Um argumento que vem aparecendo com frequência em manifestações terraplanistas – manifestações que, dada a conjuntura política atual, acabam tendo um destaque e uma importância potencial muito superiores a seu (inexistente) mérito científico – é a de que o terraplanismo se baseia na “evidência dos sentidos”, enquanto que a realidade científica, de que o formato de nosso planeta se aproxima, em muito, ao de uma esfera, dependeria de “teorias” e “equações”.
A implicação aparente, aí, é a de que a tal “evidência dos sentidos” reflete uma experiência direta, palpável, sólida e imediata, enquanto que “teorias” e “equações” são coisas difíceis de entender, manipuláveis por espertalhões maliciosos. Não vamos comentar agora a preguiça – ou provincianismo – mental por trás desse tipo de manobra: “se dá trabalho pra entender, deve ser sacanagem” é inferência de caipira de anedota, não de filósofo.
Também vamos passar bem rápido pela constatação de que não é possível cruzar o vale que separa a percepção (o que vejo ao meu redor) de uma conclusão qualquer (por exemplo, sobre a forma da Terra) sem usar algum tipo de ponte teórica, nem que seja a “teoria” de que a impressão dos sentidos é um decalque perfeito da realidade. A verdade é que os terraplanistas tergiversam ao dizer que confiam nos próprios sentidos. Essa confiança termina no momento em que o dado sensorial contradiz sua ideologia conspiratória bizarra.
Isso fica perfeitamente claro para qualquer um que tenha assistido ao documentário A Terra É Plana, na Netflix. Dois experimentos simples, um utilizando um giroscópio e outro, estacas fincadas ao longo da superfície plana de um lago, demonstram a curvatura do planeta. Ambos os resultados são pura evidência dos sentidos, e ainda assim...
O experimento das estacas, e a incapacidade de terraplanistas convictos em aceitar o resultado, tem uma história longa e complexa. Em 1870, a revista Nature já trazia nota sobre uma aposta de 500 libras (algo como 59 mil libras em dinheiro de hoje, ou quase R$ 300 mil) entre um terraplanista, John Hampden, e o co-descobridor da evolução por seleção natural, Alfred Russell Wallace, para determinar a forma da Terra.
Lições do passado
Foram usados três marcadores de altura – duas pontes, separadas por dez quilômetros, e uma estaca, fincada no leito do rio, no meio do caminho entre elas. Uma das pontes tinha o parapeito a quatro metros de altura acima do nível de água, e ali foi montado um telescópio; a estaca foi adornada, na mesma altura de quatro metros, por um disco colorido; e na segunda ponte foi estendida uma bandeira com uma faixa preta horizontal, faixa que marcava quatro metros acima da superfície do rio.
Por meio do telescópio na primeira ponte, buscou-se uma linha de visada ligando o disco da estaca à faixa preta da segunda ponte. A aposta dizia respeito à altura aparente do disco. Se a Terra é redonda, ele deveria parecer mais alto do que a faixa preta, de modo análogo ao que acontece com os navios na ilustração abaixo:
Se a Terra é plana, o telescópio, o disco e a faixa deveriam se mostrar perfeitamente alinhados.
Resultado nada surpreendente: visto pelo telescópio, o disco na estaca mostrou-se mais de 1,5 metro acima da faixa na bandeira pendurada na segunda ponte. Hampden e seu patrocinador, um certo Mr. Carpenter, no entanto, recusaram-se a pagar a aposta.
De acordo com o relato na Nature, "embora os diagramas do que foi visto pelos telescópios em ambas as extremidades, e reconhecidos como corretos tanto por Mr. Carpenter quanto por Mr. Hampden, mostrem o sinal central mais de 5 pés acima da linha dos extremos, esses cavalheiros friamente proclamaram vitória e ameaçaram processar" o árbitro da aposta, por "decidir fraudulentamente contra eles".
Alguns meses depois, a Scientific American oferecia um relato um pouco mais detalhado: ao olhar pelo telescópio, dizia a revista americana, “o senhor Hampden se declarou satisfeito de que havia perdido a aposta”. Porém, mais tarde, mudou de ideia.
“O experimento e o telescópio estavam nivelados, mas nem tanto a cabeça do senhor Hampden”, prossegue o texto da publicação. “Sua razão lhe dizia que a Terra ainda era plana, não redonda, como o telescópio mentiroso e as estacas perjuras haviam afirmado. Ele também concluiu que Wallace era um charlatão”.
Em sua autobiografia, publicada em 1905, Wallace reproduz uma versão ainda mais surrealista dos eventos. De acordo com ele, Hampden se recusou a olhar pelo telescópio. Apenas seu patrocinador e “árbitro” – o tal “Mr. Carpenter”, que segundo a narrativa do naturalista era um gráfico chamado William – verificou as alturas relativas das marcações de quatro metros.
William Carpenter não só teria confirmado verbalmente que o poste parecia mais alto do que a segunda ponte, como assinou um diagrama mostrando exatamente essa disposição (reproduzido abaixo). Mas insistiu que a diferença de altura demonstrava que as marcações estavam alinhadas, e que isso provava que a Terra era plana!
Em termos de “confiar nos próprios sentidos”, isso equivale a olhar para um círculo, atestar, assinando um desenho, que a forma vista é um círculo, mas tentar argumentar que ver um círculo prova que a forma avistada é, na verdade, um quadrado.
