Há mais de cem anos, na época do cinema mudo, a produtora americana Keystone Film Company criou uma trupe cômica que ficou conhecida como os Keystone Kops, “os Tiras da Keystone”. Era um grupo de comediantes vestidos em uniformes policiais que corriam todos juntos balançando os cassetetes, levavam tombos, caíam da traseira de automóveis, prendiam as pessoas erradas, tropeçavam uns nos outros, caíam de bunda na lama, enfim, envolviam-se nas situações caóticas e surrealistas típicas das comédias da época. Por algum tempo, foram as estrelas de seus próprios filmes, mas depois tornaram-se coadjuvantes (quando não antagonistas) em películas estreladas por astros como Charles Chaplin (que no início da carreira havia sido um dos “cops”).
Nos Estados Unidos, a expressão Keystone Kops virou uma espécie de metáfora aplicada a grupos que parecem altamente motivados, engajados, gastam enormes quantidades de energia – mas fazem tudo errado, dão tiros no pé, agem de uma forma que parece cômica porque atabalhoada, contraproducente, sem organização. Nesse sentido, às vezes apenas palavra Keystone é usada no pejorativo, como “Keystone Soldiers” (“Soldados da Keystone”), por exemplo. Os eventos da última semana – vá lá, dos últimos 30 dias – sugerem que no Brasil temos Golpistas da Keystone. O que é uma tremenda sorte para a democracia.
Mas pode ser proveitoso investigar de onde, afinal, vem tanta incompetência. Em todas as instâncias de tentativa de golpe bolsonarista que vieram a público até agora, o roteiro parece envolver uma faísca (a ocupação de Brasília, “revelação” de fraude eleitoral, um eventual grampo do Alexandre de Moraes no bar, numa roda de amigos, chamando o Bolsonaro de imbecil) que explodiria em caos geral, processo que terminaria com Jair Messias entronizado.
Subterrâneo
O que há de mais notável nessa escaleta é a completa ausência de encadeamento lógico entre as etapas: por que a faísca levaria ao caos? Por que o caos levaria a Jair? Por que Jair traria a pacificação? Elipses assim lembram o famoso efeito de montagem em “Caçadores da Arca Perdida”, quando num momento vemos Indiana Jones nadando até um submarino nazista e, na cena seguinte, vemos o submarino chegar à base, quando então nosso herói, ainda do lado de fora, escapa. O corte abrupto de uma cena para outra não dá ao espectador tempo de ponderar como alguém, sem equipamento de mergulho, poderia sobreviver a uma viagem no exterior de um veículo que, afinal, navega debaixo d’água.
Vale notar que emergir vitorioso, meio que por sorte ou milagre, de uma convulsão social apocalíptica é uma fantasia comum da extrema-direita, e dos supremacistas brancos e neonazistas americanos, em particular. Charles Manson (1934-2017) e seguidores cometeram uma série de assassinatos no fim dos anos 1960 com a intenção de lançar os EUA numa guerra civil entre brancos e negros, de cujos escombros a “Família Manson” sairia, triunfante, para reinar. A gangue, aliás, não tomaria parte na guerra, mas esperaria covardemente por seu fim, refugiada numa cidade subterrânea (no Vale da Morte, Califórnia, não em Orlando, Flórida).
Ainda hoje, o sonho de ressurgir das cinzas e reinar após o caos mantém-se forte nos meios supremacistas e neonazistas americanos, onde segue estimulando atos de terrorismo.
Lei da atração
No caso dos Golpistas da Keystone, parece-me provável que as elipses lógicas venham sendo preenchidas por pensamento mágico, místico-religioso, componentes importantes do autoritarismo de direita em geral e do bolsonarismo em particular. Não é necessário traçar um mapa preciso que leve do grampo do Xandão, ou do cocô no Palácio do Planalto, à tomada do poder, da mesma forma que não é possível prever como a oração, o dízimo ou a mentalização positiva levarão à graça almejada: Deus, o Destino, o Campo Quântico ou o Universo agem por linhas tortas e seguem caminhos misteriosos, mas no fim das contas o Bem sempre vence o Mal.
