de serem disponibilizadas para o público em geral,“ diz um dos sites que vendem o produto no Brasil. E continua: “Taxa de cura de mais de 99% para novos cânceres e 95% para os cânceres recorrentes!”

Consultada, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) limitou-se a informar que o produto não é registrado no País e que “a propaganda irregular de medicamentos é considerada uma infração sanitária e punida com notificação, interdição ou multa, que pode variar entre R$ 2 mil e R$ 1,5 milhão. Além disso, o infrator também ocorre em infração criminal, uma vez que comete crime contra a saúde pública. Nestes casos, a avaliação é feita pelos órgãos policiais.” A pasta “milagrosa” continuava à venda quando do fechamento desta reportagem.

Lista sem fim

A lista de falsas curas do câncer, e de curas não comprovadas, é imensa e variada. Passa pela medicina holística, medicina ayurvédica, aromaterapia, homeopatia, inclui dezenas de dietas, como macrobiótica, dieta alcalina, dieta aleluia (baseada na ingestão de alimentos crus citados na Bíblia...), terapia magnética (com ímãs), as baseadas em plantas e fungos como a babosa, os já citados ipê-roxo, cannabis e graviola, chás e cápsulas de vários tipos de pimenta, cúrcuma, gengibre, ginseng, óleo de rícino, algas e extrato de dioneia, aquela plantinha carnívora.

 

Segue a linha do tempo

Estão ainda na lista reiki, apiterapia (que é a aplicação de venenos e produtos feitos por abelhas), câmara hiperbárica, oxigenioterapia, acupuntura e MMS (miracle mineral supplement), que vem a ser o uso de uma solução tóxica de clorito de sódio, empregada na indústria para branqueamento de tecidos e de papel – só isso basta para imaginar o efeito devastador sobre o organismo de um paciente com câncer.

Também não se pode deixar de lado as tradicionais cartilagens de tubarão a e urinoterapia, que consiste no consumo, supostamente terapêutico, da própria urina, e que andou na moda recentemente nos EUA e Austrália.

Espaço de medo

Boa parte das falsas curas do câncer se vale de falta de informação sobre a doença, complexa, que envolve uma série de mutações genéticas que se acumulam ao longo de décadas, até produzirem a doença. Além disso, um grande número de pessoas acredita que câncer é uma doença só, que aparece em diferentes partes do corpo, e não 200 doenças diferentes que têm em comum a proliferação desenfreada de células.

Visto desse ângulo, faz sentido acreditar que se trata de uma doença simples, que deveria ser curada por uma única droga ou duas ou três, quem sabe. Se isso não acontece, é porque há conspiração de indústria farmacêutica, médicos e cientistas, para ganhar mais dinheiro com tratamentos cruéis.

Ficam fora desse raciocínio o fato de parentes e médicos também sofrerem de câncer e morrerem; de que é muita gente no mundo para uma conspiração só; e que paciente morto não gasta dinheiro com remédio.

As terapias cientificamente validadas para o tratamento do câncer fizeram grandes progressos nas últimas décadas. As cirurgias passaram a ser menos invasivas, com uso de laparoscopia e robótica, mais conservadoras, com preservação de órgãos sempre que possível, mais precisas, com remoção do tumor e área saudável com margem de segurança, ao ponto que mesmo pacientes idosos, na faixa dos 80 anos, são operados hoje, sem maiores complicações.

Vale o mesmo para a radioterapia, que se tornou um tratamento de precisão, planejado por computador para focar o máximo da radiação no tumor, preservando os tecidos saudáveis.

Mas a químio, que também avançou, hoje até com quimioterápicos que atingem quase que apenas as células cancerosas, causando poucos danos às saudáveis, ainda provoca náuseas, vômitos e perda de cabelo, entre outros efeitos que assustam os pacientes e seus parentes.

