A luta contra a homeopatia em sua “terra natal”

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25 jul 2022
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Túmulo de Samuel Hahnemann

Mais de duzentos anos depois que o médico alemão Samuel Hahnemann criou a homeopatia, no fim do século 18, a prática pseudocientífica enfrenta pela primeira vez uma oposição organizada em sua “terra natal”. Fundada em 2016, a Rede de Informações sobre a Homeopatia (Informationsnetzwerk Homöopathie, ou INH, na sigla em alemão) começou como um pequeno grupo de céticos preocupados em comunicar ao público a ineficácia e riscos da homeopatia e agora luta por mudanças na legislação do país, que no formato atual ajuda a legitimar e disseminar o uso da prática e sua oferta pelos sistemas público e privado de saúde. Ambição cada vez mais próxima de se tornar realidade, contam em entrevista à Revista Questão de Ciência três dos líderes da organização.

“Apenas pela segunda vez na história da Alemanha temos um médico como ministro da Saúde (o epidemiologista Karl Lauterbach, que assumiu o cargo em dezembro de 2021)”, destaca Christian Lübbers, otorrinolaringologista que atua como um dos porta-vozes do grupo. “Mais que isso, ele é um adepto da medicina baseada em evidência e crítico da homeopatia, que diz acertadamente ser uma pseudociência. Então esperamos, como céticos, que agora seja a hora de mudar”.

Lübbers se juntou ao grupo em janeiro de 2017, após ver uma paciente, uma menina de quatro anos, entrar em seu consultório com febre e se queixando de dores no ouvido. Um exame rápido revelou uma infecção no local, agravada por um tratamento inusitado tentado por seus pais: glóbulos homeopáticos, mas não tomados via oral, e sim introduzidos no canal auditivo da menina.

“Claro que isso não ajudou nada a febre e a dor da menina”, lamenta. “Como médico, todo dia vejo pacientes tomaram remédios homeopáticos dizerem que isso não os ajudou, mas este caso me assustou muito. Eu já falava sobre educação científica e ceticismo, então contei a história no Twitter. Com a repercussão do meu relato, fui procurado pela imprensa, e pesquisando para responder às questões sobre homeopatia encontrei o site da INH. Eram artigos tão bem feitos, cientificamente, e atualizados que entrei em contato com as pessoas por trás do trabalho, e hoje somos todos bons amigos”.

Entre estas pessoas estava um dos fundadores da organização, o engenheiro mecânico Norbert Aust. Um bem-sucedido empresário, Aust também se tornou um crítico da homeopatia devido a uma história pessoal. No seu caso, problemas de saúde de sua esposa, que receberam recomendação de tratamento homeopático.

“Os resultados, obviamente, não foram satisfatórios”, ironiza.

Diante disso, Aust procurou saber o por que da indicação para sua mulher buscar a homeopatia – segundo a amiga que havia indicado o tratamento disse a ele, simplesmente porque a homeopatia “funcionou” com ela. E, mais importante, decidiu investigar como algo sem um princípio ativo e cujas alegações contrariam tudo que se sabe da física, da química e da biologia pode ser sequer considerado como tratamento. De suas pesquisas resultou um blog, depois um livro e a entrada na Sociedade para Investigação Científica de Paraciências (Gesellschaft zur wissenschaftlichen Untersuchung von Parawissenschaften, ou GWUP), a principal organização cética para populações que falam alemão, reunindo membros da Alemanha, Áustria, Suíça e outros países.

Mas não foi o bastante. Em 2016, conta Aust, colegas da GWUP escreveram um artigo capitulando na batalha contra a homeopatia, afirmando que os céticos haviam “perdido a guerra” contra a prática na Alemanha e era melhor “seguir em frente” atacando outras pseudociências e charlatanismos mais óbvios e perigosos para o público. Ele, no entanto, se recusou a entregar os pontos, lançando a ideia da INH como um grupo de trabalho independente da GWUP para concentrar esforços da comunidade cética sobre a homeopatia, embora muitos dos participantes da rede também sejam membros da sociedade cética alemã.

“Pensei: vamos nos unir e ver se juntos podemos ter mais resultados”, relata. “E estamos indo muito bem. Apesar de sermos um grupo pequeno, de apenas algumas dúzias de pessoas, estamos tendo um tremendo sucesso, como com a recente decisão da Associação Médica da Alemanha (Bundesärztekammer) de banir a homeopatia como especialidade médica”.

Para entender o alcance e impacto desta decisão, no entanto, é preciso conhecer como funciona o ecossistema da saúde na Alemanha. A começar pela formação dos médicos. Assim como no Brasil, após a graduação em medicina nos cursos regulares, os médicos alemães precisam completar treinamentos adicionais para atuar como especialistas. E lá, como cá, a homeopatia é uma das opções. A diferença é que enquanto aqui a regulamentação da prática é feita em nível nacional pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que desde 1980 reconhece a homeopatia como uma especialidade médica, na Alemanha a palavra final cabe às associações médicas de cada um de seus “estados” (Länder).

Outro porta-voz da INH, Udo Endruscheit conta que a homeopatia começou a ser aceita como uma especialidade médica na Alemanha em 1958. A partir de 2019, o cenário começou a mudar, com a associação médica da região alemã de Bremen tornando-se a primeira a banir a especialização, na esteira de decisões de França, Reino Unido e outros países europeus de deixar de oferecer a prática ou de reembolsar os custos por meio de seus sistemas públicos de saúde, e da repercussão dessas decisões na Alemanha, com a ajuda da organização cética. Desde então, associações médicas de outras 11 regiões alemãs seguiram o exemplo da de Bremen e agora, com a decisão da associação nacional, o grupo espera que as quatro restantes façam o mesmo, e a homeopatia seja definitivamente expulsa da medicina regular alemã.

