O mapa fictício da eficácia da homeopatia

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13 set 2024
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estante de preparados homeopáticos

Imagine planejar uma viagem do Rio de Janeiro para São Paulo e, no lugar de um mapa das estradas brasileiras, receber um de Westeros, o continente fictício da série de livros e TV "Guerra dos Tronos", ou da Terra Média, o mundo criado pelo escritor britânico J.R.R. Tolkien, onde se passam as histórias de "O senhor dos anéis", "O hobbit" e outros títulos. É algo como isso que acontece com quem decide consultar o "Mapa de Evidências Efetividade Clínica da Homeopatia", produzido em projeto de parceria entre uma organização de saúde "integrativa", a Rede de Medicinas Tradicionais, Complementares e Integrativas das Américas (Rede MTCI Américas), e o Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde, também conhecido como Bireme, braço especializado da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (Opas/OMS) para cooperação técnica em informação e comunicação científica em saúde.

Disponível na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), coordenada pelo Bireme, o mapa das supostas evidências de eficácia da homeopatia é apenas um dos muitos que abordam práticas pseudocientíficas no ambiente da BVS, e que conjuntamente formam a maioria no site - 31 de 58 "mapas de evidências". Número que atesta o sucesso da Rede MTCI Américas na luta para buscar legitimidade para suas práticas, às custas da credibilidade do sistema da OMS.

Uma análise um pouco mais atenta do conteúdo dos mapas relativos às MTCI, no entanto, é suficiente para mostrar o engodo de todo este esforço, a começar pela mais conhecida e difundida delas, a homeopatia. Quase todos os estudos, revisões e meta-análises apontados como indicativos da efetividade clínica da prática têm níveis de confiança rotulados como "baixos" ou "criticamente baixos", em geral por falhas metodológicas graves e alto risco de viés, numa lista que inclui condições que vão de diversos tipos de dores a câncer, passando por doenças infecciosas, como gripe e dengue, e crônicas, como asma e artrite, indicadores metabólicos e fisiológicos e questões de bem-estar, qualidade de vida, saúde bucal, mental e reprodutiva.

 

Obra de ficção

Em alguns poucos casos, porém, este nível de confiança é indicado como "alto" no mapa, e é aí que seu caráter fictício fica patente. Um exemplo é o uso da homeopatia no tratamento e prevenção de infecções respiratórias em crianças. De acordo com o mapa, soluções manipuladas de uso oral, bem como tratamentos individualizados e semi-individualizados, teriam evidências altamente confiáveis de efetividade no combate a estas infecções.

Mas não é isso que diz o estudo que daria apoio a esta classificação. Muito pelo contrário. Publicada em dezembro de 2022 pela Cochrane, a última versão da revisão sistemática da literatura sobre o tema conduzida por esta organização internacional, dedicada à avaliação imparcial e sistemática de pesquisas médicas, afirma textualmente nas suas conclusões que "não há evidências que apoiem a eficácia de produtos medicinais homeopáticos para infecções agudas do trato respiratório em crianças". Os autores também indicam ter encontrado "diversas limitações" nos estudos incluídos na revisão, "em particular inconsistências metodológicas e altas taxas de atrito (perda de participantes durante os ensaios clínicos), falha em conduzir análises de intenção de tratar, seletividade nos relatos e aparentes desvios de protocolo".

Ainda na seara da saúde respiratória, o mapa indica um certo remédio homeopático Eupatorium perfoliatum 2DH como tendo alto grau de evidência de eficácia contra o "resfriado comum", um diagnóstico para infecções virais agudas que atingem as vias respiratórias superiores (nariz e garganta) que podem ser causadas por mais de 200 tipos conhecidos de vírus.

Planta da família das asteráceas, uma das maiores no clado (ramo) das angiospermas e que inclui das alfaces aos girassóis, a Eupatorium perfoliatum já foi listada como venenosa pela Food and Drug Administration (FDA), a agência de controle de medicamentos e alimentos dos EUA, em seu hoje descontinuado banco de dados de plantas perigosas, com muitas espécies de Eupatorium conhecidas por intoxicar animais que pastam e humanos que consomem leite de vacas que as ingeriram.