É nesse espaço do medo que aparecem as fosfoetanolaminas, os óleos de maconha, os extratos de plantas carnívoras e o pobre bicarbonato de sódio, prometendo cura barata e sem efeitos colaterais.

Biologia

Células normais são obedientes. Só se dividem quando recebem ordens (sinais químicos) para isso, especializam-se e têm “prazo de validade”. As células de revestimento do intestino delgado vivem apenas de 2 a 4 dias. São as que mais rapidamente morrem e são repostas. As do intestino grosso duram de 3 a 4 dias, os glóbulos vermelhos vivem 120 dias, as células beta do pâncreas vivem entre 20 e 50 dias, células gordurosas, os adipócitos, vivem 8 anos e as células do sistema nervoso central podem durar a vida inteira.

Quando células envelhecem, ou passam a funcionar com problemas, recebem ordem para morrer, um processo chamado apoptose, e outras células se dividem para fazer a reposição.

Já as células do câncer são imortais. Não obedecem às ordens para morrer e se dividem loucamente, ignorando os sinais para parar. Não se especializam, criam novos vasos sanguíneos para obter oxigênio e nutrientes. Driblam o sistema imunológico e até conseguem cooptá-lo, para ajudá-las a chegar a órgãos distantes do tumor inicial. É por isso que, para enfrentá-las, é preciso um arsenal pesado e variado. Células saudáveis sofrem, sim, com essas ofensivas.

Apelo

Nos EUA, o apelo da cura barata é grande, dado o sistema de saúde do país, com planos de saúde caríssimos e medicamentos e procedimentos idem.

No Brasil, temos o acesso limitado a exames de detecção precoce, como mamografia, notadamente no Sistema Único de Saúde (SUS), que volta e meia sofre com equipamentos de radioterapia quebrados, falta de quimioterápicos e uma demora angustiante para o início do tratamento.

Além disso, neste País a maior parte dos casos de câncer é diagnosticada em estágio avançado, quando as chances de remissão são menores e o tratamento, bem mais agressivo. E aqui se soma a falta de atendimento com a formação de nossos médicos: a maioria das faculdades de medicina não tem a oncologia como disciplina obrigatória e o profissional só vai aprender sobre câncer se especializar-se na área. O impacto dessa falha na formação é enorme no diagnóstico precoce da doença.

É, na maioria das vezes, no momento em que equipe médica informa paciente e família de que não há muito mais a fazer em termos curativos, ou porque o câncer é particularmente agressivo, ou foi diagnosticado em estágio avançado, ou o tratamento convencional não funcionou que a família se desespera e o paciente, também.

E aqui temos outra falha da medicina brasileira, que felizmente está mudando: a falta de equipes capacitadas de cuidados paliativos na maioria dos hospitais, tanto do SUS quanto da rede particular.

O trabalho desses profissionais é fazer o possível para que o paciente não tenha dor, se alimente e tenha a melhor qualidade de vida possível no tempo que lhe resta. E que tome decisões importantes, inclusive sobre a vida prática, seus bens, suas vontades.

Talvez o caso brasileiro mais conhecido seja o do ex-governador de São Paulo e ex-senador Mario Covas, que, acometido por câncer de bexiga sem possibilidade de remissão, decidiu que não fossem usados recursos extraordinários para mantê-lo vivo, como ressuscitação, entubamento ou outros. Não é uma decisão fácil e ela precisa ter o apoio e a compreensão da família, e o respeito à vontade do doente.

Guerra de mídia

Blogs, redes sociais, Youtube, WhatsApp, Pinterest e Instagram têm um papel enorme na disseminação rápida dessas falsas curas e de todo tipo de fake news. Chierice era apenas uma figura folclórica na cidade de São Carlos até o portal G1 noticiar, nacionalmente, que a USP tinha proibido a produção e distribuição de suas pílulas.

A história viralizou em pouco mais de 3 horas e, no dia seguinte, já era manchete não apenas nas mídias sociais, mas na grande imprensa, rádio, TV e jornais impressos.

