A proibição da ora-pro-nóbis

Artigo
25 abr 2025
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colher contendo pó de suplemento de base vegetal

 

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou, no início do mês, a Resolução-Re nº 1.282, de 2 de abril de 2025, que proíbe a comercialização, distribuição, fabricação, propaganda e uso de todos os suplementos alimentares contendo a planta ora-pro-nóbis.

O documento ressalta a comercialização e veiculação de propaganda irregular de suplementos alimentares, uma vez que a ora-pro-nóbis não é um ingrediente autorizado.

Além disso, os suplementos infringem inúmeras regulamentações, como o inciso II do artigo 4º da RDC nº 727, de 2022, que afirma: “A rotulagem dos alimentos embalados não pode atribuir efeitos ou propriedades que não possuam ou que não possam ser demonstradas”. O inciso VII desse mesmo artigo determina: “A rotulagem dos alimentos embalados não pode indicar que o alimento possui propriedades medicinais ou terapêuticas”.

A intervenção da agência reguladora, em minha opinião, demorou para acontecer, dada a quantidade alarmante de propagandas que faziam alegações mirabolantes sobre o suplemento, variando de pequenas mentiras, como “produto rico em proteínas”, até absurdos que afirmavam que poderia auxiliar no tratamento de artrite.

Só para exemplificar como essas propagandas são problemáticas: a empresa TopOne Saúde contratou a cantora Sula Miranda para realizar uma publicidade na qual é vendido o “Super Ora-pro-nóbis + cúrcuma e gengibre”, um produto que supostamente auxilia nas dores do corpo, gota, fibromialgia, anemia, carência de vitaminas, má circulação, diabetes, pressão alta e faz seu Imposto de Renda - ok, esse último eu inventei, mas a base teórica é a mesma dos demais.

Para evitar possíveis problemas legais, a publicidade, inclui, em letras miúdas, a seguinte mensagem:

“Os resultados podem variar de pessoa para pessoa, e nenhum efeito particular é garantido. Para obter melhores resultados, recomenda-se complementar com uma rotina de exercícios adequada, acompanhada de uma alimentação e estilo de vida saudáveis”.

Até o momento da elaboração deste artigo, 13 de abril, uma busca rápida no Google ainda encontrava inúmeros anúncios de venda do suplemento, com as mesmas alegações de saúde responsáveis pela proibição da ora-pro-nóbis.

Para ser justo, existem algumas pesquisas que sugerem que a planta pode ter propriedades medicinais. Mas a maior parte das evidências relacionadas ao consumo de ora-pro-nóbis é proveniente de estudos in vitro (em vidrinho de laboratório) ou em animais. Embora existam, de fato, alguns testes em humanos — que abordarei adiante —, não seria exagero encerrar o artigo aqui e afirmar que, até o momento, não há nenhuma evidência de boa qualidade que justifique o uso de ora-pro-nóbis como suplemento.

Contudo, como houve manifestações, após a proibição dos suplementos, tanto de pseudo-especialistas quanto da grande mídia, afirmando que o consumo da planta tem atividade anti-inflamatória, antioxidante, além de ajudar a regular o funcionamento do intestino, entre outros benefícios, acredito que seja necessário avançar mais um pouco.

 

O que é ora-pro-nóbis

A ora-pro-nóbis é o nome popular atribuído a plantas de 17 diferentes espécies do gênero Pereskia, sendo que, no Brasil, as duas principais são P. aculeata Miller e P. grandifolia Haw. Embora ambas sejam consideradas Plantas Alimentícias Não Convencionais (plantas ou partes de plantas com potencial alimentício e nutricional, mas que muitas vezes não são consumidas por falta de conhecimento), a espécie aculeata é a mais consumida no país e, por conta de seu conteúdo de proteína, ficou conhecida como “carne de pobre”.

De acordo com o artigo “Pereskia aculeata Miller as a Novel Food Source: A Review”, publicado em 2023 na revista Foods (um periódico com revisão por pares voltado a pesquisas sobre alimentos), as folhas da ora-pro-nóbis, como ocorre com a maioria dos vegetais folhosos, são compostas predominantemente por água. Secas, as folhas têm  composição formada por 23% de proteínas, 31% de carboidratos, 8% de gordura e 4% de fibras alimentares solúveis, além de vitaminas A, C e E, e outros compostos.

A ora-pro-nóbis destaca-se por ter uma maior concentração de proteínas quando comparada à maioria dos outros vegetais, além de apresentar boa digestibilidade.

A planta é utilizada na medicina popular brasileira para diferentes finalidades, como anti-inflamatório, tratamento de machucados na pele e até mesmo câncer. São usos folclóricos, que requerem estudos científicos para serem validados.

Bem estalecido, apenas, é o caráter nutritivo da planta, mas mesmo isso pode ser alvo de exageros. Pelo que observei em diferentes postagens, há quem indique o consumo de 10 folhas ao dia para atingir as recomendações diárias de grande parte dos micronutrientes e fornecer uma boa quantidade de proteínas.

Partindo do pressuposto de que cada folha pese, aproximadamente, 3 gramas – o que duvido –, estaríamos falando de 30 gramas. Contudo, ao comparar essa alegação com os valores estabelecidos por uma tabela nutricional oficial — no caso, a Tabela Brasileira de Composição de Alimentos (TBCA) —, podemos observar que 30 gramas de ora-pro-nóbis equivalem a menos de 1 grama de proteína (0,8 g, para sermos exatos).

No caso dos micronutrientes, é mais difícil afirmar algo com precisão, visto que os estudos que investigaram essas concentrações apresentam valores conflitantes.

Por exemplo, Fontenele, T. e Filho, G., em seu artigo Nutrient content in ora-pro-nóbis (Pereskia aculeata Mill.): unconventional vegetable of the Brazilian Atlantic Forest”,  observaram que, apesar de encontrarem valores elevados para vitamina E, cálcio, magnésio, manganês, ferro, potássio, selênio e vitamina A, seus resultados foram, em média, mais de 80% menores dos encontrados pelo estudo “Mineral composition and ascorbic acid content in four non-conventional leafy vegetables species” e quase 90% menores dos registrados no estudo “Nutritive evaluation of a non-conventional leafy vegetable (Pereskia aculeata Miller)”.

Como possível explicação para essa grande variação nos resultados, os autores destacam que isso pode ser atribuído às diferenças na estrutura botânica das plantas. Por estarem presentes em um ambiente natural e não controlado, é possível que fatores ambientais alterem a composição mineral do solo onde essas plantas são cultivadas.

Ou seja, a alegação de que o consumo de poucas folhas supre grande parte das necessidades nutricionais diárias não deve ser encarada como uma recomendação séria.

Em relação às possíveis finalidades terapêuticas, por mais que ela seja utilizada na medicina popular e endossada por diferentes gurus da saúde, é importante deixar claro que quase todas — literalmente, há apenas uma única exceção na literatura científica — são baseadas em estudos conduzidos in vitro ou em animais.

 

Os estudos

Há pouquíssimas pesquisas que utilizaram uma metodologia do tipo ensaio clínico randomizado para avaliar um possível efeito benéfico da ora-pro-nóbis. Um desses estudos foi publicado em 2019, sob o título "Effect of Pereskia aculeata Mill. in vitro and in overweight humans: A randomized controlled trial". Nele, os pesquisadores investigaram a influência da farinha de ora-pro-nóbis na adesão de probióticos (bactérias benéficas do intestino) às células epiteliais intestinais, além de avaliarem o efeito de um produto à base dessa farinha em sintomas gastrointestinais, peso, gordura corporal, glicemia e perfil lipídico em homens com sobrepeso.

