Evolucionistas distorcendo conceitos da evolução

Artigo
15 abr 2025
Esboço de diagrama da árvore da vida, encontrado em caderno de Charles Darwin

 

O biólogo e divulgador científico Richard Dawkins é anfitrião de um podcast, The Poetry of Reality. Segundo o site oficial, “esta é uma experiência audiovisual que acompanha nosso aclamado protagonista em sua exploração do mundo natural e em sua busca pela verdade por meio da curiosidade científica”. Em um dos episódios mais recentes, Dawkins fala com Steven Pinker, “um psicólogo cognitivo, psicolinguista, autor de divulgação científica e intelectual público canadense-americano. Ele é um defensor da psicologia evolucionista e da teoria computacional da mente”, segundo descrição do vídeo da conversa no YouTube.

Claro que o tema principal foi biologia evolutiva. E conhecendo Dawkins e Pinker, não me surpreende que eles tenham gastado um tempo para dizer inverdades sobre as ideias de outros que desagradam a visão adaptacionista adotada por ambos. Discutir ideias é sempre bom, mas quando isso é feito por meio de espantalhos (ou mesmo mentiras), daí fica difícil tirar proveito. Parece que estes senhores não fazem o dever de casa há 50 anos, o que é definitivamente um problema, dada a influência que ambos têm.

Há muitos pontos da conversa que poderiam ser abordados, mas comentarei o trecho que vai de 10min35s a 14min18s. Como vocês já devem saber, junto de Niles Eldredge, Stephen Jay Gould é conhecido pela Teoria dos Equilíbrios Pontuados (TEP), sobre a qual já escrevi aqui. Sobre essa teoria, Pinker comenta o seguinte:

“O gradualismo... Ah, isso era tão, tão antiquado [para Gould]. Gould foi um defensor de uma teoria alternativa que ele chamou de equilíbrio pontuado... Nessa teoria, as mudanças eram instantâneas. Mas é preciso lembrar que Gould era paleontólogo, e 'instantâneo' para um paleontólogo significa algo como 10.000 anos, então é um pouco enganoso. Além disso, não são os indivíduos que são selecionados, mas poderiam ser grupos e até mesmo espécies”.

Pra começo de conversa, essa é realmente uma péssima descrição da Teoria dos Equilíbrios Pontuados. E Dawkins sabe, mas consente. Quando Pinker diz que “é um pouco enganoso” a questão das escalas temporais, só posso entender que ele não leu o material publicado (embora tenha dito que sim), ou não foi capaz de realmente compreender. Eldredge e Gould sempre deixaram clara a questão da escala geológica; algo pode parecer rápido geologicamente, mas ser lento para os nossos padrões.

A ideia da Teoria dos Equilíbrios Pontuados é que o tempo de especiação é curto em relação ao tempo total de existência de uma espécie e se comparado à escala de tempo geológico. Um aspecto fundamental da teoria, que Pinker não menciona, é a estase morfológica (jeito técnico de dizer que a forma, ou aparência geral, do organismo não muda significativa e consistentemente). Ao longo dos milhões de anos, a morfologia (forma) oscila, mas não segue uma tendência cumulativa de mudanças, contrário às expectativas do gradualismo clássico. Esse é o gradualismo que Eldredge e Gould contestaram, mas sem propor nenhum tipo de "saltacionismo" (mais a seguir).

Como veremos, existem boas evidências de que Pinker nunca realmente entendeu ou deu a devida atenção à teoria que não considera válida. Voltando no trecho citado, quando diz que Eldredge e Gould propunham que “não são os indivíduos que são selecionados, mas poderiam ser grupos e até mesmo espécies”, revela sua ignorância. Esse é um erro de interpretação sobre a Teoria dos Equilíbrios Pontuados e a seleção multinível. Não faz parte da Teoria dos Equilíbrios Pontuados em si que as espécies sejam o alvo da seleção, não os organismos. Na verdade, a dinâmica evolutiva sob a óptica dessa teoria permite contemplar a possibilidade de outros níveis de seleção, que não só o nível dos organismos em populações.

