Medicina integrativa: melhor de "dois mundos"?

Questão de Fato
18 mai 2019
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Rótulo de antiga cura "natural"

Em 2006, foi lançado no Brasil o Plano Nacional das Práticas Integrativas e Complementares, ou PICs. Esta nova denominação veio para substituir oficialmente a nomenclatura mais antiga e popularizada, “medicina alternativa”. Veio também oficializar a entrada de várias práticas de medicina alternativa – agora com nome chique – no Sistema Único de Saúde (SUS). Mas, por que tantos nomes? Qual a diferença afinal, entre medicina alternativa, complementar e integrativa?

Não há, na verdade, diferença de substância, mas apenas de denominação. Todas as três “modalidades” referem-se a uma ampla compilação de práticas, sem uma definição clara do que teriam em comum, ou do que, afinal, as legitimaria e permitiria distingui-las de modalidades de tratamento inúteis, de base falaciosa ou inválidos.

Nosso Ministério da Saúde tenta definir assim: "As Práticas Integrativas e Complementares (PICs) são tratamentos que utilizam recursos terapêuticos baseados em conhecimentos tradicionais, voltados para prevenir diversas doenças como depressão e hipertensão. Em alguns casos, também podem ser usadas como tratamentos paliativos em algumas doenças crônicas"

Já o Hospital Albert Einstein oferece: o seguinte: "Ela é focada na pessoa em seu todo, informada por evidências e faz uso de todas as abordagens terapêuticas adequadas, com profissionais de saúde e disciplinas para obter o melhor da saúde e cura (health and healing). A medicina integrativa propõe uma parceria do médico e seu paciente para a manutenção da saúde". Mais adiante, acrescenta que  "faz uso dos conhecimentos das medicinas tradicionais, como práticas meditativas, técnicas de respiração, relaxamento, atenção plena, uso de fitoterápicos, sempre baseados em evidências em relação à segurança e eficácia".

A associação de medicina integrativa da Australásia define como "uma filosofia de cuidados com a saúde focada no paciente como um indivíduo. Combina o melhor da medicina ocidental com terapias complementares baseadas em evidências".

O Conselho de Medicina Integrativa dos EUA diz que "a prática da medicina que reafirma a importância da relação entre o terapeuta e o paciente, focada na pessoa como um todo. A prática é informada por evidência e utiliza todas as abordagens terapêuticas e profissionais da saúde para alcançar a cura e a saúde".

Ainda nos EUA, o Centro Nacional de Saúde Integrativa e Complementar (NCCIH), define: "Saúde integrativa oferece uma combinação de cuidados convencionais e complementares, de forma coordenada. Enfatiza uma abordagem holística, focada no paciente e sua saúde e bem-estar – geralmente incluindo aspectos mentais, emocionais, funcionais, espirituais e comunitários – tratando a pessoa como um todo, em vez de um sistema ou órgão. Busca o cuidado integrado entre terapeutas e instituições".

E finalmente, a definição da OMS, que prefere utilizar os termos medicina alternativa ou complementar: Os termos medicina complementar ou medicina alternativa referem-se a um amplo espectro de práticas de saúde que não fazem parte da medicina convencional do país, e que não estão totalmente integradas no sistema de saúde dominante. São usadas de forma alternada com medicina tradicional em alguns países.

Interpretação

Pondo de lado o fato de que o compilado acima soa mais como uma série de trechos vagos de bilhetinhos de boas intenções do que como  definições úteis e claras de qualquer coisa, o que parece ser comum à maioria das citações é a noção de que para “tratar o paciente como um todo”, “tratar a pessoa e não a doença”, torna-se, de algum modo, necessário sair dos domínios da “medicina convencional” e lançar mão de “conhecimentos tradicionais”. Essa suposta tensão entre “tradicional” e “convencional” é bem interessante, ainda mais quando se nota que nenhum desses adjetivos é adequadamente caracterizado nas definições dadas.

No caso específico das PICs brasileiras, fica aberta a questão de sob que prisma tratamentos concebidos em pleno século 20, como reiki, florais, ozonioterapia ou constelação familiar podem ser considerados “tradicionais”.

Anúncio de rádio para impotência

Outra tensão aparente em parte das definições apresentadas é que existe “tradição” e “evidência”. As expressões “baseado em evidências” ou “informado por evidências”  aparecem seguidas vezes. Mas a que tipo de evidência as definições se referem? Se fossem suficientes para satisfazer critérios científicos de segurança e eficácia, o apelo à tradição seria desnecessário, e as práticas já estariam incorporadas à medicina “convencional”. Se insuficientes, o apelo ao suposto pedigree “tradicional” é não só irrelevante, como também, por causa de seu poder retórico, perigoso.

