Espiritualidade, medicina alternativa e teorias de conspiração

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25 mar 2025
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D. Quixote e Sancho Pança, por Gustave Doré

"Não creio em bruxas, mas que elas existem, existem". O antigo dito espanhol com que Sancho Pança, personagem do clássico "Dom Quixote", de Miguel de Cervantes (1547-1616), demonstra sua cautela frente ao desconhecido pode bem ilustrar a quantas anda a relação entre medicina e espiritualidade. "Eu non creo nas meigas, mais habelas hainas" no original em galego, o ditado popularizado por Cervantes traz figuras, as "meigas", que por vezes podem ser traduzidas como "curandeiras", e cuja etimologia está ligada tanto ao latim "medicus" ("médico") quanto ao persa "magus" ("sábio", "sacerdote"). Da mesma forma, se de um lado a Ciência moderna reconhece o impacto positivo de sentimentos de significado, propósito e conexão em desfechos de saúde, de outro é preciso cautela para não misturar alhos com bugalhos e, assim, alimentar crenças em curas milagrosas e negacionismo anticientífico, especialmente ao confundir o conceito de "espiritualidade" com religião.

Problema apontado por um estudo recente que investigou a relação entre espiritualidade, adoção de práticas de medicina complementar, crença em teorias da conspiração e hesitação vacinal. Publicado no International Journal of Environmental Research and Public Health, o estudo contou com mais de 1,3 mil participantes moradores da região do Sul do Tirol, na fronteira da Itália com a Áustria. Eles responderam questionários sobre sua percepção de risco acerca da COVID-19 e vacinas, adesão às recomendações de vacinação para si e possíveis filhos e um desenhado para medir aspectos não religiosos da espiritualidade, envolvendo sentimentos de gratidão, fascinação, admiração e reverência no dia a dia, além de perguntas voltadas para avaliar sua crença em teorias da conspiração com foco em percepção sobre desinformação, desconfiança dos governos e processos de tomada de decisão, atividades e organizações secretas, bem como altruísmo, histórico de consultas ou atendimentos em medicina alternativa e complementar e sensações recentes de bem-estar.

Segundo os pesquisadores, análise das respostas revelou que embora altos níveis do que chamam de "espiritualidade experiencial" não tenha impactado a adesão à vacinação no geral, ela está associada a uma maior percepção equivocada de risco tanto com relação às vacinas contra a COVID-19 quanto às vacinas pediátricas, especialmente entre os participantes adeptos de práticas da medicina alternativa e com uma tendência ao pensamento conspiracionista.

"Ao identificar a espiritualidade como uma mediadora tanto da utilização da medicina alternativa e complementar quanto da crença em conspirações, esta pesquisa sugere que a espiritualidade pode influenciar indiretamente a adesão à vacinação ao reforçar crenças pessoais sobre saúde e práticas alternativas", avaliam os autores do estudo. "Esta influência indireta pode ajudar a explicar porquê indivíduos com altos níveis de espiritualidade também estão mais inclinados a ver as vacinas como supérfluas ou prejudiciais, particularmente como aconteceu durante a pandemia de COVID-19".

Ainda de acordo com os pesquisadores, dado que as respostas não apontaram uma relação direta entre espiritualidade e desconfiança quanto às instituições, e a indicação de que ela não opera de forma independente de outros sistemas de crenças quando o assunto é saúde, é preciso adaptar a comunicação sobre vacinas para comunidades altamente espiritualizadas de forma a dar mais enfoque a questões de saúde pública e responsabilidade pessoal.

"Embora a espiritualidade possa contribuir para a resiliência e o bem-estar, sua conexão com práticas de saúde alternativas requer uma estratégia mais abrangente para promoção da vacinação", consideram. "No lugar de se basear apenas em argumentos biomédicos, iniciativas que enfatizem o bem-estar coletivo, o dever moral e os princípios sociais compartilhados pode melhorar o engajamento com estes grupos. Além disso, a colaboração com líderes espirituais e comunitários pode transmitir a segurança e a importância da vacinação de uma maneira consistente com as crenças espirituais que pode ajudar a diminuir a distância entre os esforços de saúde pública e indivíduos com fortes inclinações espirituais".

 

Entre a cruz e a calderinha

Estudos como este chamam mais atenção para os rumos e a necessidade de boa governança de iniciativas institucionalizadas que abordam a interseção entre espiritualidade e saúde, como a recém-criada Comissão de Saúde e Espiritualidade do Conselho Federal de Medicina (CFM). Como já destacou Carlos Orsi, editor-chefe desta Revista Questão de Ciência, em artigo recente sobre o assunto, o "cambalacho semântico" em torno do que é espiritualidade do ponto de vista científico leva muitas vezes à sua confusão com religião, o que fica a um pulo de discursos sobre "milagres" e a substituição de tratamentos comprovados por orações.

Como destacam os especialistas responsáveis por uma das mais abrangentes revisões sistemáticas da literatura científica sobre espiritualidade e saúde, publicada em 2022 no periódico JAMA, é importante incorporar cuidados espirituais tanto na prática clínica quanto na formação de profissionais de saúde, seja no âmbito do tratamento de doenças graves ou da saúde em geral. Para tanto, porém, é preciso reconhecer o caráter multidimensional e pessoal da experiência espiritual, além de definir muito bem o que vem a ser este cuidado espiritual e suas limitações.

"Por exemplo, um médico da atenção primária pode, depois de inquirir sobre a história espiritual, levantar o tópico do engajamento espiritual comunitário para pacientes que já se identificam positivamente como espiritualizados ou religiosos", escrevem os autores. "Esta consideração, no entanto, deve ser altamente individualizada e indicada respeitando os valores e crenças de cada pessoa. Para pacientes que tenham experimentado prejuízos por comunidades espirituais, esta história espiritual pode revelar traumas que devem ser abordados por meio de aconselhamento ou o encaminhamento apropriado para especialistas. Já pacientes que não se identificam com nenhuma tradição religiosa ou espiritual, pode-se sugerir outras formas de engajamento comunitário".

Daí a preocupação dos especialistas com a formação dos profissionais de saúde. Na revisão, eles ressaltam que apesar da ampliação do conhecimento sobre a relação de espiritualidade e saúde e alguns avanços nos últimos anos, os currículos ainda largamente ignoram a questão, pelo menos nos EUA. Com isso, eles também consideram necessário reconhecer a espiritualidade como um fator social associado à saúde lado a lado com outros como integração social, condições de trabalho salubres, bem-estar econômico, proteção contra discriminação, acesso a alimentos saudáveis e um ambiente seguro.

"Por estas razões, a espiritualidade pode ser razoavelmente reconhecida como um importante fator social associado à saúde, abrindo caminho para colaborações que aproveitem os potenciais das comunidades espirituais em lidar com as necessidades em saúde, particularmente nas comunidades mais vulneráveis e sob risco de problemas crônicos de saúde", avaliam os autores da revisão. "Embora mais pesquisas e reflexões éticas sejam necessárias para determinar a aplicação na prática clínica e outras situações em saúde, estas recomendações sugerem um potencial para melhoria do bem-estar de pacientes e outras populações".

Assim, concluem, futuros estudos devem investigar as dimensões e mecanismos sob os quais a espiritualidade pode influenciar a saúde e o bem-estar, buscando medidas padrões de forma a avançar o conhecimento neste campo levando em conta o caráter multidimensional do tema, o que requer uma abordagem multidisciplinar. Sem deixar de lado a adoção de boas práticas de pesquisa que evitem possíveis prejuízos para os participantes e garantam uma atenção ótima à saúde espiritual tanto no nível pessoal quanto no comunitário.

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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