A aventura da menina imortal

Apocalipse Now
2 abr 2022
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Faz mais ou menos seis meses, defini aqui meu campo favorito de pesquisa, que chamei de cacoideografia — o estudo da origem, história e anatomia das ideias ruins. Essa ainda é uma área relativamente virgem, embrionária até, naquela fase do desenvolvimento em que a nova ciência ainda não adquiriu identidade própria, existindo mais como um recorte específico na interseção de campos acadêmicos já bem estabelecidos, como história, psicologia e filosofia. De qualquer modo, gostaria de propor aqui as três primeiras leis — tentativas, abertas a revisão, testagem empírica e crítica — da cacoideografia. São elas:

 

1. Lei Filogenética: todas as ideias ruins descendem de um pequeno número de ideias ruins primordiais e podem ser rastreadas de volta à fonte.

2. Lei da Conservação: ideias ruins primordiais não são criadas nem destruídas, mas se transformam, assumindo novos aspectos, adaptando-se a diferentes momentos históricos e modas culturais.

3. Lei da Inevitabilidade (ou Lei de Voltaire): ideias ruins que, se levadas a seu extremo lógico, geram conclusões atrozes ou absurdas, cedo ou tarde produzirão atrocidades ou absurdos no mundo real.

 

Das três, a Lei da Inevitabilidade é mais problemática, já que “cedo ou tarde” é o tipo de cláusula que torna a afirmação impossível de falsear — se uma ideia atroz não gerou atrocidades ainda, nada impede que venha a fazê-lo nos próximo século, ou milênio. Imagino que ela possa ser refinada em termos de parâmetros sociais ou psicológicos que ativam a inevitabilidade, e assim gerar previsões testáveis, mas isso é trabalho para gente mais competente do que eu.

O que me proponho a fazer aqui é oferecer um exemplo do que tenho em mente quando penso das três leis atuando em conjunto. Mesmo se toda a minha elucubração teórica não passar de bobagem, o Caso da Criança Imortal e do Guru de Autoajuda é interessante o suficiente em si mesmo.

 

Lógica impecável

Em novembro de 1938, James Bernard Schafer (1896-1955), líder da Fraternidade Real de Mestres Metafísicos, sediada numa mansão localizada nos arredores de Nova York, anunciou que seu grupo iria adotar um bebê e cria-lo num ambiente tão puro e saudável — só emoções positivas ao redor, apenas boas vibrações, alimentação vegetariana e natural — que ele viveria para sempre.

Schafer, é bom que se diga, não era um excêntrico que andava pelas ruas embrulhado num lençol, descalço e fumando maconha. Usava ternos bem cortados, tinha amigos na elite econômica. Era, de fato, o que hoje poderíamos chamar de palestrante motivacional e coach. Ele se apresentava como um “mensageiro” dedicado à “feliz tarefa de ajudar as pessoas a se ajudarem”.

O Mestre Metafísico falava para multidões no Carnegie Hall, e vendia métodos e processos para atingir o sucesso via poder do pensamento positivo. Sua Fraternidade tinha uma pegada mais “mística” do que outros vendedores de sonhos da Grande Depressão, mas o “livro sagrado” do movimento era “Pense e Fique Rico”, de outro grande charlatão do período, Napoleon Hill (1883-1970), publicado em 1937.

Tanto Hill quanto Schafer promoviam a crença no poder da crença, uma versão adaptada para as ansiedades específicas do século 20, numa cultura capitalista, da ideia ruim primordial da “força da fé”. Notavelmente, em “Quem Pensa Enriquece” (“Think and Grow Rich”) Hill delineia esse trajeto: “Fé é o ingrediente fundamental da mente. Quando fé se mistura à vibração do pensamento, a mente subconsciente capta a vibração, traduz essa vibração em seu equivalente espiritual, e transmite para a Inteligência Infinita, como no caso da prece”.

Em seu livro “The Theosophical Enlightenment” (“O Iluminismo Teosófico”), a historiadora Joscelyn Godwin oferece a tese de que, ao criticar e desmoralizar (ao menos aos olhos de parte da população) as tradições religiosas, o Iluminismo, inadvertidamente, abriu as portas para a popularização do ocultismo, do misticismo e para o florescimento das pseudociências.

As pessoas ainda queriam acreditar em milagres que caem do céu e no poder das intenções profundas em mudar a realidade. Se já não era mais aceitável identificar a fonte desses milagres com o Deus da Bíblia e chamar essas intenções profundas de prece, paciência: substitutos, num vocabulário mais chique e “científico”, seriam encontrados.

