Acredito que, para muitos, o período de transição entre empregos é marcado por inúmeras inseguranças. Pelo menos foi isso que vivenciei quando decidi mudar de área e focar, um pouco mais, em divulgação científica. Entre as principais dúvidas havia questões como: será possível escrever mais de dois artigos por mês? Tenho competência para isso? E, caso tenha, não esgotarei os assuntos?
Felizmente, o Monstro do Espaguete Voador me enviou um sinal, por meio de um convite que compartilharei com vocês: “1º Workshop gratuito: Nova Colonterapia integrada à Nova Nutrição! Desintoxicar para nutrir. Conheça os princípios e fundamentos dessa valiosa técnica, suas aplicações, vantagens e os resultados da ferramenta que está revolucionando os conceitos da Nutrição. Venha fazer parte da nova geração de nutricionistas!”.
Nunca ouvira falar de colonterapia, e a priori, acreditei que poderia ser uma prática legítima. Entretanto, a palavra “desintoxicar” gerou desconfiança, visto que “detox” é expressão amplamente utilizada por vendedores de terapias pseudocientíficas. Curiosamente, poderia descrever o evento exatamente com essas três palavras, dado que o site da palestrante convidada a apresenta como a maior investigadora de "parasitas-corda" (rope worms) na América do Sul e que estes, quando presentes no intestino, levam à compulsão alimentar, obesidade e outros problemas de saúde. Felizmente, não será necessário me aprofundar na patacoada dos “parasitas-corda”, pois o doutor em microbiologia Luiz Gustavo de Almeida escreveu um excelente artigo para a RQC - para lê-lo, só clicar aqui.
Antes de adentramos no assunto, adianto que a prática, além de rala em termos de artigos científicos que “corroborariam” sua aplicabilidade, traz riscos à saúde.
O que é colonterapia?
Ernst, E. (1997) explica que a colonterapia baseia-se na antiga teoria da autointoxicação, crença (falsa) de que os subprodutos da digestão incompleta poderiam envenenar o corpo e, consequentemente, causar doenças. E, como apontado pelo autor, a cura, nesse esquema, parecia ser muito simples – realizando uma tradução livre – “para minimizar os riscos da autointoxicação, o tempo de contato entre o material tóxico e os intestinos precisa ser reduzido”. Nessa lógica, os purgativos, fármacos com efeitos laxativos e que só devem ser utilizados sob orientação médica, pareciam ser a resposta mais adequada. Com base numa intuição parecida, diversas linhas de medicina tradicional, como a chinesa, egípcia, suméria, entre outras, incluíam enemas (soluções infundidas via retal) em seu arsenal terapêutico.
De acordo com o artigo publicado por Marques, A. e Neto, M. em 2010, intitulado “Das Medicinas Tradicionais às Práticas Integrativas de Saúde: Caracterização dos Recursos Humanos nas Práticas Alternativas de Saúde Adotadas no Distrito Federal”, a hidrocolonterapia, também conhecida como colonterapia, é um método de limpeza dos intestinos realizado por meio de um sistema fechado de lavagem, que inclui monitoramento de temperatura, pressão e volume, oferecendo maior comodidade, segurança e eficácia para o paciente em comparação a outros métodos.
Nesse sistema, o paciente fica deitado em uma maca e recebe, através de um tubo plástico, água para dissolver os conteúdos “duros” do intestino. O terapeuta, nesse momento, consegue identificar as áreas problemáticas e realizar uma massagem abdominal específica para facilitar a excreção dos conteúdos estagnados.
Voltando ao site da colega palestrante, ali se afirma que a técnica de colonterapia consiste na introdução de 20 a 30 litros de água morna e filtrada por via retal. Isso permite a entrada de água e o esvaziamento das fezes, o que resulta na remoção das “placas mucoides” do cólon e no aumento do tônus muscular.
O grifo anterior serve para salientar uma informação quase irrelevante. O conceito das placas mucoides, proposto pelos colonterapeutas, está incorreto, e o motivo é simples: elas simplesmente não existem.
