A astrologia é demonstravelmente inútil como forma de prever o futuro ou ferramenta para analisar personalidades, mas isso não quer dizer que não sirva para nada. Às vezes, por exemplo, serve como importante documento histórico. Há alguns anos, pesquisadores da Universidade de Cambridge concluíram a tarefa heroica de transcrever e pôr online 500 “casos” tratados por dois médicos-astrólogos britânicos do século 17, Simon Forman (1552-1611) e Richard Napier (1559-1634), que fornecem um riquíssimo painel do que era a vida cotidiana na Inglaterra nos tempos de Shakespeare.
Forman, aliás, é autor de três resenhas de peças do grande dramaturgo, a que assistiu em 1611, e suas anotações são os mais completos documentos sobre como o trabalho de William Shakespeare (1564-1616) era encenado (e interpretado pelo público) enquanto o Bardo era vivo.
Forman era um tomador de notas compulsivo, e as dezenas de milhares de horóscopos, relatos e comentários que ele e seu discípulo Napier deixaram sobre os aflitos que os procuravam representam uma janela fascinante para a vida, os medos e as preocupações da gente comum da Inglaterra elizabetana. Segundo o grupo de Cambridge responsável pela curadoria do material, os dois deixaram mais de 80 mil documentos sobre seus clientes, “um dos maiores registros médicos ainda existentes da história”.
Na hora certa
Os dois praticavam a chamada “astrologia horária”, em que um horóscopo – um esquema do céu astrológico – era traçado para representar o momento em que o paciente revelava sua aflição ao médico-astrólogo. A partir dessa configuração, o profissional apresentava seu diagnóstico e curso de tratamento, que poderia ser uma sangria, um purgante, um emético, um amuleto mágico, uma mandinga (toque de sangue de pombo nos pés, por exemplo) e “medicamentos” como supositório de fezes de rato, caldo de testículos de javali com fígado de sapo, mistura de abelhas esmagadas, cerveja e açúcar (tomar três vezes ao dia) e até instruções para a condução de feitiços complexos:
“Corte o cabelo dela na base do pescoço, ferva-o na própria urina com tomilho e dois seixos. Pegue o tomilho e o coloque entre aqueles dois seixos onde eles haviam ficado debaixo da cama dela por três noites...”
As notas de Forman seguem um padrão estereotipado, preciso: incluem o nome do paciente, a pergunta feita, o desenho do horóscopo, a resposta e a conduta recomendada, tudo muito breve e sucinto. As de Napier têm a mesma estrutura geral, mas são menos lacônicas.
Os casos mostram que ambos eram muito mais do que “médicos”, atuando também como confidentes, confessores e o que poderíamos chamar hoje de psicoterapeutas e conselheiros matrimoniais (“casamentos ruins” é uma categoria à parte no catálogo de Cambridge). Às vezes as consultas eram feitas não pelo “paciente”, mas por uma terceira parte interessada – há registros de donas de casa querendo saber se suas arrumadeiras ou cozinheiras estão grávidas (e quem é o pai). Situações assim punham os astrólogos no papel de detetives, ainda que encarregados de interrogar estrelas em vez de testemunhas.
Dúvidas sexuais e sobre fertilidade eram comuns. Por exemplo, o caso que ilustra este artigo é o seguinte:
“Susan Sanders de Hackney, 36 anos, 19 de outubro de 1599, 3:15 pm. Filha de Mack Williams com Mary Chekes.
[desenho do horóscopo]
“Se terá mais filhos. Ou mais maridos. E se viverá para desfrutar daquele que mais a merece.
“Viverá para desfrutar do amado, e parece que o marido morrerá em dezembro, de bebedeira, e então ela se casará com quem ama e terá dele dois filhos, um menino e uma menina, mas no caso da menina vai perder a criança durante a gravidez”.
Status social
Simon Forman nasceu em família pobre, e sua educação foi limitada. Convenceu-se de que era um grande astrólogo e um grande médico depois de sarar da peste negra, em 1592 – ele acreditou que havia curado a si mesmo, que tinha sido salvo pela própria sabedoria. Seus diários pessoais mostram inúmeras consultas astrológicas sobre si mesmo, perguntando às estrelas sobre o que o destino lhe reservava e para determinar, por exemplo, a melhor hora para postar uma carta ou pedir um favor.