Os resultados da combinação com probiótico foram positivos, mas os de impacto direto na saúde não impressionam. O estudo já havia começado com uma amostra muito pequena (24 voluntários apenas) e a maioria deles abandonou a pesquisa antes do fim. Medidas objetivas, como massa corporal e exames de sangue, não mostraram vantagem do consumo de ora-pro-nóbis. Houve algum progresso em medidas subjetivas, que são exatamente as mais vulneráveis a sugestionamento e efeito placebo.

Um ano após a publicação do estudo anterior, o periódico Nutrition aceitou um trabalho intitulado A Beverage Containing Ora-Pro-Nóbis Flour Improves Intestinal Health, Weight, and Body Composition: A Double-Blind Randomized Prospective Study, cujo objetivo foi avaliar os efeitos de uma bebida contendo farinha de ora-pro-nóbis sobre a saúde intestinal e os parâmetros antropométricos de mulheres adultas.

Para isso, foi conduzido um estudo randomizado, duplo-cego e prospectivo com duração de seis semanas, no qual as participantes foram divididas em dois grupos: um recebeu uma bebida acrescida de farinha de ora-pro-nóbis, e o outro, uma bebida controle, sem o ingrediente. A amostra foi composta exclusivamente por mulheres não vegetarianas, com idades entre 20 e 60 anos, percentual de gordura corporal acima de 25%, sem diagnóstico prévio de doenças autoimunes, endócrinas, cardíacas ou gastrointestinais; que não haviam passado por procedimentos cirúrgicos nos últimos seis meses; e que não haviam utilizado suplementos, laxantes, antibióticos ou probióticos no último ano. A amostra foi composta por apenas 24 voluntárias.

Das 24 participantes inicialmente incluídas, 22 (91,6%) completaram o estudo. As duas desistências ocorreram no grupo controle.

O grupo que recebeu ora-pro-nóbis apresentou reduções no peso corporal, na circunferência da cintura, na massa de gordura e no percentual de gordura corporal. O grupo controle, por sua vez, apresentou redução apenas no percentual de gordura corporal. Mas após as seis semanas de intervenção, não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre os grupos.

Os autores do trabalho reconhecem que, como o grupo controle também apresentou redução da gordura corporal, outros componentes presentes em ambas as bebidas (como leite em pó, beterraba, estévia e goma xantana) poderiam ter influenciado os desfechos. No entanto, ao observar a tabela de comparação dos macronutrientes e da ingestão de fibras dietéticas, acredito que o principal responsável por esse resultado seja, pasmem, uma redução no consumo calórico: enquanto o grupo controle reduziu sua ingestão em 132 kcal, o grupo intervenção apresentou uma queda de 416 kcal.

Reconheço que a redução calórica pode estar relacionada a um aumento na saciedade — que, nesse caso, poderia ter sido promovido em menor escala pela bebida controle e de forma mais significativa pela bebida contendo ora-pro-nóbis. Entretanto, é importante ressaltar que a ferramenta utilizada para estimar a ingestão alimentar foi o recordatório alimentar, o qual é passível de viés de memória e altamente suscetível ao efeito Hawthorne (modificação do comportamento dos participantes, pelo simples fato de saberem que estão sendo observados).

E o grupo intervenção também apresentou maior proporção de participantes engajados em atividade física.

Tudo isso leva à conclusão de que a única descoberta relevante, embora não tão nova, do estudo — e somente se os dados forem válidos — é que as fibras presentes na ora-pro-nóbis podem reduzir o apetite. No entanto, esse efeito é característico de qualquer alimento que contenha fibras solúveis.

Enfim, não há  evidências robustas para sustentar 99% das alegações de benefício de saúde feitas a respeito da ora-pro-nóbis. E, quanto ao 1% restante, relacionado ao emagrecimento e perda de gordura corporal, as evidências disponíveis são de baixíssima qualidade e incapazes de comprovar os efeitos sugeridos.