Gould, Eldredge e Vrba, para citar apenas alguns autores, argumentavam — muitas vezes discordando entre si sobre o real critério que define o que é seleção em níveis outros que não o do organismo — que a seleção poderia ocorrer em vários níveis (genes, indivíduos, grupos, espécies), mas isso não significa que indivíduos não sejam selecionados. Genes e organismos continuam sendo potenciais e importantes alvos de seleção, mas não precisam ser níveis exclusivos.

Pinker então fala como ele leu aquelas ideias, e como sentia que havia algo de errado com elas, até que ele leu “O Relojoeiro Cego” (Dawkins, 1986), e então:

“Eu diria que o tema principal de O Relojoeiro Cego é que o que torna especial a teoria da seleção natural de Darwin é que ela é a única teoria capaz de explicar a aparência de design e engenharia nos organismos vivos... Nenhum processo cego ao resultado de uma montagem física poderia resultar em algo que parecesse tão incrivelmente projetado para cumprir uma função. 

Uma macromutação, uma mudança súbita, não poderia fazer isso, pois a chance de uma única mudança aleatória gerar uma asa, um olho ou um coração é infinitesimal...”.

Se você colocar em contexto, perceberá que Pinker trouxe os temas adaptação, gradualismo e equilíbrios pontuados. É no mínimo curioso que ele tenha trazido o tema “macromutação” ou “mudanças súbitas” para a discussão, após ter falado sobre equilíbrios pontuados. Como já disse, os equilíbrios pontuados não têm nada a ver com saltacionismo. Essa associação falsa é feita tanto por criacionistas (obviamente), quanto por biólogos evolutivos. Veja, por exemplo, o que Jerry Coyne, biólogo evolutivo e autor do livro “Porque a Evolução é uma Verdade”, já afirmou:

“A ideia dos monstros esperançosos macromutacionais, ou ‘saltações’, teve um ressurgimento proeminente em 1980, quando Stephen Jay Gould, como parte de sua teoria do equilíbrio pontuado em colaboração com Niles Eldredge, propôs que macromutações poderiam explicar os ‘saltos’ no registro fóssil. Após receberem duras críticas dos geneticistas, Eldredge e Gould recuaram em 1993, alegando que nunca haviam sugerido a ideia de saltações”.

Nunca fez parte da Teoria dos Equilíbrios Pontuados a ideia de que “macromutações poderiam explicar os ‘saltos’ no registro fóssil”. Eldredge e Gould não recuaram, pois nunca avançaram essa ideia. É fácil provar esse ponto. Como? O próprio Daniel Dennett, amigo de Dawkins e citado por Pinker mais adiante na conversa, escreveu sobre o assunto em seu livro de 1995, "A Perigosa Ideia de Darwin". Respondendo à pergunta sobre se Eldredge e Gould propuseram ou não macromutações como explicação para o padrão evolutivo dos equilíbrios pontuados, Dennett explica:

“Mas será que eles sugeriram isso? Devo admitir que pensei que sim, até que Stephen Gould insistiu para que verificasse todas as suas diversas publicações e visse por mim mesmo que seus opositores estavam impondo uma caricatura sobre ele”.

Dennett investigou as publicações. E comenta:

“O equilíbrio pontuado não é uma teoria de macromutação" (Gould, 1982, p. 88).

No entanto, a confusão sobre esse ponto ainda persiste, e Gould teve que continuar emitindo seus esclarecimentos:

"Nossa teoria não implica nenhum mecanismo novo ou violento, mas apenas representa a devida escala dos eventos ordinários dentro da vastidão do tempo geológico" (Gould, 1992b, p. 12).

Assim, essa foi uma revolução falsa, que existiu em grande parte, senão inteiramente, apenas nos olhos de quem a interpretava dessa forma”.