Isso não quer dizer, porém, que os homeopatas vão sumir do país. O problema é que, além dos tradicionais médicos, enfermeiros e farmacêuticos, o sistema de saúde alemão abriga um outro tipo de “profissional de saúde” reconhecido por lei. São os chamados heilpraktikers (algo como “praticantes da cura” em alemão), categoria que abarca adeptos de toda uma gama de tratamentos ditos alternativos ou complementares, incluindo de cristais a antroposofia, terapia neural, naturopatia, quiropraxia e, claro, homeopatia, aos quais o trio de líderes da INH se referem como “clínicos leigos”.

E se tornar um heilpraktiker não é muito difícil. Basta ter mais de 25 anos, ensino fundamental completo e não ter antecedentes criminais, além de passar com 40 acertos num teste de 60 perguntas relacionadas à saúde, nenhuma, porém, que exija real conhecimento técnico. Em compensação, eles não podem tratar doenças infecciosas, tampouco prescrever medicamentos – com exceção, claro, dos inócuos glóbulos de açúcar, pozinhos e extratos homeopáticos, florais de Bach, “óleos essenciais” e que tais.

“Tudo que eles precisam é provar que não são um perigo para a saúde pública, por mais óbvio que sejam”, ironiza Aust. “Os heilpraktikers não precisam ter ensino médio e sequer comprovar algum treinamento, mesmo nas suas pseudociências. O único ponto do teste é filtrar pessoas que talvez possam colocar em risco os pacientes, com perguntas do tipo ‘uma pessoa chega em seu consultório com um inchaço no pescoço. O que você faz?’, cuja resposta óbvia é ‘encaminhar para um médico’. São questões de puro bom senso que não exigem nenhum conhecimento específico de biologia, fisiologia, nada”.

Desta forma, resume Endruscheit, “a homeopatia é uma questão que se integra ao problema maior dos clínicos leigos” no sistema de saúde alemão. E é justamente por isso que o grupo escolheu a prática como alvo específico. Pela legislação atual na Alemanha, remédios homeopáticos só podem ser vendidos em farmácias, mas seu registro junto às autoridades sanitárias não tem o mesmo rigor dos produtos da medicina convencional, com que dividem as prateleiras.

“Eles não têm que seguir as mesmas regras de todos outros medicamentos à venda na Alemanha”, conta Lübbers. “No lugar de ensaios clínicos, simples relatos de caso já são aceitos como evidência médica”.

Além disso, acrescenta, os preparados homeopáticos podem obter registro pelo mecanismo de “consenso interno”, no qual uma seção especial de especialistas do Instituto Federal para Drogas e Aparelhos Medicinais da Alemanha (Bundesinstitut für Arzneimittel und Medizinprodukte, ou BfArM, o equivalente à brasileira Anvisa) analisa os pedidos. E no caso dos medicamentos homeopáticos, esta seção é composta exclusivamente por homeopatas.

“Então, fundamentalmente o que temos são médicos homeopatas decidindo se um preparado homeopático é remédio, e claro que a resposta é sempre ‘sim’,”, critica.

Desta forma, tanto o sistema público de saúde da Alemanha quanto grande parte dos seguros de saúde privados do país cobrem despesas com homeopatia, conferindo uma legitimidade descabida à prática, protesta Endruscheit.

“Não é um verniz de legitimidade, é uma legitimidade legal”, lamenta. “Por isso temos muito trabalho a fazer do ponto de vista legal. Mas a política só vai se mover quando a queda na reputação pública da homeopatia atingir um ponto crítico. Conversando com um político sobre o assunto algum tempo atrás, ele me perguntou quantos éramos na INH. Respondi que somos um grupo pequeno, de cerca de 60 pessoas, ao que ele retrucou: ‘volte quando forem 60 mil’. Mas isso não é mais uma ilusão. Estamos perto de uma mudança real, dando informação e criando conhecimento no público”.

Além das recentes decisões das associações médicas alemãs de retirar a homeopatia da sua lista de especialidades, outro exemplo disso é a queda nas vendas de produtos homeopáticos no país nos últimos anos. Citando números do próprio setor farmacêutico alemão, Aust diz que elas caíram de 412 milhões de euros em 2015 para 325 milhões de euros em 2020, com o número de unidades vendidas recuando de 43 milhões para 27 milhões no mesmo período.

“Eles perderam quase 40% do mercado”, comemora. “E isso é resultado de uma mudança geral na abordagem da homeopatia tanto na mídia quanto na opinião pública da qual somos parte”.

Endruscheit concorda:

“A homeopatia perdeu a ‘soberania’ que tinha na mídia alemã, que por séculos foi favorável a ela, e agora enfrenta criticismo, o que afetou sua imagem. Isso provocou uma mudança na reputação da homeopatia frente ao público. E um grande fator para isso foi a pressão que estamos exercendo para que a homeopatia não tenha mais o status legal de tratamento sem precisar provar sua eficácia. Precisamos eliminar os privilégios dados à homeopatia do ponto de vista sanitário na Alemanha. E temos esperança que vamos avançar mais neste sentido”.

Aust finaliza lembrando que embora os gastos com homeopatia no sistema público de saúde da Alemanha, da ordem de algumas dezenas de milhões de euros, possam parecer pouco frente a um orçamento que alcança dezenas de bilhões de euros, esta é uma luta que ecoa as muitas reformas e melhorias que todo o ecossistema de saúde do país necessita.

“Se não pudermos resolver esse problema simples e com tantas evidências sobre o que deve ser feito, como vamos ser capazes de reconhecer e resolver problemas que são muito mais complexos?”, questiona.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

 

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