Apesar dessas considerações, vale ressaltar que, caso você aprecie o sabor da planta, não há razão para deixá-la de fora da sua alimentação. No entanto, é importante ter em mente que ela não é superior a outras verduras e nem tem poderes mágicos. Lembre-se sempre: comida não é medicamento

Por fim, acredito que seja relevante um pequeno comentário sobre a decisão da Anvisa e o que ela representa na prática. A agência foi extremamente lenta em suas ações, e a decisão deveria abranger todos os suplementos alimentares que fazem alegações similares. Além disso, as penalizações previstas para quem comete infrações são brandas, variando de multas de R$ 2.000 para infrações leves até R$ 1,5 milhão para infrações gravíssimas.

 

Falhas na lei

Por conta disso, admito, com pesar, que o Projeto de Lei 5742/23, proposto pelo deputado Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), pode, com os devidos ajustes, ser uma alternativa interessante para proteger os consumidores. Esse PL fixa penas de reclusão, de um a cinco anos, além de multa, para quem fizer propaganda enganosa de suplementos alimentares. Também determina que os rótulos informem que o produto não tem ação terapêutica ou farmacológica e que não é indicado para o tratamento, prevenção ou cura de doenças – algo que já deveria ser proibido por lei.

Contudo, como analisado pelo diretor-presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, o PL apresenta algumas inconsistências. Por exemplo, a exigência de um novo dispositivo legal que obrigue a veiculação de um aviso de que o produto não possui ação terapêutica ou farmacológica é redundante, pois isso já é previsto em regulamentações.

Além disso, o PL não define com clareza os critérios para a imputação de crimes. A pena de reclusão deveria ser associada a uma avaliação de risco da infração, com regras mais claras para classificar quais alegações ou publicidades seriam de alto risco à saúde e, portanto, passíveis de punição.

Sem essas delimitações, tanto uma propaganda que diz que um suplemento ajuda com constipação quanto outra que afirma que o suplemento é auxiliar no tratamento de câncer de intestino poderiam ser tratadas da mesma forma, o que não parece adequado.

Portanto, acredito que um PL que atenda a essas necessidades de dosimetria e estabeleça penas mais rígidas seria um bom começo para enfrentarmos esse problema. No entanto, de forma isolada, não será suficiente. Medidas educacionais são fundamentais para aumentar o senso crítico da população, que muitas vezes, por ignorância, não entende como funciona o processo de fiscalização, regulação e liberação da Anvisa.

 

Mauro Proença é nutricionista

 

REREFÊNCIAS

ANVISA. Resolução-RE Nº 1.282, de 2 Abril de 2025. Disponível em: https://static.poder360.com.br/2025/04/RESOLUCAO-RE-No-1.282-DE-2-DE-ABRIL-DE-2025-RESOLUCAO-RE-No-1.282-DE-2-DE-ABRIL-DE-2025-DOU-Imprensa-Nacional.pdf.

ANVISA. Resolução - RDC Nº 727, de 1 de Julho de 2022. Disponível em: https://anvisalegis.datalegis.net/action/ActionDatalegis.php?acao=abrirTextoAto&tipo=RDC&numeroAto=00000727&seqAto=002&valorAno=2022&orgao=RDC/DC/ANVISA/MS&codTipo=&desItem=&desItemFim=&cod_menu=9434&cod_modulo=310&pesquisa=true.

SILVA, N. et al. Pereskia aculeata Miller as a Novel Food Source: A Review. Foods 2023, 12(11), 2092.Disponível em: https://www.mdpi.com/2304-8158/12/11/2092.

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VIEIRA, C. et al. Effect of Pereskia aculeata Mill. in vitro and in overweight humans: A randomized controlled trial. Journal of Food Biochemistry, Volume 43, Issue 7. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/jfbc.12903.

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CRIVELLA, M. Projeto de Lei Nº 5742/2023. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2365361&filename=PL%205742/2023.

TORRES, B. Voto No 271/2024/SEI/Diretor-presidente/ANVISA. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/composicao/diretoria-colegiada/reunioes-da-diretoria/votos-dos-circuitos-deliberativos-1/2024/cd-936-2024-voto.pdf/@@download/file.

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