O livro “A Scheme of Heaven”, do físico, historiador e cientista de dados americano Alexander Boxer, é uma das mais originais e interessantes histórias da astrologia já publicadas – não só pelo resumo claro e coerente que oferece de uma atividade que já existe há pelo menos 3 mil anos, mas também pelo alerta que traz sobre os riscos que nós, humanos, corremos quando nos apaixonamos por algoritmos preditivos – sejam os criados na Antiguidade para calcular horóscopos ou os gerados hoje por Inteligência Artificial (IA) para os mais diversos fins.
Boxer sugere que a astrologia foi uma atividade intelectual pioneira, que estabeleceu hábitos de pensamento e apresentação que persistem – e são vistos como válidos e autoritativos – até hoje: o uso de números e gráficos para “contar histórias”, construir e justificar narrativas; a observação e o registro sistemáticos de fenômenos naturais (o catálogo de observações astronômicas diárias da Babilônia foi mantido durante, pelo menos, sete séculos); a organização dos dados em termos de padrões, associações e correlações; a aplicação de algoritmos aos dados para fazer previsões.
O fato de todo esse esforço de milênios ter produzido apenas padrões ilusórios e associações inválidas, aponta o autor, deveria servir como advertência para a modernidade, à medida que entramos na era da IA – que, da forma como se encontra hoje, é fundamentalmente um sistema gerador de padrões e associações. “Algoritmos modernos de aprendizado de máquina são monstros correlacionadores”, escreve Boxer. “Podem fazer praticamente qualquer sinal correlacionar-se com qualquer outro”.
Um pouco adiante, a crítica torna-se mais aguda: “a astrologia tem sido alvo de ridículo porque usa algoritmos que parecem totalmente arbitrários, que tomam como dados de entrada material sem nenhuma conexão aparente com os efeitos que se propõem a prever, e que não se justificam a partir de um entendimento científico dos fenômenos subjacentes. É divertido, no entanto, notar que tudo isso descreve muito bem o tipo de algoritmo que cada vez mais se usa em modelos preditivos hoje em dia”.
Teoria e prática
Alguém poderia contra-argumentar que a diferença fundamental é que os modelos preditivos de IA passam por testes de validação empírica – em resumo, IA funciona – e os modelos da astrologia, quando testados empiricamente, falham. Mas mesmo essa distinção não é tão clara quanto parece: em outro livro (“Calling Bullshit”, de Carl Bergstrom e Jevin West), encontramos o exemplo de um algoritmo que, supostamente, seria capaz de distinguir características faciais de criminosos das de pessoas honestas, sugerindo, talvez, uma preponderância de diferenças genéticas por trás dos comportamentos antissociais.
Mas o sistema havia sido treinado com imagens de criminosos tiradas de suas fichas policiais e de cidadãos “honestos”, encontradas em redes como Facebook. O que a IA estava identificando, no fim, não eram detalhes da estrutura óssea ou do formato das orelhas que seriam “marcas hereditárias” de criminalidade, mas algo muito mais simples: nas fotos de redes social, as pessoas estavam sorrindo; nas fichas policiais, não.
Boxer aponta que existem dois tipos de modelo preditivo – os de base teórica e os de base empírica. Os de base empírica simplesmente pressupõem que as coisas vão continuar a ser como sempre foram: o Sol vai nascer amanhã porque nasceu ontem. Os de base teórica partem de uma compreensão do fenômeno: dado o que sabemos sobre evolução estelar, a lei da gravidade e a órbita da Terra, podemos prever que o Sol vai continuar a nascer por mais ou menos 5 bilhões de anos.
O problema com modelos estritamente empíricos é que, sem uma compreensão teórica do que está acontecendo, há sempre um risco razoável de que as regularidades observadas sejam apenas coincidências, tenham validade limitada por (ou estejam sujeitas a) interferências causadas por fatores que, pela própria natureza do modelo, somos incapazes de reconhecer ou levar em conta.
Modelos teóricos também são falíveis (e, ao menos no momento da concepção, até mais falíveis do que os empíricos), mas o desenvolvimento da teoria permite vislumbrar novas formas de testá-la e, assim, refiná-la, trazendo mais descobertas. O modelo empírico geocêntrico de Ptolomeu fazia previsões astronômicas melhores do que a versão inicial do heliocentrismo de Copérnico, mas, fora dessa área mecânica de aplicação, era essencialmente estéril. Já o heliocentrismo abriu caminho para construção da física clássica.
“Com aprendizado de máquina e ‘big data’, o que ‘sabemos’ sobre o mundo, e sobre nós mesmos, é, cada vez mais, aquilo que nossos modelos empíricos nos dizem”, aponta Boxer. Existe muito discurso entusiástico a respeito de IA que tende a tratar esse caráter "caixa preta" dos sistemas como algo maravilhoso, quase mágico: uma espécie de sabedoria pós-humana. A constatação de que são apenas correlações "boas o suficiente por enquanto e não sabemos até quando ou por quê" deveria vir como um balde de sobriedade.
Quantos horóscopos?
O autor de “A Scheme of Heaven” é, ele mesmo, cientista de dados, e não hesita em aplicar as ferramentas da área à astrologia. Um dos resultados mais interessantes a emergir do livro é o de que, levando em conta a astrologia clássica de doze signos, sete planetas (os cinco planetas conhecidos na Antiguidade, mais o Sol e a Lua) e signo ascendente, existem exatamente 44.789.760 mapas astrais possíveis, cada um refletindo uma configuração possível do céu – mas que, ao longo da história da Humanidade, apenas 19.844.460 dessas configurações astrológicas realmente ocorreram (algumas, mais de uma vez).
Considerando que o elemento que muda mais rápido no mapa, o ascendente, move-se, em média, a cada duas horas e que cerca de 17 mil pessoas nascem a cada hora no mundo, Boxer estima que, atualmente, cada mapa astral é compartilhado por mais de 30 mil indivíduos. O que põe o paradoxo dos “gêmeos astrais” – pessoas nascidas sob as mesmas estrelas, mas com destinos e personalidades divergentes – ainda mais em evidência.
Mas o que são paradoxos para quem já está convencido de antemão de que um sistema (qualquer sistema) funciona? “Uma vez que a sugestão de um padrão é feita – neste caso, uma sugestão apresentada originalmente milhares de anos atrás – torna-se muito difícil não ver evidência favorável por toda parte”, pondera o autor. “Na medida em que serve como uma advertência contra a aplicação descuidada dos métodos modernos de reconhecimento de padrões, a astrologia segue sendo parte integral da ciência do presente”.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)