
Os textos didáticos em evolução quase todos apresentam o assunto de maneira muito similar. Correndo o risco de fazer uma caricatura (mas temo que não), geralmente o que se faz é contrastar as ideias propostas por Darwin com as de Lamarck e concluir que a explicação de Darwin é muito superior e consistente com a genética que se desenvolveu a partir do século 20 (o que é verdade). Geralmente atribui-se a Lamarck as ideias de herança dos caracteres adquiridos, a lei do uso-e-desuso, e a transformação de seres mais simples (que surgiram por geração espontânea) para os mais complexos ao longo do tempo. Ainda, dá-se a entender que Darwin não concordava com nada disso (o que não é de todo verdade). Então, já sendo muito sincero e indo direto ao ponto, esse Lamarck não existe. Como destacou de forma enfática o historiador da biologia Michael Ghiselin em seu ensaio O Lamarck Imaginário (1994):
“O Lamarck apresentado nos livros didáticos, no entanto, é uma ficção — uma figura imaginária moldada a partir de boatos e suposições erradas, e replicada em inúmeros livros por sucessivas equipes de plagiadores. Essa figura compartilha muito pouco, além do nome, com o Lamarck histórico. Os autores de livros didáticos... lhe atribuíram ideias que ele de fato não sustentava. Também inventaram um mito no qual essas ideias são falsamente comparadas às de Darwin, criando uma dicotomia enganosa”.
Nos próximos parágrafos, apresento uma versão talvez mais fidedigna das ideais de Lamarck, além de desmistificar algumas crenças sobre ele. Antes, porém, vamos tentar compreender um pouco quais eram as ideias de Lamarck.
Um dos argumentos mais importantes e centrais defendidos por Lamarck é a ideia de que haveria uma tendência natural à “perfeição”. Organismos simples surgiam por geração espontânea (uma crença que não era absurda em seu tempo) e então algum princípio físico/químico/biológico impelia as espécies a mudar ao longo do tempo, seguindo um caminho em direção à complexidade, rumo a se tornarem organismos superiores. É preciso enfatizar que esse princípio era entendido por Lamarck como algo estritamente materialista, não místico (no sentido de imaterial).
Porém, dado o que era observado nos seres vivos, Lamarck sabia que essa tendência não conseguia explicar por que algumas linhagens pareciam ter se desviado do caminho e adquirido formas menos complexas do que o esperado. Mas ele tinha uma explicação para isso: os organismos precisavam se adaptar às condições de vida às quais estavam expostos; e como essas condições eram mutáveis e não previsíveis, nem necessariamente se alinhavam em direção ao progresso da organização biológica, organismos podiam ser desviar do caminho “certo”.
O ambiente, então, influenciava a mudança dos seres vivos. E não só de maneira indireta, mas induzia mudanças. Em sua obra Filosofia Zoológica (1809), Lamarck escreveu:
“O ambiente afeta a forma e a organização dos animais, isso quer dizer que, quando o ambiente se torna muito diferente, ele produz, ao longo do tempo, modificações correspondentes na forma e organização dos animais”.
Mas também os organismos influenciavam sua própria evolução. Por exemplo, se um organismo passa a utilizar mais um determinado órgão ou parte de seu corpo, essa parte poderia ser então mais bem desenvolvida. Suponha que um organismo passasse a escavar mais. Isso iria implicar em músculos do membro escavador sendo mais utilizados. Esses músculos se fortaleceriam. Se uma determinada estrutura ficasse gerações e gerações sem ser muito usada, isso resultaria em atrofia. Esse é o cerne a lei do uso-e-desuso. Uso reforça e modifica, desuso leva à atrofia e eventual perda.
Combinando a influência do ambiente à lei do uso-e-desuso, Lamarck escreve:
“Se um novo ambiente, que se tornou permanente para uma raça de animais, induzir novos hábitos nesses animais, ou seja, levá-los a novas atividades que se tornam habituais, o resultado será o uso de certas partes em detrimento de outra parte, e, em alguns casos, o completo desuso de alguma parte não mais necessária”.
Mas, para que essas mudanças em organismos pudessem se acumular ao longo do tempo, elas precisariam ser herdadas. É aí que, no esquema de Lamarck, entra a herança dos caracteres adquiridos, a ideia de que mudanças corporais adquiridas durante a vida de um organismo podem ser transmitidas aos seus descendentes. Pronto, assim os seres se transformavam e no fim levavam a si mesmos à extinção. Quer dizer, pseudo-extinção, pois as espécies não eram realmente extintas, apenas se transformavam em outras, gradualmente, ao longo das gerações.
Agora, imagino, muitos leitores podem estar se perguntando onde entram as girafas nessa história. Esse clássico exemplo já foi contado e recontado inúmeras vezes (veja o relato neste popular site), mas o que o próprio Lamarck afirmou? Ele considerava o exemplo particularmente importante? Primeiro, vamos ao que ele disse em Filosofia Zoológica:
“É interessante observar o resultado do hábito na forma e no tamanho peculiares da girafa (Camelo pardalis): sabe-se que esse animal, o mais alto entre os mamíferos, vive no interior da África, em lugares onde o solo é quase sempre árido e estéril, de tal modo que ele é obrigado a se alimentar das folhas das árvores e a fazer um esforço constante para alcançá-las. Desse hábito, mantido longamente por todos os indivíduos da raça, resultou que as patas dianteiras do animal tornaram-se mais longas do que suas patas traseiras, e que seu pescoço se apresenta alongado a tal ponto que a girafa, sem erguer-se sobre as patas traseiras, pode levantar sua cabeça a uma altura de seis metros (quase vinte pés)” (Lamarck, 1809, v. 1, p. 256, citado em Krizek, 2024).
