Estaca no coração de vampiro é "conhecimento tradicional"?

Apocalipse Now
30 out 2021
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Dracula

 

Deve ser a temporada de Halloween aqui nos Estados Unidos, mas de uns tempos para cá, toda vez que ouço ou leio alguém comentando como é importante levar os conhecimentos dos povos tradicionais sobre saúde a sério porque são tradicionais; que pedir que esses conhecimentos sejam validados pelo método científico é desrespeitoso e grosseiro – afinal, a tradição se baseia numa “outra episteme”, é preciso evitar o “colonialismo epistêmico”, etc. – a primeira coisa que me vem à mente são vampiros.

Hoje em dia, a maioria das pessoas tende a encarar a figura do vampiro como um produto da cultura de massa (filmes, romances, RPGs) ou como parte daquilo que os folcloristas às vezes chamam de “contos populares”, isto é, narrativas que, mesmo nas fontes originais, já eram tratadas como ficção – contos de fadas, por exemplo. Mas isso é um erro.

A verdade é que a ideia de que mortos voltam para consumir a vida dos vivos, drenando sua energia vital ou seu sangue, foi parte da “epidemiologia popular” de parte significativa da Europa durante séculos. De fato, desenterrar vampiros, cortar-lhes a cabeça e reduzir seus corações a cinzas é um remédio tradicional para doenças epidêmicas com um fundamento nos “modos de saber” populares muito mais profundo, legítimo e, do ponto de vista histórico e antropológico, respeitável do que 99% do que hoje em dia se oferece como medicina complementar “baseada em conhecimento tradicional” no SUS.

Nem se trata de tradição morta (sem trocadilho): em 2004, moradores de uma aldeia da Romênia exumaram o corpo de Petre Troma, 76 anos, recém-falecido, abriram seu peito, removeram o coração (segundo alguns relatos, espalharam alho sobre o corpo), empalaram o órgão numa estaca, queimaram-no até só restarem cinzas, dissolveram cinzas na água e deram a mistura para uma mulher, adoentada e suposta vítima do vampiro, beber. “Bem, a doente melhorou, então, algo certo eles devem ter feito”, disse um morador do local, ecoando o mantra eterno da sabedoria popular: se parece funcionar, é porque funciona.

 

 

A tradição

Relatos históricos de epidemias controladas graças à mutilação de cadáveres diagnosticados com vampirismo são quase tão numerosos quanto os de curas obtidas por homeopatia, e merecem o mesmo nível de crédito. Um livro de 1679, “De Mastricatione Mortuorum” (“Sobre Os Mortos Que Mastigam”), diz que os mortos famintos em seus túmulos consomem a vida dos vivos; e que o modo de detê-los é encher-lhes a boca de pedras, para que não possam mastigar.

O livro consolida lições da sabedoria popular. Por exemplo, uma escavação arqueológica conduzida num cemitério de vítimas da peste negra em Veneza encontrou o esqueleto de uma mulher com um tijolo enfiado, de modo bem deliberado, na mandíbula. A cidade de Veneza ainda existe. Não foi destruída completamente pela peste; “então, algo certo eles devem ter feito”.

No século 18, duas publicações de grande repercussão documentaram a prática, aparentemente bem-sucedida, da caça aos vampiros como medida sanitária em cenários epidêmicos. O primeiro trabalho, intitulado “Visum et Repertum” (“Visto e Descoberto”), de autoria do cirurgião austríaco Johannes Flükinger, saiu em 1732, e relata um surto de vampirismo nas imediações de Belgrado (atual capital da Sérvia).

Membro de uma comissão médica do exército imperial austríaco, enviada para investigar uma epidemia na área, Flükinger descreve, por exemplo, como testemunhou, entre outras, a exumação de uma mulher de 60 anos chamada Miliza, sepultada há cerca de 90 dias, e cujo cadáver espantou a todos “por sua redondeza e perfeição de corpo”, já que a população local a conhecera como “magra e seca”. O diagnóstico oferecido pela tradição local era de que Miliza teria engordado, post-mortem, com o sangue de suas vítimas.

Um cientista moderno talvez dissesse que o corpo estava inchado por causa dos gases da decomposição, mas isso seria desrespeitoso para com o conhecimento popular e a cultura tradicional; um inaceitável gesto de colonização epistemológica.

A segunda publicação entrou para a história como uma espécie de desafio da cultura popular da Europa Oriental aos filósofos do Século da Luzes. De autoria do monge beneditino Agostinho Calmet (1672-1757), o calhamaço tinha o título interminável de “Dissertations sur les apparitions des anges, des démons et des esprits, et sur les revenants et vampires de Hongrie, de Bohême, de Moravie et de Silésie” (“Dissertação sobre as Aparições de Anjos, Demônios e Espíritos, e Sobre os Mortos-Vivos e Vampiros da Hungria, da Boêmia, da Morávia e da Silésia”).

A obra foi publicada originalmente em 1745, e reeditada em 1751 com o título mais razoável de “Traité sur les apparitions des esprits et sur les vampires ou les revenans” (“Tratado sobre as Aparições de Espíritos, Vampiros e Mortos-Vivos”). O relatório de Calmet incorpora muito do que havia sido publicado antes, incluindo casos discutidos por Flükinger, e a tradição dos mortos mastigadores.