O plano da criança imortal — a ideia de que um fluxo de pensamento positivo e boas vibrações poderia gerar vida eterna — era uma consequência lógica natural da crença de que (citando mais uma vez o livro de Hill), “o éter em que esta pequena Terra flutua, em que nos movemos e existimos, é uma forma de energia que se desloca a uma taxa de vibração inconcebivelmente alta, e que o éter está repleto de um tipo de poder universal que se adapta à natureza dos pensamentos que temos em nossas mentes; nos influencia, de modo natural, a transmutar nossos pensamentos em seus equivalentes físicos”.

 

A menina eterna

Segundo reportagem que resgata a história do caso publicada recentemente pela revista britânica Fortean Times, Schafer partiu em busca de pais e mães que estivessem tendo dificuldade em sustentar seus filhos recém-nascidos, oferecendo-se para assumir a criação de um bebê. No fim, convenceu a garçonete Catherine Gaunt (ou “Gauntt”) que cedeu a filha de três (ou cinco, as fontes divergem) meses, Jean, para o experimento.

Não houve adoção formal: a criança simplesmente passou a viver na mansão dos Mestres Metafísicos, e a Fraternidade assumiu todas as responsabilidades e despesas relativas à bebê. Segundo a Fortean Times, nunca ficou claro se a mãe recebeu algum pagamento.

O plano era manter Jean numa “dieta da eternidade”, estritamente vegetariana, e sempre cercada de “pensamentos positivos”. Segundo uma nota distribuída na época pela Associated Press, “sua educação será rigidamente controlada, e ninguém poderá falar de morte ou doenças com ela”.

Mais uma vez, trata-se de uma extrapolação perfeitamente lógica. No caso, do princípio de que as pessoas atraem para suas vidas aquilo em que pensam e de que falam — uma ideia ruim (primordial em si, ou talvez apenas um aspecto do “poder da fé”?) popular ainda hoje. A proposição foi formulada de modo poético por James Allen (1864-1912) em 1903, em seu livro “Como Um Homem Pensa”: “a mente do homem pode ser comparada a um jardim, que pode ser cultivado de modo inteligente ou deixado à própria sorte; mas seja cultivado ou negligenciado, ele deve, e vai, produzir. E nenhuma semente útil for plantada ali, então uma abundância de sementes de ervas daninhas cairão lá, e reproduzirão sua espécie”.

A reportagem da Fortean Times cita Schafer dando a seguinte declaração: “continuaremos a impressioná-la com a beleza da vida e com o aspecto da vida que tentamos viver. Se uma criança nunca pensar nada que seja mau ou destrutivo, não haverá como derrubá-la”.

A babá encarregada de cura de Jean era mantida num plantão de 24 horas e vigiada para não sucumbir a nenhuma negatividade. Um tipo de pressão que não deve ter sido muito diferente da sentida pelos executivos e funcionários de grandes corporações e pequenas start-ups seduzidas pelas versões atuais das mesmas ideias ruins. Histórias como a do Fyre Festival e da empresa Theranos logo vêm à mente. Napoleon Hill, aliás, foi o padrinho da menina.

O experimento de vida eterna durou dois anos. Em dezembro de 1941, Catherine Gaunt pediu a criança de volta, ameaçando criar um escândalo na imprensa. Schafer aceitou devolver a criança, dizendo ao público que a causa da imortalidade agora estava nas mãos da família natural de Jean, mas brigou para ficar com os presentes que a bebê-celebridade havia recebido durante seus 15 meses de fama, incluindo um anel de diamante avaliado em dezenas de milhares de dólares.

 

O fim

A Fraternidade entrou em colapso pouco depois, com membros que se sentiram fraudados pelo Mestre Metafísico processando-o e exigindo reparações. Schafer teve de vender a mansão para pagar dívidas e tornou-se sócio de Napoleon Hill numa revista de autoajuda. A revista não foi para a frente e o metafísico acabou preso por fraudar investidores. Solto, tentou voltar ao mercado de cursos sobre sucesso e palestras de autoajuda, mas (nenhuma ironia aqui) sem sucesso. Cometeu suicídio, junto com a esposa, em 1955.

A notícia da morte, dada numa coluna e meia do New York Times com o título “Duplo Suicídio Relembra Seita Estranha”, menciona brevemente o caso da bebê imortal.

