Polêmica sobre práticas afro-brasileiras expõe teto de vidro da PNPIC

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1 abr 2025
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mapa parcial do sistema nervoso

 

O fim de março assistiu a uma polêmica envolvendo o sistema de saúde pública da cidade do Rio de Janeiro: no dia 19, o Diário Oficial do Município publicou decreto que, entre outras medidas, incluía tradições de cura vinculadas à cultura afro-brasileira – como defumação, escalda-pés, banhos de ervas – no rol de práticas integrativas e complementares (PICs) a serem ofertadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) do município carioca. Seis dias depois, o decreto era revogado pelo prefeito Eduardo Paes (PSD).

Figuras expressivas do movimento negro acusaram o prefeito de “racismo religioso”. Já a Prefeitura emitiu nota (reproduzida no site de notícias G1) afirmando que a revogação atendia aos princípios do Estado laico e do respeito à ciência. Que são bons princípios, sem dúvida.

Mas seria mais fácil levar a justificativa a sério, ao menos no caso do apelo à boa ciência, se o SUS carioca não oferecesse consultas com acupunturistas e homeopatas (adulto e infantil), ambas práticas sem respaldo científico e baseadas em pensamento mágico (abundante informação e referências a respeito podem ser encontradas no livro Que Bobagem!, que escrevi em parceria com Natalia Pasternak).

A pressão pela integração de práticas de matriz afro ao SUS vem acumulando forças desde a publicação da Diretriz 46 do Conselho Nacional de Saúde, que é citada no decreto original da Prefeitura do Rio. Dada a forma como o rol de procedimentos contemplados pela Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) do SUS é composto – quem tem lobby, leva, e dane-se a ciência  –, trata-se de um desenvolvimento compreensível e natural.

O entrelaçamento das práticas de cura de matriz afro-brasileira com crenças e rituais religiosos certamente complica a situação (aberto o precedente, o que impedirá que verbas do SUS sejam usadas para pagar por, entre outras coisas, “sessões de descarrego” em templos neopentecostais milionários?), mas o problema de fundo é a própria existência da PNPIC.

Essa política nasceu com um vago apelo à “tradição”,  e nesse aspecto a incorporação das práticas de cura afro-brasileiras faz muito mais sentido do que a da constelação familiar, da ozonioterapia, da quiropraxia e de diversas outras modalidades criadas na América do Norte ou na Europa há menos de duzentos anos (em alguns casos, há poucas décadas) e virtualmente desconhecidas no Brasil até poucos anos atrás.

Mas a realidade é que, ao abrir mão da evidência científica de qualidade como critério norteador, a PNPIC se converte num vale-tudo onde, como já foi dito, o único critério real de inclusão/exclusão é a força política dos grupos interessados. E mesmo se a Política de fato contemplasse apenas práticas tradicionais e populares: antiguidade e popularidade não garantem eficácia ou segurança.

Exemplos como o da sangria (registrada em todas as partes do mundo) ou do uso da erva tóxica e cancerígena Aristolochia (consumida em preparados medicinais na Europa e na Ásia) mostram que práticas “curativas” que, na verdade, encurtam a vida dos pacientes e aumentam seu sofrimento podem sobreviver por milênios como parte da cultura – até serem expostas por testes científicos adequados.

O decreto revogado pelo prefeito Eduardo Paes previa, em seu artigo final, que os envolvidos no atendimento à saúde respeitassem as crenças e tradições do paciente, realizando uma abordagem livre de preconceitos e levando em conta eventuais restrições alimentares e de vestimenta de natureza religiosa.

Esse item derradeiro deveria ter sido preservado. Respeito à evidência científica é condição necessária para o atendimento de saúde eficaz, mas está longe de ser suficiente. A PNPIC às vezes é defendida como uma tentativa de preencher a lacuna, mas não se chega ao suficiente minando ou relativizando o necessário.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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