De qualquer modo, é falsa a ideia de que para tratar o paciente de forma holística, ou para dar-lhe protagonismo em seu tratamento, é preciso sair do universo da medicina dita “convencional”. Todo bom médico está obviamente interessado em restaurar a saúde do seu paciente. Todo bom profissional também está interessado no bem-estar do seu paciente, o que inclui não só a queixa de saúde específica, mas todo o seu entorno. Todo bom profissional deve – ou deveria – estimular mudanças de hábitos em seus pacientes, para evitar doenças graves. Isso é o que os médicos fazem quando aconselham seus pacientes a parar de fumar, ter uma alimentação equilibrada e praticar exercícios físicos.

Se há falhas no sistema, seja por problemas de gestão (falta de tempo adequado para consultas, falta de insumos e centros de diagnóstico adequados) ou por falta de treinamento médico adequado (profissionais mal capacitados), deve-se trabalhar para aprimorar o sistema, e não “integrar” ali um outro sistema que, a pretexto de produzir algum conforto emocional, desperdiça recursos e legitima uma série de crenças e princípios sem base científica e que, se realmente levados a sério, podem produzir graves prejuízos, como no caso das doutrinas vitalistas que minimizam a importância das vacinas, ou que defendem que todo tipo de doença pode ser curado ou evitado por meio de dietas e disciplina mental.

O mundo do joio, o mundo do trigo

Isso porque as práticas integrativas e complementares (PICs) são apenas as mesmas velhas “práticas alternativas”, sem nenhum respaldo científico, de sempre. Das 29 práticas no SUS (entre elas apiterapia, constelação familiar, bioenergética, geoterapia, cromoterapia, homeopatia, florais, etc), apenas yoga, meditação e fitoterapia poderiam figurar como práticas que contam com embasamento científico, a primeira  como atividade física; a segunda, como redução de estresse; e a terceira, em alguns casos específicos de plantas que realmente foram submetidas aos testes clínicos adequados. As demais carecem de comprovação e algumas, como homeopatia, já foram rejeitadas pelo método científico como ineficazes.

Se são as mesmas práticas, por que a mudança de nome?

A desculpa para o uso do termo “integrativa” é que, ao integrar a medicina de base científica – que os alternativos preferem chamar de medicina ocidental, convencional, alopática ou hegemônica – estaríamos obtendo o “melhor dos dois mundos”. Esse conceito é atraente, mas quando um dos mundos é pura fantasia, de que adianta integrá-lo ao mundo real? Além disso, será que essa integração é inócua?

Ao optar pelos adjetivos “complementar” ou “integrativo”, os proponentes dessas práticas buscam se isentar de qualquer responsabilidade caso os pacientes abandonem seus tratamentos médicos convencionais e decidam se jogar de vez nos braços na fantasia. A alegação moderna é de que as PICs devem ser usadas em conjunto com o tratamento regular. Isso também gera a ilusão de que as PICs se encontram no mesmo nível da medicina de base científica. Afinal, o paciente utiliza ao mesmo tempo uma droga convencional e um tratamento ou droga alternativo, todos encampados pelo SUS. E o paciente sai com a impressão de que está mesmo obtendo o melhor de cada mundo.

John Farley, da Universidade de Nevada, arrisca imaginar o que aconteceria se essa ideia de “o melhor dos dois mundos” fosse utilizada em outras áreas além da medicina. “ Biólogos teriam que integrar o criacionismo com evolução darwiniana, enquanto químicos teriam que integrar alquimia com química moderna. Geólogos poderiam integrar a crença de que a Terra tem apenas 6 mil anos (e é plana) com o processo moderno de datação de rochas. Físicos integrariam máquinas de moto perpétuo com a conservação de energia e as leis da termodinâmica. E astrônomos poderiam integrar a astrologia com a astronomia. Isso é obviamente ridículo. Não é uma boa ideia integrar crenças sem sentido com conhecimento científico”.

Mas afinal, que mal tem?

