Quantos testes de uma pseudociência são suficientes?

Apocalipse Now
7 set 2024
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lua em ilustração astrológica

 

No fim do mês passado, o blog ClearerThinking publicou os resultados de um teste de astrologia que não devem surpreender ninguém que tenha acompanhado o que venho escrevendo sobre o assunto nos últimos dez anos: astrólogos são incapazes de associar corretamente mapas astrais a perfis de personalidade e, até mesmo, de concordar entre si quanto à interpretação correta de um mapa astral.

Embora não traga exatamente nenhuma novidade, o trabalho do Clearer Thinking tem o mérito de explicar detalhadamente o raciocínio e o método por trás do teste – de fato, os autores mostram-se mais preocupados em mostrar como o pensamento científico funciona e pode ser aplicado do que em especular sobre o poder dos astros. A astrologia entra aí mais como “cobaia” do que como foco especial de interesse.

De saída, somos apresentados a duas condições fundamentais: encontrar uma alegação precisa que possa ser avaliada e definir uma métrica adequada para proceder a avaliação.

Esse par de exigências logo me lembrou da primeira linha do ensaio clássico “Estudos da Lógica da Confirmação”, de um de meus filósofos preferidos, Carl Hempel: “a característica definidora de uma afirmação empírica é sua capacidade de ser testada pelo confronto com resultados experimentais, isto é, com os resultados de experimentos adequados ou observações focalizadas”. “Afirmação empírica” é a alegação precisa, e confronto com resultados experimentais é a métrica adequada.

Afirmações como “astrologia funciona” ou “os astros influenciam a Terra” não são precisas. No caso da primeira, o que exatamente “funcionar” quer dizer, e em que contexto? Quanto à segunda, não há dúvida de que os astros influenciam a Terra. A luz do Sol é o que torna a vida na superfície do planeta possível; a Lua afeta as marés. Mas esse não é exatamente o tipo de influência que a astrologia diz detectar e analisar.

Pseudociências em geral têm uma relação ambígua, estilo morde-e-assopra, com a ideia de alegação precisa. Em geral, prometem maravilhas simples e concretas (quando buscam se promover), mas que logo se metamorfoseiam em linguagem figurada e num labirinto de complexidades, quando surge o risco de um teste rigoroso ou algum cliente insatisfeito bate à porta.  Quatro séculos atrás, Francis Bacon, em sua “História Natural”, já manifestava desconfiança quanto a remédios que só funcionariam se seus ingredientes fossem misturados na “hora certa” ou sob “a constelação correta”.

No fim, os autores do teste fixaram-se na seguinte afirmação: mapas astrais podem revelar informação sobre a vida e o caráter das pessoas.

Quanto à métrica, o Clearer Thinking meio que “reinventou a roda”, resgatando o que pesquisadores mais experientes do campo chamam de teste de associação, modalidade que busca determinar se astrólogos são capazes de associar corretamente um mapa astral à pessoa para quem o mapa foi construído.

Por exemplo, se um profissional for apresentado a cinco mapas (um correto e quatro espúrios) e a uma biografia, será ele capaz de determinar qual o mapa correto – isto é, o que corresponde ao biografado? Uma pessoa absolutamente ignorante de astrologia, se submetida à mesma prova e chutando ao acaso, deve acertar, por pura sorte, cerca de 20% das vezes. Se conhecimento astrológico realmente serve para alguma coisa, espera-se que o profissional se saia melhor (bem melhor, na verdade) do que isso.

O livro Understanding Astrology, lançado na Holanda em 2022, registra 70 testes desse tipo conduzidos e publicados em dez diferentes países entre 1950 e 2010. Os trabalhos envolveram, ao todo, mais de mil astrólogos, que se debruçaram sobre cerca de 2,4 mil mapas astrais. A taxa geral de sucesso não difere da que seria esperada por mero acaso.

O trabalho mais recente de Clearer Thinking chegou ao mesmo resultado, e com um bônus: além de detectar que os astrólogos erram na maioria das vezes, o estudo registrou que os astrólogos erraram cada um a seu modo – ou seja, não apenas a associação dos mapas aos indivíduos não correspondeu, na prática, à realidade, como nem sequer houve consenso, entre os especialistas, quanto a qual seria a associação “correta” do ponto de vista teórico.

 

Detalhes

O teste envolveu 152 astrólogos e 12 voluntários. Cada voluntário respondeu a um questionário exaustivo sobre vida e personalidade. Os astrólogos foram apresentados a cada um dos questionários respondidos. Cada questionário veio acompanhado de cinco mapas astrais – um correspondendo à data, hora e local de nascimento do autor das respostas, e quatro aleatórios. 

O resultado foi o descrito acima: não só a taxa de associações corretas foi a mesma que se poderia esperar caso os astrólogos estivessem adivinhando ao acaso, como não houve consenso entre eles. Ou, para citar diretamente os autores: “Na maioria dos casos (9 de 12), a resposta correta nem foi a opção mais escolhida. Há uma falta geral de acordo entre astrólogos sobre qual mapa pertence a qual pessoa”.

Testes de associação às vezes são criticados porque a informação dada ao astrólogo (questionário, biografia, perfil de personalidade etc.) talvez não seja adequada para o cotejamento com o mapa astral. No caso do teste mais recente, no entanto, o questionário aplicado aos voluntários foi construído com a colaboração dos astrólogos. “As perguntas foram escolhidas questionando os astrólogos sobre o que eles perguntariam a alguém, se quisessem adivinhar com precisão o mapa astrológico dessa pessoa”, diz o artigo.

 

Dilemas da confirmação

Este teste provavelmente não vai reduzir de modo significativo o número de adeptos da astrologia pelo mundo, assim como os 70 outros do mesmo tipo, registrados em Understanding Astrology, também não eliminaram o mercado de vaticínios astrais. Mas se ajudar algumas pessoas a entender o que é um processo científico (e, talvez, evitar que parte delas se encante com horóscopos), já terá cumprido um belo papel.

Voltando a Hempel: ele aponta que confirmações (ou refutações) definitivas de certos tipos de afirmação empírica são muito difíceis de obter. Uma alegação universal (“todos os corvos são pretos”) só pode ser refutada, mas nunca confirmada em caráter definitivo: basta, para a refutação, que se encontre um único corvo de outra cor. Quanto à confirmação, não importa quantos corvos pretos sejam catalogados, a possibilidade de haver algum exemplar de outra cor escondido em alguma parte do mundo jamais será zero.

Já uma alegação existencial (“existe um corvo amarelo”) só pode ser definitivamente confirmada: basta que se encontre o tal corvo. Quanto à refutação, não importa em quantos lugares se procure sem achar. O corvo teórico sempre pode ter teoricamente voado para longe dos caçadores.

Do ponto de vista lógico, portanto, nenhum teste de astrologia (ou de homeopatia, ou de reiki, ou de acupuntura...) jamais será “definitivo”. Mas poucas coisas na realidade empírica são: toda afirmação sobre o mundo real é provisória. Existir no mundo exige, porém, reconhecer que algumas são muito mais (ou muito menos) provisórias do que outras. De qualquer forma, há um nicho conceitual, um cantinho confortável de autoengano que, para quem quiser, sempre vai estar lá. E é nesse nicho que os promotores e defensores dessas práticas se aninham – junto, imagino, com os corvos amarelos.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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