O que aconteceu com a Era de Aquário?

Apocalipse Now
30 ago 2019
Autor
kombi hippie

 

Este ano de 2019 marca não só cinquentenário de uma das maiores vitórias simbólicas da ciência, da racionalidade e da tecnologia – a chegada dos primeiros seres humanos à Lua, e seu retorno em segurança à Terra – como também de dois eventos catastróficos que podem muito bem ser vistos como símbolos do fracasso de um projeto diametralmente oposto: uma vida livre das inibições restritivas da racionalidade, uma relação com a natureza e a humanidade baseada em intuição mística e espontânea: os crimes da Família Manson e o trágico concerto dos Rollings Stones em Altamont. 

Em seu livro sobre “o lado sombrio dos anos 60”, Turn Off Your Mind, o jornalista Gary Lachman destaca esses dois acontecimentos, um em agosto e o outro em dezembro de 1969, como os marcos do azedamento final da utopia hippie, a Era de Aquário. Lachman não está sozinho nessa interpretação: outro jornalista, Todd Glitin, este uma testemunha ocular da Era Psicodélica (ele estava presente em Altamont), escreveu, na época, uma reportagem com o título exato de “O Fim da Era de Aquário”. 

A origem da ideia dessa “Era”, na qual a psique humana passaria por uma transformação radical, abraçando novos valores e novas formas de pensar, é antiga. 

Na Idade Média, o teólogo italiano Joachim de Fiore (1135-1202) propôs que a história humana se divide em três idades, a Idade do Pai, que assume as características do deus ciumento e violento do Velho Testamento; a Idade do Filho, que manifesta a personalidade mais amena do Cristo; e uma vindoura Era do Espírito, utópica. 

Mês platônico

Já no século passado, em 1959, na introdução de seu livro sobre óvnis, intitulado simplesmente “Discos Voadores”,  Carl G. Jung escreve que “há sintomas de mudanças psíquicas que sempre aparecem ao final de um mês platônico e no início de outro (...) Esta transformação começou dentro da tradição histórica e deixa vestígios atrás dela, primeiro na transição da Era de Touro para a de Áries, e então de Áries para Peixes, cujo início coincide com a ascensão da Cristandade. Estamos, agora, nos aproximando da grande mudança que pode ser esperada quando o ponto da primavera entrar em Aquário”. 

Os “meses platônicos” a que Jung se refere são trechos de 30o do ciclo de precessão do eixo da Terra, em torno do qual nosso planeta gira a cada 24 horas, dando origem aos dias e às noites. Esse eixo também se move, mas devagar, completando uma volta a cada 26 mil anos, aproximadamente. Um mês platônico seria 1/12 disso, assim como um mês normal é cerca de 1/12 do ano. 

O nome dos “meses” platônicos é tirado da constelação do zodíaco que se encontra atrás do Sol, no primeiro dia da primavera do Hemisfério Norte, durante cada um deles. Hoje, quem está lá é a de Peixes (daí, “Era de Peixes”). A próxima é Aquário.

Quando a Era de Aquário terá início? A questão é controversa. Constelações, afinal, são convenções culturais, e onde uma começa e outra acaba não é algo fixado por nenhuma lei da natureza. Levando em conta as fronteiras entre constelações definidas pela União Astronômica Internacional, a Era de Aquário deve começar por volta de 2100; já astrólogos sugerem datas que vão do ano 1400 a 3500, mais ou menos.

A noção geral de Era de Aquário, corrente no pensamento esotérico do século 20, usa a linguagem astrológica (ou “arquetípica”, junguiana) para se referir a algo que parece bem próximo da Era do Espírito de Joachim de Flores, sem a necessidade de fazer referência a elementos específicos do cristianismo. 

Detalhe da capa do livro de Carl Jung

É curioso notar que muitos historiadores ligam a absorção e penetração, tanto popular quanto no meio intelectual, da narrativa das Três Eras de De Flores a uma série de movimentos radicais que eclodiram no fim do período medieval, da Reforma Protestante aos diversos grupos esotéricos que usaram o nome de Rosacruz.

No contexto da década de 60, a Era seria precipitada por uma transformação das consciências, trazida por um movimento cósmico profundo — uma mudança na divindade reinante, na estrutura do inconsciente, talvez até na genética — acelerada ou facilitada por sexo, drogas, rock’n’roll e, um item que deveria compor a lista, mas que é comumente negligenciado, “conhecimento tradicional”: o mito do bom selvagem é inseparável da rejeição da modernidade. Transformação social, enfim, fluiria da transformação do ser humano.

Helter Skelter

Os crimes que tornaram famosos Charles Manson (1934-2017) e seus seguidores foram os assassinatos da atriz Sharon Tate (então grávida) e quatro outras pessoas na mansão em que Tate vivia com o marido, o cineasta Roman Polanksi, em 8 de agosto de 1969; e, em 10 de agosto, do casal Leno e Rosemary La Bianca. 

Na descrição de Lachman, Manson era, ao menos em aparência, “um típico hippie” e, a despeito de um passado problemático – incluindo passagens pela prisão – no período imediatamente anterior aos crimes, encontrava-se bem integrado à cena alternativa californiana.

Os Beach Boys gravaram uma de suas canções, e ele chegou a viver por algum tempo na casa de um dos membros da banda, o baterista Dennis Wilson (1944-1983).  Manson fez teste para integrar a boy-band The Monkees, tinha vivido nas ruas de Haight-Ashbury, distrito de San Francisco que servia de fulcro da cultura hippie e havia sediado o “Verão do Amor” de 1967. 

