Estava mantendo cautela e evitando comentar a Diretriz 46 da mais recente resolução do Conselho Nacional de Saúde que, de forma um tanto quanto vaga, propõe “(Re)conhecer as manifestações da cultura popular dos povos tradicionais de matriz africana e as Unidades Territoriais Tradicionais de Matriz Africana (terreiros, terreiras, barracões, casas de religião, etc.) como equipamentos promotores de saúde e cura complementares do SUS”. Parte da cautela deve-se à óbvia afrofobia de muitas manifestações indignadas (“Candomblé no SUS!”), e parte porque, vaga como a linguagem é, ali poderia haver, de fato, uma boa ideia.
Não é incomum que pessoas que sofrem com problemas de insegurança alimentar ou distúrbios mentais procurem, na primeira hora, um líder religioso ou espiritual – pároco, pastor, pai de santo, o que seja – em busca de ajuda. A confusão histórica entre doença mental e, por exemplo, possessão demoníaca é muito bem documentada e ainda nem foi de todo debelada. Algum tipo de aliança em que a figura religiosa pudesse fazer a ponte entre o doente e o serviço de saúde teria mérito.
Infelizmente, no entanto, o próprio Ministério da Saúde (MS) tratou de esmagar qualquer possibilidade de interpretação otimista da Diretriz 46. Em resposta a questionamentos feitos pela imprensa (aqui e aqui, por exemplo), o MS informou que
“Caso a Diretriz 46 seja aprovada, conhecimentos de matriz africana poderão fazer parte das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS), como acupuntura, homeopatia e ioga, por exemplo”.
A simples existência de PICS vinculadas ao SUS é uma péssima ideia e um erro crasso de política pública, por razões já largamente expostas nesta Revista Questão de Ciência (quem quiser mergulhar no assunto pode começar por textos como este, este e este). Qualquer ampliação do rol de práticas “de saúde” sem base em evidências científicas, ou frontalmente anticientíficas, subsidiadas pelo sistema público será um erro, não importa sua origem.
Estado laico?
A questão se agrava quando a prática em questão tem, como a resolução do Conselho Nacional de Saúde dá a entender, vínculos profundos com crenças e doutrinas religiosas. É meio quixotesco defender o cumprimento do Inciso I do Artigo 19 da Constituição Federal, que proíbe o Estado brasileiro de “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”, ainda mais depois da série de decisões do STF que o transformou em letra morta (como no caso do ensino religioso confessional e da concordata com o Vaticano), mas o fato é que ele ainda está lá.
Não só é difícil argumentar que a integração de ritos (sejam neopentecostais ou afro-brasileiros) religiosos ao SUS não representaria uma forma de subvenção estatal ao culto religioso, como é fácil imaginar o que virá em seguida: na melhor tradição nacional, privilégios indevidos, uma vez estabelecidos, não são eliminados – em vez disso, acabam estendidos a todos, garantindo-se, assim, a doce cooptação de quem poderia talvez reclamar. Convertida a Diretriz 46 em política pública, o reconhecimento de templos evangélicos e igrejas católicas carismáticas como equipamentos do SUS será mera questão de tempo.
A linha entre crença metafísica e terapia sempre foi borrada no universo das PICS. Das 29 que atualmente compõem o Plano Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), poucas são as que não embutem algum tipo de pressuposto que, com um pouco menos de hipocrisia, qualquer um classificaria como religioso, como a existência de uma “energia do Universo” (reiki), possibilidade de contato com os mortos (constelação familiar), reencarnação (antroposofia). Ioga, que pode ser tratado apenas como uma modalidade de treino físico, também muitas vezes inclui um aspecto de doutrinação religiosa, assim como ayurveda. A eventual inclusão de ritos explicitamente religiosos transformaria a linha borrada em inexistente, mandando o Artigo 19 de vez para o espaço. Talvez a única PIC sem uma metafísica peculiar seja a ozonioterapia.
Ciência laica
A separação entre medicina e religião foi um processo histórico longo. Na Antiguidade, Esculápio era ao mesmo tempo médico e deus, e muitos de seus templos tinham características de casas de repouso ou até UTIs, para onde se deslocavam os desenganados e os desesperados.
Na Europa cristã, problemas de saúde eram comumente vistos como castigo divino, interferência demoníaca e médicos apelavam livremente para a astrologia. No século 17, o diarista britânico Samuel Pepys, que viria a ser presidente da Royal Society, escrevia, ao fazer o balanço do ano de 1664, que sua saúde nunca tinha sido tão boa, mas que ele não sabia explicar se o mérito seria “do pé de coelho, das pílulas de terebintina ou de parar de usar um roupão”.
A trama que unia medicina a mágica e religião iria se esgarçar lentamente, a partir do Iluminismo, mas nunca se desfez por completo. A confusão entre doença mental e ataque de demônios ainda é comum em certas comunidades cristãs, e vem sendo estimulada pela multiplicação dos exorcistas. Implementada segundo o entendimento manifestado pelo MS, a Diretriz 46 acelerará e agravará o retrocesso civilizacional inaugurado pela criação do PNPIC.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)