O termo foi cunhado por Richard Anderson, um herbalista, iridologista, curador natural e, claro, empreendedor que começou a vender programas de desintoxicação. De acordo com ele, a placa mucoide é uma combinação de mucinas, matéria fecal, mucoproteínas, entre outras substâncias. A hipótese (sem base na realidade) propõe que as tais placas se acumulam nas paredes intestinais e reduzem a absorção de nutrientes. Vamos deixar claro, mais uma vez, que se trata de uma teoria nunca comprovada e que já caiu por terra.
Alguns proponentes da prática afirmam que a colonterapia, quando realizada no intestino grosso e delgado (detox intestinal), pode oferecer outros benefícios à saúde, como a remoção de colônias de fungos e parasitas, remoção da compulsão alimentar e maior aderência a reeducação alimentar.
É inadmissível um profissional prometer a “remoção” da compulsão alimentar por meio de uma prática pseudocientífica e perigosa. Isso me leva a crer que ou estamos lidando com ignorância, ou com negligência. Torço para que seja o primeiro caso, mas, na prática, para as vítimas, não faz diferença.
Os riscos
Oliveira, L., em uma carta ao editor intitulada “Análise crítica da colonterapia: Fatos e verdades” para a Revista Brasileira de Coloproctologia em 2007, escreve o seguinte a respeito da base teórica da prática:
“Estas teorias foram abandonadas por volta do ano de 1920 (...) estudos de autópsias realizadas em pacientes constipados ou observações durante operações intestinais jamais demonstraram a ocorrência de aderência fixa de fezes nas paredes do cólon”.
Além de denunciar a prática como baseada em postulados ultrapassados, o artigo aponta que a realização dessas lavagens pode trazer riscos à saúde do paciente, embora esses riscos sejam, obviamente, minimizados pelos praticantes. Entre os possíveis problemas estão a perfuração do reto, insuficiência cardíaca, alterações eletrolíticas, distensão abdominal, desmaio e transmissão de doenças, como a amebíase, quando o equipamento utilizado não é adequadamente esterilizado. As complicações podem ser ainda mais graves quando o paciente é portador de alguma patologia inflamatória ou de um tumor.
Claro, pode-se argumentar que essas ocorrências são casos isolados, o que pode ser verdade. Entretanto, como a prática não apresenta nenhum benefício, qualquer nível de risco é inadmissível.
Mas não funciona mesmo?
Surpreendendo o total de zero pessoas, a literatura científica é bastante clara ao afirmar que não existem benefícios promovidos pela terapia.
Acosta, R. e Cash, B. (2009) conduziram uma revisão sistemática intitulada “Clinical Effects of Colonic Cleansing for General Health Promotion: A Systematic Review” examinando artigos relevantes sobre a prática publicados entre 1º de janeiro de 1966 e 3 de janeiro de 2009.
Foram encontrados quase 300 artigos, mas depois de controlar a qualidade dos estudos, os pesquisadores ficaram com apenas dois testes clínicos e 15 relatos de caso e revisões. Dos testes clínicos, um investigou os efeitos da hidrocolonterapia no trânsito intestinal em pacientes com constipação crônica, e outro avaliou a aceitação de uma terapia medicamentosa para o tratamento de viciados em heroína.
Embora o segundo estudo tenha apresentado uma conclusão favorável à hidrocolonterapia – o grupo que recebeu a terapia medicamentosa junto à hidrocolonterapia teve uma resolução mais rápida dos sintomas de abstinência -, o resultado deve ser questionado. Não porque exista uma conspiração que tente esconder as vantagens da prática, mas devido à falta de clareza na metodologia empregada e ao fato dos autores basearem suas conclusões sobre os benefícios numa avaliação de mudanças na pigmentação cutânea, um critério no mínimo estranho para os objetivos declarados do ensaio.
Além disso, os autores da revisão afirmam não ter encontrado nenhum artigo que descrevesse os efeitos da hidrocolonterapia ou dos enemas na promoção geral de saúde humana.
