Nota publicada recentemente pelo jornal Folha de S. Paulo dá a entender que o governo do estado mais rico do país está levando a sério a possibilidade de incluir práticas integrativas e complementares (PICs) no atendimento a dependentes de crack. São citadas nominalmente na nota, no contexto do apoio aos dependentes, reiki, massagem e acupuntura. A proposta traz à tona pelo menos três problemas graves.
O primeiro é o desprezo pela, ou no mínimo incompreensão da, evidência científica. As modalidades terapêuticas contempladas na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) só estão lá porque falham em oferecer evidência adequada de segurança (se têm benefícios que superam os riscos) ou eficácia (se produzem de fato os efeitos que prometem). Se fossem capazes de atender honestamente a ambos os critérios, não precisariam do rótulo “alternativas e complementares” para legitimar-se.
Algumas PICs têm status científico comparável ao do terraplanismo, no sentido de dependerem de princípios demonstravelmente falsos (exemplos são homeopatia, reiki, antroposofia, constelação familiar, acupuntura); outras têm alguma plausibilidade inicial – de certa forma, “faz sentido”, em teoria, que possam trazer benefícios –, mas não foram estudadas o suficiente para que se possa afirmar com segurança que esses benefícios são reais, em que circunstâncias e para quais condições específicas ocorrem, e se tais benefícios superam eventuais riscos (caso, por exemplo, de meditação e yoga); outras, ainda, além de não oferecer benefícios claros, são demonstravelmente perigosas (ozonioterapia, constelação familiar, quiropraxia).
Esses fatos inegáveis fazem com que o discurso público sobre PICs seja eminentemente maleável. Num momento, promete-se até mesmo a cura do câncer; quando o escrutínio aumenta, recua-se para promessas vagas de redução do estresse, da ansiedade e para um certo “olhar holístico que vê o paciente como um todo”. Essa posição mais defensiva corresponde a uma confissão velada de que os únicos benefícios que se pode esperar, com algum grau de honestidade, de uma PIC são os inespecíficos.
Vamos entender isso. Um medicamento devidamente testado por cientistas e aprovado por autoridades regulatórias terá um efeito específico (um antibiótico vai matar bactérias, um anti-hipertensivo vai reduzir a pressão arterial), com nexo causal estabelecido (o efeito pode ser atribuído de fato ao medicamento, e não a coincidências, circunstâncias, sorte), que será mesurável (pode ser avaliado por critérios objetivos) e consistente (vai funcionar significativamente mais do que falhar).
Além desse efeito, porém, toda intervenção de saúde traz efeitos inespecíficos – geralmente, reunidos sob um guarda-chuva chamado “efeito placebo”, embora, a rigor, o placebo seja apenas parte da família. São manifestações que não dependem do remédio, mas de alterações emocionais, psicológicas e fisiológicas derivadas da interação do paciente com o médico (ou terapeuta) e do mise-en-scène da intervenção.
É uma constatação triste e antiga que o sistema de saúde contemporâneo, com suas consultas-relâmpago, impessoalidade e burocratização da relação médico-paciente, tende a reduzir muito, quando não a eliminar por completo, a oportunidade para efeitos inespecíficos salutares manifestarem-se na medicina “oficial”. É um buraco no sistema. Quando se diz que as PICs reduzem estresse, ansiedade, relaxam e trazem um “olhar holístico”, o que se está dizendo é que devolvem ao paciente o efeito placebo e os benefícios indiretos que a medicina de ritmo industrial deixou para trás.
E aqui chegamos ao segundo problema: se o sistema tem buracos, eles devem ser preenchidos com substância, não sinalizados com cones ou cobertos com papelão. A ideia de oferecer PICs a dependentes de drogas na esperança de que alguma dessas práticas – acupuntura, reiki – vá produzir efeitos fisiológicos específicos é errada, irracional e anticientífica. A ideia de oferecer PICs como uma fonte de efeitos inespecíficos que o sistema usual de acolhimento e tratamento não oferece é tapar buraco com cartolina, sol com peneira – além de desonesto e perigoso.
Desonesto porque, quando gerados por PICs, os efeitos inespecíficos são mediados pela falsa promessa de efeitos específicos: ostensivamente, o reiki não é uma técnica de relaxamento guiado, mas uma transferência da (inexistente) energia vital do Universo para o paciente, através das mãos do terapeuta.
O perigo dessa abordagem é o terceiro problema. Vamos lembrar que o perfil de risco das PICs também é, em geral, muito pouco conhecido. A alegação de que algumas práticas derivam de antigas tradições e, se fossem danosas, não teriam durado tanto é claramente falaciosa. Basta lembrar que a sangria foi talvez a intervenção médica mais longeva da História, remontando à Antiguidade pré-clássica e extinguindo-se apenas no século passado, depois que testes adequados provaram que causava mais mortes do que salvava vidas.
Para além de notar os riscos específicos de dano que algumas práticas, como a constelação familiar e a quiropraxia, sabidamente trazem (e que outras PICs menos estudadas podem também oferecer), é necessário que se deixe de ignorar os riscos inespecíficos associados às terapias alternativas, incluindo o de estimular o abandono de tratamentos baseados em ciência (tendência constatada e documentada em estudos, como este e este) e de disseminar comportamentos contrários à saúde pública, como a recusa vacinal: muitas PICs, como naturopatia, quiropraxia ou medicina antroposófica, derivam de, ou inspiram-se em, sistemas de crença anticientíficos, ideologias que podem ser, e são, transmitidas por parte dos praticantes a seus pacientes.
Reconhecer que o sistema médico tem deficiências e falha na relação humana com o paciente deveria ser um chamado para consertá-lo e restabelecer essa relação, não convite para que superstições e propostas terapêuticas mal testadas ou perigosas venham preencher a lacuna, no processo dando ao sistema uma desculpa para seguir defeituoso como é, “terceirizando” o tão necessário aspecto humano para as franjas crepusculares do obscurantismo.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)