Estudos como "reiki por celular" podem desmoralizar instituições

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23 ago 2022
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Em um mundo utópico, todos teriam letramento científico e poderiam avaliar estudos científicos por conta própria. Sabemos, porém, que isso não é viável na prática. Mesmo cientistas não costumam estar habilitados para avaliar estudos de áreas completamente diferentes das suas. Um médico, por exemplo, não conseguirá revisar um estudo sobre física nuclear. Por este motivo, no dia a dia, em áreas que não são as nossas, damos preferência às informações obtidas de fontes que consideramos confiáveis. Tais fontes podem ser universidades, institutos e organizações científicas que, por sua tradição e contribuição ao estudo e ao conhecimento, ganharam considerável prestígio.

Em tempos de fake news, o reforço desse prestígio nunca foi tão importante. Ensinamos às pessoas que, ao invés de acreditar no mais recente vídeo recebido por WhatsApp ou pelo Telegram, verifiquem fontes confiáveis.

Recentemente, ouvindo um podcast sério de jornalismo, quase cuspi meu café quando escutei a notícia de que pesquisadores da Fiocruz haviam demonstrado que o reiki, técnica criada no Japão há cerca de 100 anos e que se baseia numa suposta infusão de “energia vital” através da imposição de mãos, aplicado mesmo à distância, pelo celular (!), mostrou-se capaz de aliviar sintomas psiquiátricos em um estudo com oito mulheres.

As pessoas receberam “acolhimento para celebração de acontecimentos do cotidiano, da superação de desafios e valorização da vida, escuta terapêutica para nortear a conduta terapêutica e gerar vínculos entre usuário e terapeuta, aplicação de reiki via celular acompanhado de sons de alta vibração (como músicas para reiki), relato on-line das usuárias sobre efeitos do reiki para o terapeuta reikiano, conferidos nas consultas presenciais pelo psiquiatra". Não havia grupo controle. E as pessoas relataram melhora.

Veja, não apenas sintomas podem melhorar por contra própria, como o simples “acolhimento para celebração de acontecimentos do cotidiano, da superação de desafios e valorização da vida” é, evidentemente, uma intervenção ativa que, talvez, possa provocar melhoras (para saber isso, é claro, seria necessário ter um grupo controle). Não havia um grupo sem o “tele-reiki” para quantificar a importância dessa parte da intervenção.

Além disso, esse tipo de estudo – chamado de “pré-pós”, porque a única comparação que faz é entre o estado dos voluntários antes e depois da intervenção –, quando envolve desfechos subjetivos (perguntar ao voluntário como “se sente”), praticamente garante resultados positivos, por razões afetivas e emocionais que nada têm a ver com a intervenção específica que, supostamente, está sendo “avaliada”. É um jogo de cartas marcadas.

Reiki é uma superstição baseada em “energias” inexistentes que seriam transmitidas entre as mãos do terapeuta e o paciente. Falar sobre reiki já está no mesmo nível de falar sobre astrologia ou sobre a geografia da terra plana, mas “aplicação de reiki via celular” eleva o absurdo a um patamar mais alto de ridículo.

O problema maior é encontrar “reiki via celular” e “Fiocruz” no mesmo parágrafo. Passamos a pandemia inteira dizendo às pessoas que ignorassem as falsas notícias sobre vacinas e que dessem preferência a informações de fontes confiáveis, tais como a Sociedade Brasileira de Imunizações, a Sociedade Brasileira de Infectologia e instituições como a Fiocruz, que produz um dos imunizantes contra COVID-19 e participou de ensaios clínicos randomizados. Subitamente, essa entidade de prestígio publica um press release sobre uma crendice das mais tolas.

Alguém poderia dizer que isso é algo inócuo, como um jornal sério que publica uma coluna diária de horóscopo em uma página de entretenimento. Tendo a ver problemas inclusive em horóscopo de jornal, mas o fato é que o jornal não é um veículo de divulgação científica, e você não encontrará uma coluna de astrologia na revista Nature ou na Science. E a Fiocruz é uma fundação dedicada às ciências da saúde, não um almanaque de entretenimento .

Eu não sei o que é pior: a Fiocruz emprestar credibilidade a uma superstição, ou a erosão que isso causa na credibilidade pública da instituição. A Fiocruz não é como uma revista de variedades, que pode ter páginas dedicadas à pseudociência convivendo com reportagens “sérias”. Ao chancelar estudos de má qualidade, desenhados para referendar práticas sem a menor plausibilidade científica, fornece munição aos negacionistas, que poderão dizer: “é esta a instituição que chamam de respeitável? Querem que coloque a vacina deles no nosso braço?”

Alguém dirá que isso está alinhado com a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), que inclui reiki, entre outras práticas duvidosas, no rol de procedimentos acolhidos pelo SUS. Mas o que se esperaria de uma instituição séria, que preza pela ciência, seria denunciar – e não abraçar – esse desatino.

Em um país de baixo letramento científico, e em um ecossistema de redes sociais no qual a desinformação apresenta grande vantagem competitiva, o perigo representado pela erosão do prestígio de nossas entidades de cunho científico não deve ser menosprezado. A Fiocruz não pode ter uma página de horóscopo.

 

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José Carlos Souto é médico, autor do blog Ciência Low-Carb

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