Naquele mesmo ano, Niles Eldredge também lamentou sobre a situação (Reinventing Darwin, 1995):

“No entanto, fomos acusados de ser saltacionistas. Stephen Gould escreveu dois ensaios consecutivos na Natural History em 1977. Entre outras coisas, Stephen especulou que a recente (sic) descoberta de genes reguladores — genes que ativam e desativam outros genes — levantava a possibilidade de que mutações no aparato regulatório pudessem ocasionalmente ter o tipo de efeito que Goldschmidt tinha em mente com sua noção de ‘macromutações’. Essas macromutações teriam efeitos em larga escala, do tipo que ele postulava para seus ‘monstros esperançosos’. Em nenhum dos dois artigos Stephen mencionou o equilíbrio pontuado.

“Mas parece que bastou o fato de que ele, defensor de um novo modelo que propunha períodos de mudança relativamente rápida, discutisse Goldschmidt em termos favoráveis alguns anos depois [para que surgissem acusações de saltacionismo]. Mayr foi um dos primeiros a acusar o equilíbrio pontuado de não ser nada além do velho saltacionismo disfarçado. Nossa dívida com o conceito de espécie e especiação de Mayr, tão central para a ideia do equilíbrio pontuado, acabou levando-o a mudar de opinião. Mayr passou a preferir levar o crédito pelo equilíbrio pontuado, em vez de vê-lo associado ao seu antigo inimigo, Goldschmidt”.

No começo do trecho aqui discutido, Pinker fala do famoso artigo de Gould e Lewontin (1979) sobre os problemas do adaptacionismo, onde eles introduzem o termo spandrel — um subproduto evolutivo, isto é, algo que não é diretamente um resultado de seleção. Sobre os spandrels, Pinker diz:

“Além disso, nem tudo pode ser um spandrel de uma adaptação, porque, por definição, é necessário que existam adaptações para que possam existir spandrels.

“Mas na atmosfera intelectual da época — e isso ainda é amplamente verdade — se você disser que algo é uma adaptação, será repreendido com a alegação de que Gould e Lewontin refutaram toda essa ideia, chamando-a de um monte de narrativas convenientes”.

O primeiro ponto é óbvio. E Gould e Lewontin nunca negaram a importância da adaptação e da seleção natural. Gould e Lewontin permitem que você diga que algo é uma adaptação. O que eles criticaram é a obsessão dos biólogos evolutivos em inventar uma historinha adaptativa para tudo só porque é possível fazê-lo! Gould e Lewontin não "desprovaram" a adaptação, mas argumentaram que nem tudo é adaptativo. A crítica deles era ao pan-adaptacionismo, que assume que toda característica biológica é uma adaptação, sem considerar fatores como desenvolvimento, restrições genéticas e do desenvolvimento, bem como aspectos da história evolutiva dos organismos. Eles só estavam pedindo maior rigor e pluralidade científica legítima. Isso é crime?

Por fim, não poderia encerrar de outra maneira. Na edição de 1872 de “A Origem das Espécies”, Darwin escreveu (p. 421):

“Mas como minhas conclusões têm sido muito deturpadas ultimamente, e tem-se afirmado que atribuo a modificação das espécies exclusivamente à seleção natural, posso me permitir fazer a seguinte observação: na primeira edição desta obra, e posteriormente, coloquei em uma posição extremamente destacada — ou seja, no final da Introdução — as seguintes palavras: ‘Estou convencido de que a seleção natural tem sido o principal, mas não o único meio de modificação.’ Isso de nada adiantou. Grande é o poder da deturpação persistente; mas a história da ciência mostra que, felizmente, esse poder não perdura por muito tempo”.

Darwin era otimista demais.

 

João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade

 

REFERÊNCIAS

Dennett, D. (1995) Darwin's Dangerous Idea. Simon & Schuster, New York.

Eldredge, N. (1995) Reinventing Darwin. John Wiley & SOns, Inc., New York

Dawkins, R. (1986). The blind watchmaker: Why the evidence of evolution reveals a universe without design. W. W. Norton & Company.

Gould, S. J., & Lewontin, R. C. (1979). The spandrels of San Marco and the Panglossian paradigm: A critique of the adaptationist programme. Proceedings of the Royal Society of London. Series B, Biological Sciences, 205(1161), 581–598.

 

 

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