Sim, e quanto ela? Até onde se sabe, a menina Jean Gaunt cresceu para ter uma vida normal, casou-se, teve filhos e, segundo a Fortean Times, ainda estava viva em 2002.

 

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Seu padrinho e inspirador-mor de Schafer, Napoleon Hill, morreu em 1970, também muito distante do sucesso financeiro. Hill era um mitômano contumaz: em seus livros, dizia ter recebido lições importantes sobre sucesso de grandes magnatas com quem, na verdade, nunca se encontrou, ou com quem esteve por poucos minutos, apenas para tirar uma foto de fã e ir embora. Um longo ensaio biográfico publicado sobre ele em Gizmodo mostra que passou a maior parte da vida adulta sendo sustentado por pequenas falcatruas ou pela caridade da esposa, ou ex-esposa, da ocasião (casou-se pelo menos cinco vezes).

 

Quântico!

De certa maneira, Hill morreu como um gênio não reconhecido — mas não pelos motivos que gostaria. O artigo em Gizmodo constrói um bom caso em defesa da tese de que, na obra e na vida de Napoleon Hill, encontramos o mapa fundamental, a estrutura básica dos esquemas e ideologias de “conquista do sucesso” do mundo moderno, dos cursos que prometem ensinar a enriquecer, passando pelos processos de coaching e chegando à literatura motivacional de autoajuda. 

Não que Hill tenha inventado isso tudo sozinho (como vimos, James Allen já falava coisas parecidas em 1903 e a tese de Joscelyn Godwin sobre o Iluminismo sugere que essas ideias sempre estiveram por aí, apenas foram trocando de roupa com o passar do tempo), mas o livro “Quem Pensa Enriquece” seria um momento especial de síntese, um ponto onde tudo o que veio antes se concentra antes de explodir de novo, renascendo num novo formato. 

Vejamos, por exemplo, a seguinte frase: “a mente subconsciente consiste de um campo de consciência”. Antecipa Deepak Chopra e Amit Goswami. Mesmo trechos onde o “technobabble” — a linguagem pseudocientífica — está envelhecido podem ser facilmente atualizados. Exemplo: “Vibrações de uma taxa extremamente elevada são as únicas captadas e transmitidas pelo éter, de um cérebro para outro”. “Éter”, um jargão científico ultrapassado, pode ser facilmente substituído por algo como “campo quântico” ou “campo morfogenético” ou “biocampo”, etc., sem perda (ou ganho, na verdade) de sentido e coerência.

Em 2016, uma edição de “Think and Grow Rich”, reescrita para eliminar esses e outros anacronismos (e gerar direitos autorais para o “coautor”), constrói o mesmo trecho da seguinte forma: “Pensamento manifesta-se como energia elétrica dentro do cérebro humano. Apenas impulsos de pensamento altamente ‘energizados’ são transmitidos de um cérebro para outro”.

E vamos comparar um pouco de Napoleon Hill “vintage”, 1937, com um conselho de Tony Robbins, o rei do coaching motivacional no século 21:

“Qualquer impulso de pensamento que é repetidamente passado para a mente subconsciente é, enfim, aceito e atuado pela mente subconsciente, que procede para traduzir esse impulso em seu equivalente físico”. (Hill)

“Eu me atribuí um alvo, e todo dia eu congruentemente dei ao meu cérebro uma mensagem clara, precisa, direta, de que essa era minha realidade. Tendo um alvo preciso, minha poderosa mente inconsciente guia meus pensamentos e ações para produzir os resultados desejados”. (Robbins)

 

A linguagem muda, Robbins é um escritor (um pouco) melhor, mas a ideia ruim segue sendo a mesma: a fantasia da Lei da Atração (“metas são como ímãs. Atraem as coisas que as tornam realidade”, escreve Tony Robbins em outro trecho do livro “Poder Sem Limites”), a ideia ruim primordial do poder do desejo sincero, irmã (ou clone?) da ideia do poder da fé.

Enfim, aí estão minhas três leis: há um número pequeno e limitado de ideias ruins originais, essas ideias não morrem e nem mudam em sua essência, mas adaptam-se — à linguagem da religião, da magia, da parapsicologia, da neurociência, da física de partículas, o que o público estiver mais a fim de engolir — e sempre haverá alguém disposto a implementá-las até varar o limite do absurdo, buscando tudo e mais além.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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