“O Exorcista do papa” é Hogwarts católico

Resenha
14 abr 2023
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Russell Crowe

 

Quando fiquei sabendo que o falecido padre católico italiano Gabriele Amorth (1925-2016) seria interpretado pelo ganhador do Oscar Russell Crowe, no papel de protagonista de um filme de terror sobre exorcismo, senti um frio na espinha. Amorth, um exorcista muito real, que atuou em Roma por três décadas e uma figura pública popular na mídia italiana, já havia servido de inspiração indireta para o personagem de Anthony Hopkins em “O Ritual”, película sobre exorcismos de 2011 “baseada em fatos reais”. O exorcista por trás dos dois ou três “fatos reais” aproveitados no roteiro de “O Ritual” não era Amorth, mas a personalidade do personagem de Hopkins calcava-se na dele.

Declarar a obra “baseada em”, ou “inspirada por”, fatos reais é estratégia de marketing usada para promover filmes de exorcismo desde “O Exorcista” original, em 1971. Trata-se de manobra que, além de desonesta (o “fato real” muitas vezes se resume a uma linha de diálogo ou a um objeto que aparece em cena), acaba popularizando a ideia de possessão demoníaca como fenômeno palpável e plausível – com todas as repercussões nefastas de saúde mental e também políticas que a acompanham – e enfraquecendo, na cabeça de muita gente, a barreira entre realidade e ficção, que já anda tênue demais no mundo moderno.

Em vida, padre Amorth havia sido um verdadeiro ativista e agitador pró-exorcismo, escrevendo livros que atacavam teólogos e bispos que preferiam ver o diabo como uma figura abstrata, uma metáfora poética para o mal do coração humano, em vez de uma entidade sobrenatural real, um anjo caído; e defendendo a noção de que um eventual exorcismo desnecessário não faz mal a ninguém, mas negar exorcismo a um endemoninhado real representaria crime de omissão. Daí conclui-se que o melhor curso de ação seria exorcizar primeiro e perguntar depois.

A popularidade dessa linha de pensamento levou a Itália a sofrer com uma epidema de possessões, e se filmes apenas vagamente inspirados por Gabriele Amorth podiam ser um problema, o que esperar de um filme onde o protagonista tem o nome dele? Enfim, frio na espinha.

Depois de assistir à película, no entanto, tenho a felicidade de informar que meus temores eram infundados: “O Exorcista do papa” é um filme de aventura e fantasia, cujo compromisso com a verossimilhança é comparável ao dos filmes e livros de Harry Potter (que, aliás, Gabriele Amorth condenava pelo risco de “empurrar crianças rumo ao ocultismo”) ou às aventuras dos heróis da Marvel.

A parte principal da ação de “O Exorcista do papa” se passa numa abadia amaldiçoada que lembra um castelo de vampiro mas é, espiritualmente, uma contraparte endemoninhada de Hogwarts (o garoto possuído não se chama Harry, mas chega perto: “Henry”), e o clímax do filme bebe em porções iguais de “Harry Potter e a Ordem da Fênix” e “Vampiro da Noite”, o primeiro filme colorido de Drácula, lançado em 1958.

Ao contrário dos filmes de exorcismo “baseados em fatos reais” que, para sustentar essa ilusão, vão introduzindo elementos fantasiosos e sobrenaturais aos poucos, na tentativa de plantar no espectador dúvidas incômodas – “poderia ser verdade? poderia acontecer comigo?” – “O Exorcista do papa” diverge do mundo real logo no início: o ano é 1987, mas o papa não é João Paulo II. É um pontífice genérico, interpretado pelo grande ator italiano Franco Nero, de barba. E quando foi a última vez que o mundo teve um papa barbado? Não nos últimos 100 anos. Os únicos pontos em que o filme adere à realidade histórica é na trilha sonora dos anos 1980 e no fato de que, em 1987, havia no Vaticano um padre exorcista chamado Gabriele Amorth.

A película termina buscando lançar uma franquia, onde o Vaticano funciona como uma espécie de SHIELD (a super-organização antiterrorista dos filmes da Marvel) e os exorcistas, como Vingadores de batina, numa missão de “buscar e destruir” forças do mal que lembra séries de TV como Supernatural ou Constantine. Uma das empresas por trás de “O Exorcista do papa” é a Loyola Productions, vinculada à Companhia de Jesus, mesma ordem religiosa que deu ao mundo o papa atual, Francisco. O que talvez ajude a explicar a tentativa de transformar padres em super-heróis.

Se “O Exorcista do papa” não comete o pecado de empurrar ao público a ideia de possessão demoníaca como evento palpável e real, com o qual todos deveríamos nos preocupar, ele alcança a graça de ser um bom filme, ainda que na chave da fantasia?

Infelizmente, não. Não há um único átomo original ali, seja na história, no desenvolvimento dos personagens, nas “revelações” que pontuam o enredo ou na forma como o produto de toda essa reciclagem se materializa na tela. Ecos de todos os filmes de exorcismo feitos nos últimos 50 anos estão ali – incluindo a inevitável adolescente que rasteja pelas paredes como uma aranha – e a “conspiração” que se descortina perto do final, uma espécie de Código Da Vinci ao contrário, não impressiona.

Crowe, Nero e o restante do elenco estão bem em seus papéis, e há uma cena de nudez feminina que surpreende, mas só quando sabemos que o filme foi financiado por uma ordem religiosa católica. E é tudo.

Há alguns anos, William Friedkin, diretor de “O Exorcista”, dirigiu e apresentou um documentário sobre o Gabriele Amorth real, “The Devil and Father Amorth”. Ali vemos o Amorth de carne e osso em ação, aos 91 anos de idade, confrontando uma “endemoninhada” real, chamada Cristina. As cenas de exorcismo são, alternadamente, chocantes – é óbvio que Cristina tem algum problema – e tediosas, com círculos de oração e responsórios que quem (como eu) cresceu numa família católica italiana já assistiu (e nas quais já bocejou) várias vezes. Em alguns momentos até me vieram à memória cheiros da infância, mas não meus favoritos.

Friedkin entrevista também especialistas em neurologia e saúde mental. A edição do filme deixa falar à vontade os que repetem clichês como “não descartamos nada” ou “a ciência não explica tudo” ou “há coisas que não entendemos ainda”, e reserva poucos, preciosos segundos aos que afirmam que pacientes com sintomas iguais aos de Cristina reagem muito bem a psicoterapia e medicação, e que possessão é um distúrbio de contexto – se a religião tira os sintomas, é porque foi a religião que provavelmente os colocou lá, para começo de conversa: a pessoa é possuída porque sua cultura prevê a ocorrência de possessões. Mas esses são trechos do documentário que você perde se piscar na hora errada, e a narração de Friedkin logo trata de enterrar quaisquer conclusões indesejadas.

Revendo o documentário, fica claro o motivo de o filme protagonizado por “padre Gabriele Amorth” ser uma completa fantasia, e não uma história real do verdadeiro padre Gabriele Amorth: a realidade é pouco espetacular e demasiado inconveniente.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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