Reforça-se, ainda, que a maior parte dos demais artigos que satisfizeram os critérios de seleção aponta os efeitos adversos da prática.
Dentre os relatos de caso, temos o exemplo de uma mulher chinesa de 42 anos que apresentou confusão mental e perda de memória devido à hiponatremia (baixo nível de sódio) mediada por intoxicação aguda por água. Ademais, foram registrados três casos de perfuração retal após irrigação colônica administrada por um praticante da medicina alternativa na Austrália.
Os autores concluem que uma das limitações da análise é o fato das complicações e resultados adversos receberem uma maior atenção na comunidade médica, podendo representar um viés de publicação.
Entretanto, isso não nega o fato da inexistência de ensaios clínicos de boa qualidade publicados na literatura médica que comprovem a eficácia do uso regular ou periódico de protocolos de hidrocolonterapia, ou demais terapias purgativas, na promoção de saúde geral.
O workshop
O workshop ocorreu em 19 de outubro e foi organizado por duas empresas do ramo de suplementação e que, aparentemente, acreditam tanto na esdrúxula ideia de “detox” quanto na prática de hidrocolonterapia. Infelizmente, os ingressos esgotaram rapidamente, impossibilitando-me de assistir à palestra.
Esse fato me gerou diversas reflexões. Uma em especial: não sei se todos os que compareceram acreditam, sinceramente, que a prática funcione, mas mesmo que estejamos tratando de uma pequena parcela, assusta o impacto que esses profissionais terão na vida de terceiros que, por sua vez, podem acabar replicando o discurso e cooptando mais e mais pessoas. Será que estamos diante uma nova geração de profissionais acríticos que acreditam em qualquer coisa?
Para estes profissionais, recomendo o final da carta “Bom senso e bom gosto” endereçada a Castilho por Antero de Quental: “A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. V. exa. precisa menos cinquenta anos de idade, ou então mais cinquenta de reflexão”. Troque futilidade por falta de senso crítico e a reflexão fica perfeita.
Mauro Proença é nutricionista
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, L. “Vermes de corda” não existem, logo não causam autismo. 2019. Disponível em:https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/questao-de-fato/2019/06/01/vermes-de-corda-nao-existem-logo-nao-causam-autismo.
ERNST, E.Colonic Irrigation and the Theory of Autoinxication: A Triumph of Ignorance over Science. Journal of Clinical Gastroenterology 24(4):p 196-198, June 1997. Disponívelem: https://journals.lww.com/jcge/fulltext/1997/06000/colonic_irrigation_and_the_theory_of.2.aspx.
MARQUES, A. e NETO, M. Das Medicinas Tradicionais às Práticas Integrativas de Saúde: Caracterização dos Recursos Humanos nas Práticas Alternativas de Saúde Adotadas no Distrito Federal. Brasília; UnB/ObservaRH/NESP; 2010. 184 p. tab. Disponível em: http://capacidadeshumanas.org/observarh/wp-content/uploads/2016/04/04_das_medicinas-tradicionais_as-pra%CC%81ticas_integrativas_de_saude-END.pdf.
ANDERSON, R. Mucoid Plaque. 2015. Disponível em: https://cleanse.net/mucoid-plaque/.
OLIVEIRA, L. Análise crítica da colonterapia: fatos e verdades.RevbrasColoproct, 2007;27(1): 106-107.Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbc/a/x9ys8DLcvXfwNKwcP3tfMMr/?lang=pt.
ACOSTA, R. e CASH, B. Clinical effects of colonic cleansing for general health promotion: a systematic review. Am J Gastroenterol. 2009 Nov;104(11):2830-2836. Disponível em: https://saltcavenz.co.nz/assets/public/images/uploaded/1551934485/ruben-d-acosta-clinical-effects-of-colonic-cleansing-for-general-health-promotion-a-systematic-review-2009.pdf.
QUENTAL, A. BOM SENSO E BOM GOSTO. 1865. Disponível em: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=130209.