Stephen Jay Gould (sempre ele) escreveu sobre essa questão do tamanho do pescoço da girafa em The Tallest Tale (“Uma História Longa”, na versão traduzida do volume de ensaios de Gould “A montanha de moluscos de Leonardo da Vinci”, publicado no Brasil em 2003), um de seus mais famosos textos para a revista Natural History, e que é um dos meus favoritos. Recomendo o ensaio, mas para um sumário da posição de Gould, um artigo relativamente recente de João Krizek, publicado na Revista de Ensino de Biologia em 2024, pode ser interessante.
Gould argumenta que o exemplo do pescoço da girafa, frequentemente usado como símbolo da teoria de Lamarck, tem pouca base histórica ou científica. Segundo ele, o próprio Lamarck deu pouca ênfase a esse exemplo e, ao que tudo indica, desconhecia dados já disponíveis que mostravam que as patas dianteiras e traseiras das girafas são de tamanho semelhante (contraste com a afirmação de Lamarck acima), o que indica que o animal não era central em sua teoria. Do mesmo modo, Darwin sequer mencionou o pescoço da girafa na primeira edição de A Origem das Espécies, tratando apenas da cauda do animal como exemplo de seleção natural. O destaque dado ao pescoço surgiu depois, em resposta à crítica de George Mivart, que caricaturou a teoria darwiniana.
Além disso, tanto Darwin quanto Lamarck consideravam múltiplos fatores na explicação das transformações evolutivas, incluindo o uso-e-desuso e herança dos caracteres adquiridos, bem como a ação direta do ambiente (menos importante no esquema darwiniano, mas não ausente). Sim, é isso mesmo, Darwin acreditava nessas ideias como auxiliares à sua teoria da seleção natural. Não acredita? Vejamos o que ele diz na primeira edição de A Origem das Espécies (1859):
“Pois a seleção natural atua adaptando, no presente, as partes variáveis de cada ser às suas condições orgânicas e inorgânicas de vida; ou tendo-as adaptado em períodos muito remotos: adaptações essas que, em alguns casos, são auxiliadas pelo uso e desuso, ligeiramente influenciadas pela ação direta das condições externas de vida e, em todos os casos, sujeitas às diversas leis do crescimento”. (p. 206, ênfase minha)
E a herança dos caracteres adquiridos? Darwin pensava o seguinte (p. 133):
“A partir dos fatos mencionados no primeiro capítulo, creio que há pouca dúvida de que o uso, em nossos animais domésticos, fortalece e aumenta certas partes, enquanto o desuso as diminui; e que tais modificações são herdadas”.
Vamos resumir, então, o que é seguro afirmar sobre Lamarck; para uma discussão mais detalhada, recomendo o já citado artigo de João Krizek. Lamarck nunca reivindicou como original a ideia da herança de caracteres adquiridos, pois o conceito já era amplamente aceito desde a Antiguidade e, em sua época, parecia tão evidente que ele o incorporou naturalmente. Contudo, essa herança representava apenas um pequeno aspecto dentro de um sistema teórico muito mais complexo, que envolvia, entre outros elementos, o uso e desuso, a geração espontânea de organismos simples e ideias fisiológicas contemporâneas. Embora não tenha detalhado os mecanismos da herança — compreensivelmente, dado o estágio da ciência em seu tempo —, Lamarck impôs condições específicas para sua ocorrência, como a necessidade de que os caracteres adquiridos fossem comuns a ambos os sexos e não resultantes de acidentes.
Como vimos, Darwin também acreditava na herança de caracteres adquiridos e foi ele, não Lamarck, quem tentou explicá-la por meio da hipótese da pangênese — hipótese de Darwin segundo a qual partes do corpo liberavam gêmulas, pequenas partículas que se acumulavam nas gônadas e transmitiam características hereditárias aos gametas. Ainda assim, Darwin omitiu o nome de Lamarck em obras importantes, como Variation of Animals and Plants under Domestication. Adicionalmente, Darwin abraçou a ideia de uso-e-desuso associada à herança dos caracteres adquiridos. Portanto, usar o termo “lamarckiano” apenas como sinônimo dessa herança é historicamente injusto e simplista. A visão caricata de Lamarck como um pensador ultrapassado, em contraste com Darwin como um herói visionário ignora a profundidade e sofisticação da teoria lamarckiana, que merece uma reavaliação mais justa e informada.
Por isso um historiador da biologia morre cada vez que alguém usa herança dos caracteres adquiridos, uso-e-desuso e ação direta do ambiente como diferenças entre Darwin e Lamarck. Ecoando Ghiselin (que deve ter escrito seu ensaio com uma faca nos dentes):
“Todas essas deturpações com relação a Lamarck fazem parte de um equívoco maior: os livros didáticos colocam Lamarck contra Darwin em uma disputa mítica da qual Darwin sai vitorioso...
“A história contada na maioria dos livros escolares é ainda mais enganosa porque isola Darwin de Lamarck, como se não houvesse nenhuma conexão histórica ou intelectual entre eles. Isso também é falso.
“A partir de tais desinformações — sobre Lamarck, Darwin e tudo o mais — é fabricada a falsa ‘história’ da ciência presente em nossos livros escolares”.
E assim termina mais um ensaio. Me alonguei demais e ainda não cobri tudo o que queria (acontece com frequência). Existe outro ponto sobre Lamarck que é negligenciado nos relatos históricos: ele fez crescer uma árvore em Paris. Entendeu? Se não, um dia eu explico. Até!
João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade