O terraplanismo irônico de uma certa filosofia

Apocalipse Now
3 fev 2024
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Há alguns dias, dei uma entrevista sobre movimento terraplanista em que recapitulei, de modo bem resumido, a história de sempre – criado na Inglaterra por fundamentalistas bíblicos no século 19, resgatado, na mesma Inglaterra, por outros fundamentalistas, em meados do século 20, revivido nos EUA na década de 1970, virtualmente extinto em 2001, ressuscitado pela internet e pelo YouTube a partir de 2004.

Essa versão telescópica deixa de fora alguns detalhes interessantes. Por exemplo, a história da teocracia fundamentalista de Zion, Illinois, EUA, cidadezinha famosa pelos doces de figo e chocolate que exportava e onde, durante alguns anos do século passado – de 1920 a 1935, mais ou menos – foi ilegal ensinar às crianças que a Terra era redonda, por determinação do autocrata Wilbur Glenn Voliva (1870-1942).

Outra curiosidade: o Projeto Apollo, que levou astronautas à Lua, fez de Samuel Shenton (1903-1971), principal líder e porta-voz da Sociedade Internacional da Terra Plana (estabelecida na Inglaterra em 1956) uma celebridade internacional: jornalistas dos dois lados do Atlântico pareciam incapazes de resistir à tentação de ligar para ele e perguntar o que achava das fotos da Terra feitas do espaço. O astronauta Frank Borman (1928-2023), comandante da Apollo 8 (primeira missão tripulada a circular a Lua, responsável pela famosa foto da Terra “nascendo” por trás da superfície lunar) mencionou Shenton pelo nome durante uma transmissão ao vivo feita durante o histórico voo espacial, televisionada e acompanhada por algo em torno de meio bilhão de terráqueos embevecidos.

 

Filosofia

Mas mesmo a história de Zion e as aventuras espaciais de Samuel Shenton ainda são parte do que poderíamos chamar de “corrente principal” do terraplanismo – a crença sincera de que a Terra é plana, baseada na ideia de que a evidência imediata dos sentidos, expurgada de qualquer tipo de “teoria”, somada à interpretação literal da Bíblia, basta para descrever a realidade.

Esses terraplanistas não praticam exatamente o que pregam (não hesitam em inventar teorias das mais malucas para distorcer a evidência dos sentidos e, assim, sustentar suas crenças), mas essa é outra história. O que marca os integrantes da corrente principal são três características: o literalismo bíblico que os motiva, a sinceridade com que se expressam e a paródia involuntária da ciência que praticam; presente, por exemplo, nos experimentos que propõem, no uso inepto que fazem de jargões como “magnetismo” e nos raciocínios que enunciam: Shenton teria começado a “desconfiar” do formato da Terra ao descobrir que sua ideia de viajar de um lugar ao outro apenas subindo na atmosfera com um aparelho estático e esperando que o mundo girasse por baixo era impraticável.

Existe porém uma outra linha, hoje menos lembrada, mas cuja influência no mundo provavelmente foi – e ainda é – muito maior que a dos terraplanistas sinceros: é a dos terraplanistas irônicos ou, talvez melhor dizendo, filosóficos. Um precursor dessa vertente foi o dramaturgo, escritor e polemista britânico George Bernard Shaw (1856-1950), que no prefácio de sua peça “Santa Joana”, de 1923, comenta o seguinte:

“Na Idade Média, as pessoas acreditavam que a Terra era plana, para o que tinham, pelo menos, a evidência dos seus sentidos: hoje acreditamos que é redonda, não porque um mínimo de 1% de nós seja capaz de oferecer razões físicas para uma crença tão singular, mas porque a ciência moderna nos convenceu de que nada do que é óbvio é verdade, e de que tudo o que é mágico, improvável, extraordinário, gigantesco, microscópico, cruel ou ultrajante é científico”.

Shaw está errado sobre o que as pessoas pensavam na Idade Média (a esfericidade da Terra já havia sido demonstrada na Antiguidade por Aristóteles e Eratóstenes, entre outros), mas o argumento aí é outro: trata-se de uma crítica à aceitação automática e irrefletida dos enunciados científicos, só porque são chamados de científicos. A questão implícita no terraplanismo irônico de Shaw é: se o apelo à autoridade, em geral, é uma forma inválida de argumento, por que damos tanto valor ao apelo à autoridade científica?

Essa é uma questão profunda, cuja resposta esboçamos várias vezes nesta Revista Questão de Ciência (por exemplo, aqui, aqui e aqui). A versão curta é que a ciência, sendo um processo coletivo de investigação norteado por métodos selecionados para reduzir ao máximo o risco de erros e vieses, tende a fornecer a melhor descrição possível da realidade empírica, num dado momento histórico. Mas como esses métodos e os conhecimentos necessários para interpretar seus resultados tendem se tornar cada vez mais complexos, muitas vezes o melhor que os não especialistas podem fazer é confiar na palavra – na autoridade – dos especialistas. Que não são infalíveis, mas, dentro dos limites estritos de suas áreas de especialização, em geral são menos falíveis do que o restante de nós.

 

Controvérsia como valor

A atitude expressada por Bernard Shaw foi levada ao extremo, décadas mais tarde, por um grupo de escritores, filósofos e poetas do Canadá que em 1971 criou a Sociedade Canadense da Terra Plana. Seu principal porta-voz era o filósofo Leo Ferrari (1927-2010), e o objetivo, ser um agente provocador, ironizando e trinchando com sarcasmo a pompa da academia e o que os membros fundadores da Sociedade consideravam as pretensões “sufocantes” da ciência.