As PICs foram inseridas no SUS com o pretexto de que, ao promover bem-estar, ainda que não funcionassem como cura de coisa nenhuma, poderiam evitar doenças graves como câncer e cardiopatias, desonerando assim o sistema de saúde. No entanto, após 13 anos de sua implantação, não há registro de um único estudo de acompanhamento para verificar essa alegação. Aliás, não há sequer uma regulamentação adequada dessas práticas.

A verdade é que não sabemos se quem usa homeopatia, aromaterapia, imposição de mãos ou reiki sofre menos com câncer e pressão alta. Mas, pela experiência de outros países que fizeram essa avaliação, e pela própria implausibilidade das técnicas, sabemos que isso é altamente improvável.

Nos EUA, em 1998 o Congresso incorporou o que era conhecido como o Centro de Medicina Alternativa (OAM), criado em 1992,  ao NIH (National Institutes of Health), criando o Centro Nacional de Medicina Alternativa e Complementar (NCCAM), com um orçamento anual de US$ 50 milhões. Este orçamento aumentou para US$ 123 milhões em 2005. Em 2014, o centro foi rebatizado Centro Nacional de Saúde Complementar e Integrativa (NCCIH).

 

Antigo anúncio de tratamento "alternativo"

Em 2002, uma década após o estabelecimento do OAM, o editor da revista Scientific Review of Alternative Medicine disse: “Já é tempo de o Congresso extinguir os fundos para o NCCAM. Após dez anos de existência e mais de US$ 200 milhões de investimento, o centro não conseguiu comprovar eficácia de nenhum método alternativo. Encontrou evidência de ineficácia de métodos que já sabíamos, antes mesmo de sua criação, que não funcionavam. As propostas do NCCAM para 2002 e 2003 não são diferentes. Sua única conquista foi manter posições para docentes de faculdades de medicina que estariam fazendo melhor uso do seu tempo em outro lugar”. 

Um artigo na revista Skeptical Inquirer (janeiro 2012) também fez uma análise cuidadosa, vinte anos após a criação do OAM, e concluiu que colocar o centro dentro do NIH foi uma estratégia para estudar cientificamente a legitimidade das práticas alternativas, mas que, depois de duas décadas e um investimento de US$ 2 bilhões, milhares de oportunidade de financiamento criadas e centenas de testes clínicos, ficara óbvio que a premissa era falsa. Não houve uma única descoberta de um novo – ou antigo – tratamento que se mostrasse eficaz. Os autores também indagam por que, após tanto tempo e tanto investimento, para nenhum retorno, o Congresso americano ainda não percebeu que o contribuinte está financiando um projeto inútil.

 A “integração” das práticas alternativas, seja em programas públicos de fomento à pesquisa, como o NIH, seja na rede pública de saúde, como o SUS, confunde a população, e pode desviar pacientes de seus tratamentos convencionais. Não há evidências de que tais práticas economizem dinheiro para os sistemas de saúde, mas há certamente evidências de que consomem dinheiro público, que poderia ser mais bem investido.

No Brasil, sobretudo, onde temos um programa de atenção básica que carece de insumos elementares como luvas, seringas, anticoncepcionais e testes diagnósticos simples, certamente não deveríamos gastar com práticas que não têm comprovação científica. O endosso do governo também contribui para que as escolas de medicina e de saúde continuem ensinando essas práticas, confundindo as novas gerações de profissionais, como também já comentamos aqui.

O que a ciência diz

Não faz sentido haver essa distinção entre medicina convencional, alternativa, complementar ou integrativa. Pouco interessa para a medicina baseada em evidências a origem da prática, se é tradicional, se é milenar ou moderna, se envolve aspectos culturais ou de sabedoria popular, se funciona por relaxamento ou por biologia molecular. Se uma prática mostrar-se segura e eficaz, passar por testes clínicos controlados, randomizados e com grupo placebo, ela será aceita como parte da medicina “convencional”.

O rótulo “integrativo e complementar” é uma tentativa de minimizar o fato de que as terapias reunidas ali não foram aprovadas em testes clínicos rigorosos, e também o fato de que utilizam  conceitos e métodos diagnósticos implausíveis e incompatíveis com tudo o que sabemos hoje sobre Química e Física.

O que nos traz de volta à tensão, presente em parte das definições de “Práticas Integrativas e Complementares” que encontramos entre “tradição” e “evidência”. Se a evidência é adequada, a tradição é desnecessária. Se a evidência é inadequada, o apelo à “tradição” não passa de cortina de fumaça.

Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, coordenadora nacional do festival de divulgação científica Pint of Science para o Brasil e presidente do Instituto Questão de Ciência

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