Os “ensinamentos” com que mantinha a unidade de seu grupo de seguidores, sua “família”, eram um pot-pourri de ideias populares da época, como o uso de drogas para a expansão da consciência, pensamento mágico/paranormal, amor livre, fim das inibições burguesas, supressão do ego e a iminência do início de uma “nova era”.

Que as drogas tenham deixado de ser meio de “expansão mental” e se tornado um fim em si mesmo, que o “amor livre” tenha sido ressignificado por Manson como “sexo obrigatório” – com ele ou com qualquer um que ele indicasse –, que a “supressão do ego” dos seguidores equivalesse ao engrandecimento do ego do mestre; que a principal “inibição burguesa” abandonada tenha sido a da consideração pela vida, sentimentos e propriedade dos outros, são coisas comuns a uma longa série de gurus, “líderes espirituais” e figuras carismáticas de ontem e de hoje. 

Constelação de Aquário

 

Mesmo a visão de Charles Manson, de que o mundo se aproximava de uma “nova era”, estava alinhada com o zeitgeist. A principal diferença estava na forma que ela tomaria e no meio de produzi-la – o “Helter Skelter”, uma guerra racial entre negros e brancos, a ser desencadeada pelos assassinatos de Tate e La Bianca. 

O fato de a batalha apocalíptica ter o mesmo nome de uma canção dos Beatles não é coincidência: Manson acreditava estar em contato telepático com o Quarteto de Liverpool, e que John, Paul, George e Ringo estariam a seu lado num refúgio subterrâneo, esperando para governar o mundo que emergiria do caos em sua versão peculiar da Era de Aquário.

Hell’s Angels

A revista Rolling Stone se referiu ao concerto de rock no autódromo de Altamont, na Califórnia, em 6 de dezembro de 1969, como o  “pior dia do rock em todos os tempos”. Vários grupos tocaram no evento, mas os Stones eram a atração principal, e foi durante o espetáculo da banda de Mick Jagger que a situação escapou de vez do controle. 

A gangue de motociclistas Hell’s Angels foi contratada para fazer a segurança, em troca de US$ 500 (em dinheiro de hoje, US$ 3,5 mil) em cerveja. Ao todo, quatro pessoas morreram – uma, o adolescente Meredith Hunter, esfaqueado até a morte por membros dos Angels –, e vários outros crimes foram cometidos, entre furtos e agressões (os Angels usaram tacos de bilhar para atacar membros da audiência). Keith Richards tentou pedir calma apenas para um Angel arrancar o microfone de suas mãos e gritar “foda-se!”.

Escrevendo na época para a agência alternativa de notícias Liberation News Service, Todd Glitin anotou, em seu artigo “O Fim da Era de Aquário”, o estado deplorável do público. A multidão, segundo ele, estava “ligada, não uns nos outros, não nas possibilidades coletivas, mas no grande prêmio, na saída fácil – o ‘barato’”. Mais adiante, ele pergunta se a tão incensada cultura jovem dos anos 60 “vai deixar algo, além de um mercado”. 

“A paz e amor de Woodstock, apenas quatro meses antes, havia se dissipado”, anota Lachman. “A geração Aquariana, sustentada pelo mito da Nova Era iminente, estava se desfazendo”.

 Sono da razão

Altamont e Manson não foram os primeiros sinais. Lachman escreve que não demorou muito para que o “Verão do Amor” de 1967, em Haight-Ashbury, degenerasse em prostituição e violência. Milhares de jovens desceram a San Francisco em busca de algum tipo de grande transmutação da consciência. A revolução cósmica não veio, e depois de algum tempo o pessoal notou que drogas, teto e comida custam dinheiro.

Cansaço, desilusão e impaciência, quando não desespero, espalhavam-se. No início dos anos 70, o ex-professor de Harvard Timothy Leary (1920-1996), o revolucionário da consciência – que durante algum tempo tentou estabelecer uma utopia baseada em LSD – escrevia que “matar um policial é um gesto sagrado”. 

Em seus dois grandes livros sobre o irracionalismo no Ocidente, The Occult Underground  e The Occult Establishment, o historiador escocês James Webb define “fuga da razão” como a atitude daqueles que, insatisfeitos com o mundo construído a partir do Iluminismo, decidem rejeitar não apenas as estruturas sociais vigentes, mas também a aparente mola-mestra por trás delas: a própria racionalidade.

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Essa postura não só dá crédito excessivo ao status-quo – eu, ao menos, disputaria com vigor a ideia de que a configuração presente sociedade se justifica em termos puramente racionais – como abre caminho para o tipo de monstruosidade que surge quando pulsões irracionais e mitos (seja da salvação espiritual, da Nova Era, da raça superior, do Retorno à Natureza, etc.) passam a inspirar ação política.

Monstruosidade ou comédia. Em outubro de 1967, o poeta “beat” Allen Ginsberg e o ativista político Abbie Hoffmann, junto a um amplo séquito, tentaram levitar o Pentágono, fazê-lo mudar de cor e tremer no ar, purgando-o das más vibrações. “Cantaremos o poderoso OM. Foderemos no gramado”, escreveu Hoffmann em seu manifesto, “Revolution for the Hell of It”.  A moçada nua talvez tenha se divertido, mas o Pentágono continuou onde estava. E a Guerra do Vietnã ainda duraria mais sete anos.

 

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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