Um dos primeiros “papers” de Ferrari como líder da Sociedade acusava o “globalismo” de ser uma fantasia racista, criada para fazer os habitantes do Hemisfério Sul se sentirem “por baixo” e, portanto, inferiores.

Numa entrevista, o filósofo disse ao repórter que “nossa obsessão não é realmente com a forma da Terra. Dizemos que é plana para dramatizar nosso desejo de impedir que nossos sentidos sejam insensibilizados pela tecnologia. Para oferecer alguma resistência contra as forças da conformidade”. De acordo com a historiadora Christine Garwood, autora da história do terraplanismo “Flat Earth: The History of an Infamous Idea”, Ferrari “ecoava o neo-romantismo dos críticos radicais da ciência dos anos 1960”.

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O terraplanismo irônico insere-se numa tradição cultural de ver o “controverso” ou o “inconformista” como valores em si. Nessa visão, não importa realmente se uma ideia está certa ou errada, o que importa é que ela desafia o senso comum e sacode a complacência, o respeito bovino à autoridade e o tédio mental dos automatismos do cotidiano. “Ousar ser diferente” é um gesto heroico, não importa diferente do quê.

Como o professor de Literatura David Eso escreve no prefácio a “The Earth is Flat!”, uma compilação dos escritos terraplanistas de Ferrari, o terraplanismo canadense oferecia uma “resposta dionisíaca ao Projeto Apollo”. Um recorte da capa do livro de Ferrari ilustra este artigo.

 

Dois livros, duas épocas

Essa mesma atitude aparece num par de obras, publicadas num intervalo de quase vinte anos, que olham com carinho para os terraplanistas sinceros, aqueles que participam do que chamei de “corrente principal”: “Square Pegs”, livro de não ficção do romancista Irving Wallace, lançado em 1957, e “Can You Speak Venusian?”, do jornalista britânico Patrick Moore, de 1972 (com uma segunda edição, atualizada, em 1976). Wallace publica uma entrevista com Voliva; Moore fala de ter encontrado Shenton. Nenhum dos autores concorda com seus sujeitos, mas ambos lançam sobre eles olhares cheios de algo que parece ternura, e admiram a firmeza de propósito que os anima. Wallace escreve:

“Wilbur Glenn Voliva estava errado, é claro. Ela era um atavismo de uma era de ignorância e superstição. Era um fanático preconceituoso. Era um tirano. Talvez fosse até um imbecil. Não representava nada em que eu acreditasse então, ou em que acredite agora. Mas às vezes, ainda hoje, lembro-me dele com afeto e gratidão”.

Talvez não seja coincidência que os livros de Wallace (1957) e de Moore (primeira edição, 1972) marquem, como um par de parênteses, a entrada e a saída dos “neo-românticos” anos 1960. Autores argutos tendem a sintonizar o espírito dos tempos.

Mas dá para notar uma leve diferença de enfoque entre o livro do fim dos anos 1950 e o do início da década de 1970. Se o tom de Wallace, escrevendo nos estertores da caça às bruxas macartista, era de uma reverência absoluta pela liberdade de expressão e de valorização da divergência enquanto divergência (“o inconformista, por mais excêntrico que seja, por mais pateticamente errado ou divinamente certo, merece tolerância, respeito e a liberdade humana de ser diferente”), Moore, já na ressaca da Era Lisérgica, preocupava-se em traçar uma divisa entre os “pensadores independentes”, que reverencia, e os “charlatões”, que abomina.

 

Valor como controvérsia

Cem anos após Bernard Shaw lançar o terraplanismo irônico, com a memória ainda fresca em nossas mentes da pandemia de COVID-19, depois da explosão exponencial do movimento antivacinas e da chegada (aparentemente, para ficar) dos negacionismos como estratégia de poder, fica a impressão de que nossos antepassados próximos tinham um otimismo exagerado quanto à condição humana: acreditavam que uma ideia provocativa, mesmo que catastroficamente errada, poderia ser mantida numa espécie de cercadinho de zoológico, conformada ao papel inofensivo de chacoalhar a patuleia, épater la burgeoisie, sem vontade ou disposição para fugir e de se tornar uma espécie predatória invasiva. Sabiam de nada, os inocentes.

É preciso notar que tanto o terraplanismo filosófico-irônico quanto o espírito de caridade e simpatia para com o terraplanismo sincero – movimento e sentimento inspirados pela noção de que uma crença radical, apenas por ser radical, tem grande valor – surgiram contra o pano de fundo de um conservadorismo reacionário que propugnava exatamente o oposto: crenças radicais seriam perigosas e nocivas apenas porque desafiavam o status quo, e deveriam ser suprimidas.

A verdade, se a história ensina alguma coisa, é que o grau de conformismo ou inconformismo de uma ideia é totalmente irrelevante para uma avaliação objetiva de seu valor intrínseco, seja como princípio moral ou afirmação de fato. O terraplanismo irônico cumpriu um papel importante em desabusar muitas pessoas do preconceito contra o pensar diferente, mas teve o efeito colateral de fazer com que ideias idiotas e inusitadas deixem muitas vezes de ser percebidas como idiotas, apenas porque também são inusitadas.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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