A comunidade médica de Londres, cidade onde Forman se estabelecera em 1590, considerava-o uma fraude e um charlatão. Ele foi alvo de ações legais, também de ataques na imprensa. A despeito disso, seus cadernos registram mais de 2 mil consultas por ano entre 1596 e 1603. Com sua morte em 1611, seus papéis foram levados a Napier.
Richard Napier, por sua vez, era de família abastada. Estudou Teologia em Oxford e, quatro anos depois de obter um mestrado, em 1586, foi ordenado sacerdote da Igreja Anglicana, tornando-se reitor de uma paróquia em Buckinghamshire, nos arredores de Londres. Consultou Forman pela primeira vez em 1597, e de cliente logo evoluiu para amigo e discípulo. Napier misturava teologia e misticismo religioso a suas interpretações astrológicas, e tinha uma predileção por casos que, hoje, classificaríamos como de doença mental, receitando, além dos purgantes e feitiços usuais, preces e exorcismos.
Pode-se argumentar que a mistura de medicina, astrologia e demonologia praticada por Napier tinha ainda mais potencial explosivo e escandaloso do que a “mera” confusão entre medicina e astrologia de Forman mas, ao contrário do mestre de origem humilde, o aluno nobre jamais foi incomodado pelas autoridades ou pelas associações médicas – o que sugere que, lá como cá, organizações de classe preocupavam-se mais com o status da categoria do que com a saúde dos pacientes.
Números
De acordo com o catálogo completo de casos de Cambridge, 55% dos mais de 46 mil pacientes da dupla eram mulheres, 43% homens – o resíduo é de clientes onde as anotações não permitem determinar sexo. Há consultas envolvendo crianças com poucos dias de vida e idosos que declaravam ter até 100 anos, mas a idade média ficava em torno de 24 anos (a maioria tinha de 20 a 29).
Todas as classes sociais, de lordes do reino a mendigos, estão representadas nos cadernos dos médicos-astrólogos. John Villiers, Primeiro Visconde Purbeck (1591-1658), escreveu para Napier, em 1620, queixando-se de “melancolia” e requisitando uma consulta; o mesmo Napier atendeu a um certo William Yates (descrito como “pedinte”) em 1624.
Além de abrir uma janela para as aflições da gente comum de 400 anos atrás, os papéis de Forman e Napier representam (mais um) exemplo de poder dos vieses cognitivos – da arrogância humana, e do desamparo – e da importância fundamental do método científico.
Charlatanismo?
Nenhum dos dois médicos-astrólogos era um charlatão no sentido moderno da palavra, de alguém que deliberadamente vende curas que sabe serem ineficazes: ambos acreditavam no que faziam e Forman, em particular, tinha confiança absoluta na arte que praticava e na própria habilidade, a ponto de conduzir a vida de acordo com os horóscopos que traçava.
Os pacientes, por sua vez, se realmente dispostos a ferver urina com cabelos, esmagar um punhado de abelhas vivas na mão, usar supositórios de rato ou aplicar sanguessugas nos genitais, demonstram mais uma vez a força irresistível do impulso de, diante de uma dor ou sofrimento, fazer alguma coisa – qualquer coisa – apenas em nome do alívio mental temporário que o simples fato de estar agindo traz.
E, claro, na ausência de controles e acompanhamento adequado, é impossível saber quantos dos milhares de pacientes não acabaram vítimas de seus tratamentos; e quantos desses chegaram a perceber que estavam sofrendo mais da receita do que da doença.
Para finalizar, espero que nenhum leitor deste artigo olhe para o povo inglês de 1600 com ar de superioridade diante da “ignorância” dos “primitivos”.
Tomar ivermectina para COVID-19 (ou fosfoetanolamina para câncer) pode ser, à primeira vista, menos desagradável do que solução de crânio humano e casco de cavalo triturados para epilepsia, mas faz tanto sentido quanto. E nem vou relacionar a ozonioterapia retal ao supositório de cocô de rato. A questão é: os londrinos do tempo de Shakespeare ainda não tinham uma ciência médica desenvolvida, e naquele tempo os métodos confiáveis para separar terapias úteis e seguras das inúteis e perigosas eram desconhecidos – estavam, na verdade, começando a ser discutidos. Hoje em dia, qual a desculpa?
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)