Por "sorte", o "2DH" da formulação homeopática indica que o suposto princípio ativo da planta foi diluído duas vezes em uma escala decimal, ou seja, a solução contém apenas uma parte em 100 dele.

O estudo que embasa esta classificação, no entanto, é como um "bingo" de vieses e outros problemas que o coloca, na verdade, em alta suspeita. A começar por quem o conduziu e onde foi publicado. Intitulado "Systematic Review and Meta-Analysis of Randomised, Other-than-Placebo Controlled, Trials of Non-Individualised Homeopathic Treatment" ("Revisão sistemática e meta-análise de ensaios clínicos randomizados não controlados por placebo de tratamentos homeopáticos não individualizados"), o artigo no periódico Homeopathy - editado pela Faculty of Homeopathy, uma instituição de ensino da homeopatia do Reino Unido que tem como patrono o hoje Rei Charles III - tem quatro de seus cinco autores diretamente envolvidos com a prática pseudocientífica, além de ter sido financiado pela Manchester Homeopathic Clinic (Clínica Homeopática de Manchester).

Mas não é só isso. No resumo da "revisão sistemática e meta-análise", os autores informam que, dos 17 ensaios clínicos incluídos, 14 foram classificados como de "alto risco de viés", enquanto os outros três tinham "risco de viés incerto". Por fim, na sua própria conclusão, eles reconhecem que "os dados atuais impedem uma conclusão decisiva sobre a eficácia comparativa dos tratamentos homeopáticos não individualizados", e que "a generalização dos resultados é restrita pela validade externa limitada identificada em geral" nos ensaios clínicos.

 

De mal a pior

E o que já era ruim fica pior ao verificar que esta mesma revisão sistemática e meta-análise inconclusiva aparece outras vezes no "mapa de evidências" para justificar alto grau de evidência de eficácia de formulações homeopáticas de uso oral para tratar condições tão diversas como periodontite e síndrome pós-menopausa. Na mesma linha e com vários autores em comum - inclusive o primeiro autor e líder dos trabalhos, Robert T. Mathie, da Associação Homeopática Britânica e do Instituto de Pesquisas da Homeopatia do Reino Unido -, outras três revisões sistemáticas com meta-análises inconclusivas de ensaios clínicos em grande maioria com alto risco de viés - "Randomised, double-blind, placebo-controlled trials of non-individualised homeopathic treatment: systematic review and meta-analysis"; "Randomised placebo-controlled trials of individualised homeopathic treatment: systematic review and meta-analysis"; e "Systematic Review and Meta-Analysis of Randomised, Other-than-Placebo Controlled, Trials of Individualised Homeopathic Treatment" - também são apontadas como embasamento para dar alto nível de confiança na eficácia de tratamentos homeopáticos individualizados ou não para diarreia, transtornos gastrointestinais, fibromialgia e otite média, além do preparado Plumbum metallicum 15CH (ou seja, o metal chumbo diluído em 15 "centesimais", resultando em uma solução com uma parte de chumbo para 10 elevado a 1.500 do solvente, um número tão grande que é 1.420 ordens de grandeza maior que o estimado número total de átomos no Universo) para uma genérica "saúde do trabalhador".

Voltando então para onde o mapa poderia ter elementos "localizáveis" - ensaios clínicos ou estudos envolvendo condições específicas -, a situação não melhora. É o caso do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), que segundo a publicação tem evidências de alta confiabilidade de que pode ser tratados com formulações manipuladas de uso oral e terapias homeopáticas individualizadas. O artigo que baseia esta classificação - mais uma vez uma revisão Cochrane, publicada em outubro de 2017 - vai na contramão disso, afirmando textualmente que "as formas de homeopatia avaliadas até agora não sugerem efeitos significativos do tratamento nos sintomas globais e principais de falta de atenção, hiperatividade ou impulsividade, ou em desfechos como ansiedade no Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade", e ainda recomenda o desenvolvimento de protocolos de tratamento ótimo para a condição antes da realização de qualquer novo ensaio clínico de uso da homeopatia para TDAH.