Planos quem tinha era o Coiote nos desenhos animados do Papa-Léguas. A extrema-direita brasileira tem fé. E isso talvez explique a decepção profunda aparentemente sentida por Bolsonaro ao perder a eleição, resultado que, para qualquer observador racional e familiarizado com os números do primeiro turno e das pesquisas, era mais do que esperado. Quase dá para imaginar o então ainda presidente balbuciando “Pai, por que me abandonaste?”.
Quando Bolsonaro diz que o governo Lula não vai durar, ele talvez esteja também “manifestando” – isto é, repetindo uma afirmação que quer muito que seja verdade para que se torne verdade, por algum tipo de osmose cósmica, a Lei da Atração. Já escrevi exaustivamente (por exemplo, aqui, aqui e aqui) sobre essa superstição específica e suas ramificações ideológicas e sociais, e também sobre seu efeito deletério na cultura do “empreendedorismo” (aqui). Ela tem uma afinidade natural com a Teologia da Prosperidade, caldo de cultura do bolsonarismo. No meio evangélico, hoje os mitos da Atração e da Prosperidade fundem-se na Teologia do Coaching.
Sortudos
A jornalista americana Rebecca Jennings repara, desde 2020, na penetração cada vez maior da mentalidade da “manifestação” no universo das redes sociais, o ambiente onde a extrema-direita parece viver a maior parte de sua vida cultural e de onde extrai suas principais referências intelectuais.
Em artigo recente para Vox, Jennings comenta a “síndrome da menina sortuda”, “um estado de existência em que tudo calha de acontecer da melhor forma possível para você, oportunidades caem no seu colo como dinheiro caindo do céu”. De acordo com a superstição virtual mais recente, para “pegar” essa síndrome bastaria seguir o exemplo de influenciadoras que passam o dia no TikTok repetindo frases como “coisas maravilhosas sempre acontecem comigo” ou (minha favorita) “riqueza é meu direito de nascença”, um narcisismo patológico que não parece fora de lugar na cabeça de quem se considera (e é considerado por parte de seus seguidores) um messias ungido.
Martingale política
Hipótese: o golpismo estilo Keystone Kops é fruto de fé. Fé na mitologia supremacista da vitória inevitável da Ordem após o apocalipse do Caos, somada à fé no poder da “manifestação”, também, e na teologia tosca que prega uma divindade que sempre recompensa grandes esforços e grandes sacrifícios (e se não recompensou ainda, é porque esforços e sacrifícios têm sido insinceros ou insuficientes).
O que é uma síndrome (para cooptar a terminologia da “menina sortuda”) muito tola, mas também muito perigosa. Porque as seguidas demonstrações públicas de fé do líder mantêm viva a fé dos seguidores, que continuam com o olho rútilo e o dedo trêmulo no gatilho (“cremos porque é absurdo”, na frase atribuída a Tertuliano), prontos para fazer novas bobagens.
Na linguagem dos jogos de azar, “Martingale” é o nome dado ao sistema que recomenda, num jogo em que a banca paga o dobro do dinheiro apostado, que se dobre a aposta cada vez que se sofre uma perda. Isso (em tese) garante que, mesmo depois de perdas seguidas, quando finalmente vencer, o apostador irá recuperar tudo o que perdeu nas etapas anteriores, e ainda obter algum lucro.
Na prática, a teoria não funciona, e por uma série de motivos. Os principais são que o capital necessário para seguir jogando cresce exponencialmente, dobrando a cada vez, e poucos jogadores são capazes de sustentar uma longa cadeia de apostas. Também, porque bancas e cassinos impõem limites ao quanto pode ser apostado – a casa pode simplesmente se recusar a aceitar uma aposta alta demais, mesmo se o jogador tiver capital infinito à sua disposição.
Com a fé inabalável que têm, os Golpistas de Keystone estão jogando Martingale contra a democracia brasileira. Resta ver o que vai se esgotar primeiro: o capital deles, o limite da banca... ou a sorte da democracia.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)