 

Fim da linha do tempo

Estudos mostram que as chances de uma postagem se tornar viral aumentam exponencialmente quando a mensagem apela para o emocional e não para a lógica, o racional. Não basta dizer que Anitta é a maior cantora de todos os tempos (questão de opinião). O que faz a mensagem viralizar é ser acompanhada por um “e quem não concorda comigo é um idiota.”

Jay Van Bavel, professor da New York University e que pesquisa a que tipo de informação as pessoas reagem nas mídias sociais, explica que somos animais sociais que precisam constantemente de reforço do pertencimento, a sensação de fazer parte de um grupo, seja ele uma igreja, a torcida de seu time de futebol, o dos fãs de determinado cantor ou atriz. Isso cria uma espécie de linguagem tribal que reafirma quem você é, o que é importante para você e a que grupo, ou grupos, pertence.

E isso assume ares extremos, tanto na política como nas torcidas: basta ver os termos em que torcedores (de políticos e times de futebol) se referem aos adversários. E quanto mais radical e carregada de adjetivos a mensagem, maior a chance de viralizar.

“Cura do câncer” já desperta atenção, mas se ela for “milagrosa’, “natural”, “sem efeitos colaterais” e ainda por cima estiver sendo “ocultada” pelas multinacionais farmacêuticas, pode apostar que ela vai se espalhar de forma incontrolável.

Quando isso ocorre, nenhum discurso moderado e racional vai arrancar os adeptos de sua posição. Ao contrário, eles vão se fechar em seus grupos: e quem busca o esclarecimento passa a ser o inimigo, aquele que não enxerga a verdade porque é subornado pelas farmacêuticas, não tem coração e quer ver pacientes de câncer sofrendo e morrendo nas mãos de médicos gananciosos.

Tenho, arquivadas em pendrives, mais de 50 ameaças à minha pessoa, algumas de morte, em que sou acusada de receber rios de dinheiro da indústria farmacêutica para escrever contra a “fosfo”.

Tradicionalmente, médicos, cientistas e, também, jornalistas não comentamos ou damos destaque a curas milagrosas e a seus promotores, justamente para não pô-los em evidência. A internet, no entanto, dispensa essa cautela: escancara as falsas curas, enquanto nos encolhemos no silêncio e em textos esclarecedores que essas pessoas não vão ler.

Dois dias depois de dar destaque à “pílula do câncer da USP”, o mesmo G1 entrevistou Vilma Martins, superintendente de pesquisa e chefe do grupo de Biologia Tumoral e Biomarcadores do AC Camargo Cancer Center, que explicou detalhadamente os passos exigidos para a pesquisa de um novo medicamento e mostrando que Chierice tinha apenas cumprido etapas iniciais, não dispondo de evidências para afirmar que suas cápsulas efetivamente podiam curar o câncer.

Praticamente nenhum, entre as centenas de comentários de leitores que se seguiram, mencionava o conteúdo da entrevista e praticamente todos mencionavam teorias conspiratórias ou pediam informações sobre como obter a fórmula milagrosa.

Os ataques a médicos, pesquisadores e jornalistas que punham em xeque ou contestavam as alegações do químico da USP começaram simultaneamente. Todas as pesquisas posteriores que mostravam a ineficácia do produto foram rapidamente rotuladas de compradas, falsas ou malfeitas. O fenômeno, batizado de fake news, não dá sinais de enfraquecimento, ao contrário. E talvez seja hora de médicos, cientistas e jornalistas repensarem a forma como se posicionam diante dessas falsas notícias e desses falsos milagres. A emoção sufocou a razão.

Ruth Helena Bellinghini é jornalista, especializada em ciências e saúde e atualmente é colaboradora do site Medscape. Foi bolsista do Marine Biological Lab (Mass., EUA) na área de Embriologia e Knight Fellow (2002-2003) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde seguiu programas nas áreas de Genética,  Bioquímica e Câncer, entre outros.

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