Por fim, uma terceira revisão Cochrane de homeopatia no tratamento da Síndrome do Cólon Irritável identificou apenas três ensaios clínicos um tanto antigos sobre a questão, dois nos anos 1970 e um em 1990. Assim, apesar dos dois ensaios dos anos 1970 sugerirem um potencial benefício do preparado homeopático Asafoetida para casos da síndrome em que a constipação é predominante frente a um placebo, os autores destacam que "estes resultados devem ser interpretados com cautela devido à baixa qualidade dos relatórios destes ensaios".

Já o terceiro ensaio, de 1990, contam os autores da revisão, teria mostrado uma diferença estatisticamente significativa para uso de um tratamento homeopático individualizado em quanto eles se "sentiam mal" antes e depois de sintomas não definidos da síndrome frente ao "tratamento comum" na época para o problema, que inclui o antiespasmódico cloridrato de dicicloverina (Bentyl), laxantes e dieta com alta ingestão de fibras. Mais uma vez, porém, eles alertam que "nenhuma conclusão pode ser tirada deste estudo devido ao baixo número de participantes e alto risco de viés neste ensaio", além de ressaltarem que "o tratamento comum mudou desde a condução deste ensaio".

Isso, porém, não impediu que os responsáveis pelo suposto "mapa de evidências" apontasse esta revisão como indício altamente confiável da eficácia da homeopatia - pasmem - não para Síndrome do Intestino Irritável (como a condição também é conhecida), mas para genéricos "transtornos gastrointestinais".

Como e porquê

Ficam as questões então de como e porquê este mapa fictício foi desenhado assim, e como ele foi parar em uma iniciativa da Opas/OMS que supostamente deveria prezar pela correta informação em saúde, dado que a BVS se define como "um bem público que facilita o acesso e uso da informação científica e técnica em saúde com o objetivo de contribuir para a redução da distância entre o conhecimento e a prática em saúde nos países da América Latina e do Caribe".

Na parte de "como" este mapa foi desenhado e foi parar na BVS, chama a atenção a informação de que foi produzido com dinheiro público, via financiamento do Ministério da Saúde do projeto designado FIOCRUZ-VPGDI-014-FIO-20. Além disso, embora em seu resumo informe que "todos os estudos foram avaliados, caracterizados, categorizados por uma equipe multiprofissional", coordenadores, elaboradores e colaboradores - entre eles o já citado Robert T. Mathie - são todos pesquisadores na área de homeopatia, ou seja, "monotemáticos", sem nenhuma voz com visão crítica da prática.

Já na parte do "porquê" alguns destes profissionais decidiram interpretar de modo tão livre os níveis de confiabilidade das supostas evidências de eficácia da homeopatia fica o mistério e só resta especular. Não é novidade - nem este mapa é único exemplo - a tentativa de adeptos da prática de apresentar o que seriam "estudos científicos" que a comprovem. 

Por exemplo, não faz muito tempo que em 2017 a Câmara Técnica de Homeopatia do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) publicou como edição especial da revista da Associação Paulista de Homeopatia (APH) um dito “Dossiê Especial: Evidências Científicas em Homeopatia”, lotado de trabalhos de tão baixa qualidade e tamanhos riscos de viés que jamais poderiam ser tomados como evidência de nada. Isso levou o Instituto Questão de Ciência (IQC) - que publica esta Revista Questão de Ciência - a lançar em 2020 o “Contra-dossiê das Evidências sobre a Homeopatia”, em que médicos e especialistas analisam, comentam e refutam os principais artigos do “Dossiê Especial” da câmara técnica do Cremesp.  Trabalho que se repete neste texto, antes que algum desavisado vá procurar um remédio para seu nariz entupido num balcão de farmácia e termine em Nárnia.

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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