Processos judiciais foram abertos. Hampden acabou condenado. Wallace, no entanto, arrependeu-se de ter entrado na refrega. Isso porque o terraplanista derrotado passou mais de uma década perseguindo-o, escrevendo cartas difamatórias para seus amigos e sociedades científicas, e chegou a enviar correspondência contendo ameaças à esposa de Wallace, avisando-a de que algum dia o marido seria carregado para casa “com a cabeça fraturada”.
Hampden imprimia e distribuía panfletos contra Wallace, pedia desculpas e retratava-se cada vez que era processado por danos morais, mas retomava a campanha difamatória assim que o juiz virava as costas. É aterrador imaginar o que um sujeito assim poderia ter conseguido, nestes tempos de fake news, pânicos morais e redes sociais.
Treva externa
Tanto Carpenter quanto Hampden eram admiradores de "Parallax", pseudônimo de Samuel Birley Rowbotham, autor de um tratado terraplanista intitulado Zetetic Astronomy, em que um teste semelhante ao de Wallace é descrito, mas com o resultado oposto. A aparente falha de Rowbotham em detectar a curvatura da Terra pode ser explicada pela má concepção de seu experimento, o que o tornou vulnerável aos efeitos da refração da luz pela atmosfera.
Zetetic, adjetivo escolhido pelo autor para designar sua própria versão pessoal da astronomia, vem do grego e significa, nas palavras do próprio Rowbotham, “buscar, examinar; proceder apenas por questionamento; não aceitar nada como garantido, mas rastrear os fenômenos até suas causas demonstráveis imediatas”. O termo, prossegue o autor, “é aqui usado em contraste com a palavra ‘teorético’, o significado da qual é, especulativo – imaginário – intangível – elaborando, mas sem provar”.
O trecho mostra a dificuldade, encontrada ainda nos terraplanistas atuais, de compreender e aceitar a continuidade lógica que existe entre pesquisa apoiada em evidências e elaboração teórica – ou, ao menos, de fazer isso quando tal continuidade aponta numa direção em que eles preferem não olhar.
O diagrama acima foi retirado da segunda edição do livro de Rowbotham, publicada em 1872, com o título Earth Not a Globe. Nas palavras do próprio autor: “N, o mar aberto central, I, I, a muralha circular ou barreira de gelo, L, L, L, as massas de Terra que tendem ao sul, W, W, W, as ‘águas do grande abismo’, cercando a terra, S, S, S, o limite meridional de gelo, D, D, D, a escuridão e treva externa, na qual o mundo material se perde da percepção humana”.
Na época em que “Parallax” escrevia, tratar o espaço sideral como “escuridão e treva externa, na qual o mundo material se perde da percepção humana” era até desculpável, mas no século 21, depois de Yuri Gagarin, da chegada do homem à Lua, da Estação Espacial Internacional e dos diversos telescópios espaciais (Hubble, Kepler...) a alegação se torna insustentável.
Ontem e hoje
E aqui chegamos àquela que talvez seja a principal diferença entre o terraplanismo vitoriano e o atual: o preço a ser pago para sustentar a negação da forma esférica da Terra.
Rowbotham, ou “Parallax”, tinha como uma de suas principais motivações o fundamentalismo bíblico (um planeta esférico “é contrário ao ensinamento claro e literal da Escritura”, afirma ele em seu livro, citando em seguida trechos do Gênese e dos Salmos), e ainda não precisava acusar todo o mundo científico de fraude e conspiração, apenas de incompreensão e ignorância.
Atualmente, não só as motivações envolvidas são mais complexas – incluindo questões de lealdade de grupo, senso de identidade e pertencimento – como é impossível sustentar que o consenso “esfericista” é produto de interpretação inadequada da evidência: acusar a comunidade científica de fraude, conspiração e falsificação é inevitável.
O terraplanismo então corre o risco de se converter numa espécie de hiper-narrativa que amarra, numa só conspiração, de geólogos e geógrafos a astrônomos e astronautas, de capitães de navio de cruzeiro a pilotos de avião, historiadores, jornalistas e militares de todas as Forças Armadas de todos os países do mundo (ou, ao menos, dos países que têm Força Aérea, Marinha ou programa espacial).
O absurdo dessa proposição parece evidente até mesmo para alguns terraplanistas. A Flat Earth Wiki, mantida pela Sociedade da Terra Plana, afirma que não existe uma conspiração de agências espaciais para esconder do público a verdadeira forma da Terra: o que existe, segundo a Sociedade, é uma conspiração para esconder o fato de que viagens espaciais nunca aconteceram.
“O material de mídia da Nasa mostra a Terra como redonda porque a Nasa pensa que ela é redonda”, diz a explicação. “Eles não estão tocando um programa espacial de verdade, então não têm como saber qual a verdadeira forma da Terra”.
Para manter a consistência, também é necessária outra conspiração, ligada à das agências espaciais, envolvendo todos os lançadores comerciais de satélites e todos os técnicos, engenheiros e cientistas que trabalham com tecnologias que dependem de satélites, como transmissões de televisão, GPS e a internet. E este é só o começo.
Não está claro se trocar uma única hiper-conspiração universal por uma série de mega-conspirações individuais que, em conjunto, conspiram (desculpe) para sustentar a “ilusão” de uma Terra esférica realmente ajuda a tornar o cenário mais plausível.
Mas algum arranjo do tipo é inevitável: o que começa como um apelo à informação imediata dos sentidos e uma negação de teorias “complicadas” termina como uma negação dos sentidos e a teoria mais complexa, instável e inacreditável de todas.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência