A marcha do reiki na universidade pública

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17 set 2024
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mãos humanas

 

A academia brasileira vem se mostrando uma casa receptiva ao reiki, doutrina pseudocientífica que pressupõe a existência de um reservatório universal de “energia vital” que pode ser acessado por terapeutas treinados. Essa energia, transmitida por imposição das mãos, seria capaz de curar doenças, reduzir estresse e aumentar o bem-estar. No fim de semana de 21 e 22 de setembro, a Universidade Estadual Paulista (Unesp) não só sedia como patrocina oficialmente o I Congresso Brasileiro de Reiki.

O congresso é apenas o degrau mais recente de uma escalada que inclui estudo sobre “reiki via celular” conduzido sob a chancela da Fundação Oswaldo Cruz, e mais de uma dezena de trabalhos de pós-graduação – entre dissertações de mestrado e teses de doutorado – defendidas em universidades públicas, como USP, Unesp e Unifesp. Todos neste século, sendo o mais recente um doutorado sobre o efeito da terapia no nível de ansiedade de gestantes, defendido agora em 2024.

A ideia de “energia vital” não tem base científica – de fato, físicos renomados como Sean Carroll e o falecido Victor Stenger apontam que a existência de uma força na natureza capaz de afetar objetos na escala do corpo humano, mas que ainda não tenha sido detectada por instrumentos científicos, é virtualmente inconcebível.

A despeito disso, o reiki não só encontra-se integrado ao Sistema Único de Saúde (SUS), como uma das 29 práticas integrativas e complementares autorizadas pelo Ministério da Saúde, como tem encontrado guarida no seio das instituições públicas de ensino e pesquisa.

A tendência, de fato, parece estar acelerando: uma busca na biblioteca digital da USP, por teses e dissertações com “reiki” na sinopse ou entre as palavras-chave, mostra um trabalho antes de 2010, dois entre 2011 e 2020 e quatro desde 2021.

Curiosamente, a infame dissertação de mestrado de 2003, que usou luvas de cozinha como “placebo” para testar o efeito da técnica no sistema imune de camundongos, não aparece nessa busca, porque tem o cuidado de não trazer a palavra “reiki” em destaque. O avanço, portanto, parece não ter sido apenas quantitativo, mas também cultural: de 2003 para cá, o reiki universitário perdeu a vergonha de dizer seu nome. Pode-se sugerir a hipótese de que a normalização foi acelerada pela integração da prática ao SUS, em 2017.

 

Política interna

Na década de 1980, um grupo de sociólogos europeus lançou o que ficou conhecido como “programa forte da sociologia da ciência”. Esse “programa” tinha como objetivo explicar descobertas, avanços e a formação de consensos científicos em termos estritamente sociais – por exemplo, a aceitação universal da ideia da existência do elétron seria melhor explicada como resultado de maquinações políticas e jogos de poder, dentro dos laboratórios e departamentos de Física das universidades, do que como fruto da análise racional de resultados experimentais.

O programa forte desembocou no pós-modernismo, que por sua vez se tornou uma linha auxiliar do negacionismo do aquecimento global, e com isso acabou perdendo muito de seu charme na academia, embora alguns surfistas da recente onda “decolonial” venham dando sinais de que gostariam de resgatá-lo.

Mas, mais do que politicamente inconveniente, o programa morreu por se mostrar inviável: não dá para explicar a construção das ciências da natureza sem reconhecer que, num nível essencial, seus praticantes estão descobrindo e descrevendo fatos que existem independentemente da subjetividade e das intenções dos cientistas: coisas sólidas que estão “lá fora”.

Numa nota de rodapé de seu livro “Progress and Its Problems”, o filósofo Larry Laudan sugere, talvez com uma ponta de malícia, que sociólogos aceitaram, de início, a ideia de que o conteúdo das ciências naturais seria definido por picuinhas políticas departamentais porque é assim que o conteúdo de parte importante da sociologia da ciência é, de fato, definido. “A tese geral da sociologia do conhecimento (...) foi baseada na esperança de que todas as outras formas de conhecimento seriam tão subjetivas quanto a sociologia claramente era”, escreve.

Ironias à parte, no entanto, em 2011 os filósofos Maarten Boudry e Filip Buekens publicaram, no periódico Theoria, artigo mostrando que o modelo proposto no “programa forte” descreve corretamente pelo menos um tipo de atividade acadêmica: aquela associada à psicanálise. Não é muito difícil generalizar o diagnóstico para outras pseudociências.

Quando doutrinas sem base em fatos se encastelam na academia, não é por mérito científico – porque descrevem objetivamente o mundo “lá fora” –, mas porque alguém conduziu manobras políticas de modo hábil; e o “conhecimento” gerado por essas disciplinas também não vem do mundo, é construído a partir do choque de egos – não do choque entre hipótese e realidade.

O avanço do reiki precisa ser compreendido (e enfrentado) nessa chave, antes que lance raízes (como fez a homeopatia, ao longo de mais de um século) ou gere embaraços maiores, como o falecido Núcleo de Estudos de Fenômenos Paranormais (NEFP) da UnB, instalado em 1989 e fechado neste século, após escândalo envolvendo uma vidente e um assassinato. A pseudociência só consegue ocupar espaços de prestígio porque conta com a complacência e cumplicidade – por conveniência ou omissão – daqueles que detêm a responsabilidade de zelar pelo bom nome das instituições de ensino e pesquisa.

 

História

O reiki nasceu como uma forma de curandeirismo religioso na década de 1920, no Japão, depois que o mestre Mikao Usui disse ter recebido uma revelação que o fez sentir-se uno com “a energia e a consciência do Universo”. A iluminação teria sido o resultado de um jejum de 21 dias.  

O manual preparado por Usui diz que “qualquer parte do corpo de um terapeuta pode irradiar luz e energia, particularmente os olhos, a boca e as mãos”, e que “dor de dente, cólicas, dor de estômago, dor de cabeça, tumor de mama, feridas, cortes, queimaduras e outros inchaços e dores podem receber alívio rápido e desaparecer”.  A versão do reiki que se popularizou no ocidente é uma prática eminentemente comercial, estabelecida a partir de um sistema de franquias criado por imigrantes japoneses no Havaí nos anos 1970.

Hoje existem diversas diferentes linhagens de reiki, algumas das quais integram elementos de outras doutrinas esotéricas, terapias alternativas e tradições espirituais; há até as que se tornaram negócios estruturados, com marca registrada (Mai Reiki, Karuna Reiki, Real Reiki, Holy Fire Reiki, etc.). Algumas dessas linhas estabeleceram conexões comerciais com setores mais amplos da indústria de saúde e bem-estar, como fabricantes de suplementos vitamínicos e alimentares, além de vender cursos e formações. A energia intangível e invisível do espírito do Universo flui de terapeuta para paciente, de mestre para aluno, mas o dinheiro sólido e visível sempre vai na direção contrária.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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