Segundo o livro “Vampirology” (“Vampirologia”) de Kathryn Harkup, epidemias de vampirismo foram registradas na Ístria em 1672, na Prússia Oriental (1710, 1721 e 1750), Hungria (1725-1730), Valáquia (1756) e Rússia (1772).

 

Construção milenar

O acúmulo de conhecimento tradicional sobre vampiros é milenar. O primeiro caçador de vampiros registrado nos anais da história europeia provavelmente foi Apolônio de Tiana (3 AEC-97 EC), filósofo, sábio e milagreiro que, segundo uma biografia escrita cerca de cem anos após sua morte, salvou um jovem atleta, Menipo, dos encantos de uma vampira que o seduzira, com o intuito de devorá-lo.

Mais tarde, um importante tratado de medicina popular publicado por volta do ano 200, no Império Romano, informava que crianças atormentadas por estriges podiam ser protegidas por amuletos de alho. O poeta Ovídio (43 AEC-17 EC) já havia advertido, séculos antes, que estriges são mulheres que se transformam em pássaros horrendos, voam à noite em busca de bebês desprotegidos e “arrancam-nos de seus berços e violam seus corpos. Diz-se que rasgam com os bicos os órgãos internos, e fartam-se com o sangue que bebem”.

A vulnerabilidade dos vampiros a artefatos religiosos, por sua vez, aparece registrada num manuscrito medieval. Walter Map (1140-1200), um intelectual itinerante que terminou seus dias como arquidiácono de Oxford, relata o caso em que uma vampira, disfarçada de babá, teve a verdadeira natureza revelada quando um sábio pressionou a chave de uma igreja contra seu rosto, deixando ali uma queimadura com a forma do objeto.

A tradição de exumar cadáveres e queimar seus órgãos internos para deter a progressão de epidemias chegou também à América do Norte. Recortes de um exemplar de 1896 do jornal The New York World, encontrados entre os papéis pessoais de Bram Stoker (1847-1912), o autor de “Drácula”, descrevem como, no estado de Rhode Island, “nos últimos anos, muitas pessoas têm desenterrado os cadáveres de parentes com o objetivo de queimar-lhes os corações”.

George Stetson (1833-1923), um antropólogo americano contemporâneo da reportagem do New York World e autor de um artigo acadêmico sobre o vampirismo entre seus compatriotas, escreve:

 

“Na Nova Inglaterra, a superstição do vampiro é desconhecida por esse nome. Acredita-se que tísica [tuberculose] não é uma doença física, mas espiritual, uma obsessão ou visitação; que enquanto o cadáver de um parente tísico [tuberculoso] tiver sangue no coração, isso será prova de que uma influência oculta preserva-o da morte e opera drenando o sangue dos vivos para dentro do coração do morto”.

 

O fenômeno dos “vampiros da Nova Inglaterra”, como ficou conhecido, já foi alvo de diversos estudos desde então. Entre os séculos 18 e 19, famílias assoladas por surtos de tuberculose convenceram-se de que a doença poderia ser impedida de se propagar para os parentes ainda saudáveis se o vampiro – entre os parentes já mortos – fosse identificado e exorcizado. Esse exorcismo geralmente culminava na incineração do coração (e também, muitas vezes, do fígado e dos pulmões) do cadáver indiciado, seguido pelo consumo das cinzas, como remédio ou profilático.

Note-se que Stetson era um cientificista positivista, referindo-se ao conhecimento tradicional popular de forma pejorativa, como “superstição”.

 

Aviso final

Explicar a piada destrói a piada, mas neste mundo assolado por zumbis sem cérebro mas com teclado, incapazes de reconhecer uma ironia mesmo quando ela os atinge como uma estaca no peito, todo cuidado é pouco: o que este especial de Halloween busca fazer é reduzir ao absurdo da ideia de que conhecimentos tradicionais e tradições populares têm valor epistêmico intrínseco. Em outras palavras: não é porque um conjunto de alegações e práticas é antigo, ou defendido por um setor da população romantizado por formadores de opinião (os “oprimidos” para a esquerda, os “bem-sucedidos” para a direita, por exemplo) que essas alegações ou práticas tornam-se automaticamente verdadeiras ou eficazes.

Seres humanos mentem para si mesmos o tempo todo, e são especialmente muito bons em se entregar a ilusões coletivas onde comunidades inteiras fingem que uma prática serve para uma coisa (curar doenças) quando na verdade seu propósito é bem outro (fortalecer identidades, sinalizar virtude, estabelecer autoridade, ganhar dinheiro). Pode até ser verdade que muitas tradições sobrevivem aos séculos “porque funcionam”. Só o “para quê” funcionam é que geralmente difere, às vezes de forma radical, daquilo que a propaganda diz.

Claro, a resposta correta à falácia de que “todo conhecimento tradicional é intrinsecamente verdadeiro” não é “todo conhecimento tradicional é intrinsecamente falso”, mas sim: se queremos saber se é verdadeiro ou falso, precisamos investigá-lo. “Tradicionalidade” não é um passe livre para escapar ao crivo do método científico. Se for, então não temos desculpa para manter os mortos enterrados.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto) e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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