Jair Bolsonaro não tem, nem nunca teve, projeto político (além de manter a família na mamata) ou econômico (Paulo Guedes que o diga): seu único programa sincero é espiritual. O que lhe preocupa não são instituições, vidas humanas ou pontos no PIB, mas valores abstratos, visões metafísicas. Para ele, vacinas são desimportantes porque saúde e vida não passam de bens materiais, preocupações menores: doença e morte, afinal, vêm para todos.
Em contraste, a mineração desenfreada e o desmatamento são promovidos não porque parecem produzir riqueza, mas porque o uso e o abuso do mundo natural pela vontade humana é um mandamento, um imperativo teológico (“E Deus os abençoou e lhes disse: ‘Sejam fecundos, multipliquem-se, encham e submetam a terra; dominem os peixes do mar, as aves do céu e todos os seres vivos que rastejam sobre a terra’”, Gênesis, 1:28). O presidente, enfim, é o místico da picanha bem-passada.
Esse fato, que já deveria ter ficado bastante claro no elogio de Bolsonaro ao torturador Brilhante Ustra, voltou a entrar em evidência na recente dicotomia entre “vida e liberdade” articulada pelo novo apóstolo do Messias, Marcelo Queiroga. A fala recente de Bolsonaro, lançando uma maldição sobre uniões homoafetivas, foi apenas a proverbial cereja do bolo.
Uma visão
Em resumo, o Brasil não está sendo sacrificado em nome do enriquecimento ilícito de espertalhões ou das boquinhas para os genros e cunhados inimpregáveis do pessoal do Centrão. Essas coisas estão acontecendo, sim, mas são meros efeitos colaterais. O país está sendo imolado, mesmo, em nome de uma visão transcendente.
E que visão é essa? Como todo sistema espiritual, a metafísica que anima Jair Bolsonaro está repleta de inconsistências e indefinições, mas passei as férias da coluna tentando, se não identificá-la, ao menos circunscrevê-la.
Para tanto, dediquei Natal e Ano Novo à leitura de “The Storm Is Upon Us”, do jornalista Mike Rothschild, sobre o movimento americano QAnon, do qual o bolsonarismo-raiz é uma espécie de paródia involuntária; “War for Eternity”, do cientista social Benjamin Teiltelbaum, a respeito da filosofia irracionalista que anima figuras como Steve Bannon e Olavo de Carvalho; “Menos Marx, Mais Mises”, uma história da “nova direita” brasileira, escrita pela cientista política Camila Rocha; e o livro acadêmico de Camila Rocha, Esther Solano e Jonas Medeiros sobre o bolsonarismo, “The Bolsonaro Paradox”.
Vísceras da Eternidade
Cada obra trouxe elementos importantes – o antimodernismo da filosofia Tradicionalista apresentada por Teiltelbaum, o tribalismo conspiratório de QAnon, a linguagem que busca desestabilizar a própria ideia de debate público, diagnosticada por Camila Rocha – e o que obtive, ao misturar e destilar isso tudo, foi uma ideia de transcendência que, primeiro, assume como fundamental a necessidade de conexão entre o mundano e verdades eternas e, segundo, estipula que essa conexão se dá em termos antirracionais, naturalizados e hierárquicos.
Chamo a conexão com o Eterno pretendida pelo bolsonarismo de antirracional não porque ela se supõe além da razão – como, por exemplo, os “mistérios da fé” do cristianismo –, mas porque, de fato, opõe-se a ela, despreza-a, descarta-a; as “verdadeiras verdades”, aquelas que valem a pena, emergem da intuição, do preconceito e da emoção, são as verdades românticas, que vêm do coração (ou do fígado ou do estômago), não do empirismo, da informação dos sentidos mediada e filtrada pela lógica, pelos métodos e ferramentas da ciência.
A linguagem, por sua vez, torna-se baixa, deselegante e chula porque o discurso racional, regrado, é incapaz de dar conta dessas grandes verdades viscerais.
Para quem olha de fora, parece muito uma nova iteração da velha anedota do tipo simplório que se borra de medo de ser engabelado por “conversa de doutor”. É Olavo de Carvalho desconfiando de Galileu, da teoria da Evolução e da álgebra; é Bolsonaro espalhando medo da vacinação infantil mesmo depois de milhões de crianças já terem sido vacinadas no mundo, sem nenhum efeito adverso grave. Vagas impressões valem mais do que números, o oráculo do umbigo vale mais que os relatórios do CDC. Palavrões substituem argumentos, porque são mais “autênticos”.
Chamo a conexão de naturalizada porque se presume que, uma vez que todos tenhamos limpado a mente da névoa racionalista-cientificista-materialista-ateia e passado a viver de acordo com as leis do fígado, do umbigo e do coração, a sociedade vai reencontrar seu estado natural, harmonioso, em comunhão consigo mesma e com a Eternidade.
E é hierárquica porque hierarquia representa, ao menos nesse quadro de referência, uma característica indispensável da sociedade “boa, porque natural”. Assim como líquidos de densidades diferentes misturam-se quando agitados, mas cada um encontra e estabiliza-se em seu próprio nível quando o vasilhame, enfim, repousa, na sociedade ligada ao Eterno cada elemento encontra seu devido lugar e, mais importante, nele se encontra.
Nessa hierarquia ditada pelo bolsonarismo transcendente, a plenitude espiritual acontece quando homens são homens (armados), mulheres são mulheres (na cozinha), homossexuais, se é que existem, “têm a decência” de não sair do armário, e assim por diante. A utopia final é um vilarejo do Meio-Oeste americano, com direito a boteco e rodeio, em um episódio de Além da Imaginação escrito pelo tiozão do churrasco.
Ciência satânica
Como o pré-requisito para que cada indivíduo encontre e aceite seu lugar no esquema da Eternidade é o abandono da razão em nome do mínimo denominador do senso-comum conservador, a ciência torna-se, naturalmente, a pior inimiga – assume ares satânicos: assim como Lúcifer, disfarçado de serpente, seduziu Eva convencendo-a a comer o fruto da Árvore do Conhecimento, a ciência, com sua linguagem rebuscada, matemática e racional, seduz e afasta o espírito simples da salvação oferecida pelo sentimentalismo, pela tradição e pelo óbvio-natural.
Aqui é apenas justo notar que esse mote, de que a ciência e a razão tecem véus que separam o ser humano de sua vocação natural e o levam a buscar lugares que não lhe cabem, não é exclusivo de movimentos de direita. Trata-se de um tipo de ideação que aparece por toda parte – o que muda é o conteúdo do que se presume como “vocação natural” e “lugar que lhe cabe”.
Sinceridade
No entanto, como regra geral, ideologias, mesmo as em princípio anticientíficas, que conquistam o poder político acabam sendo forçadas a fazer as pazes com a ciência, já que assumem a responsabilidade de melhorar as condições objetivas de vida da população, e o conhecimento científico é necessário para isso.
Mas como o único horizonte de Bolsonaro é a vitória espiritual – “condições de vida” são preocupações de um materialismo crasso –, ele pode se dar ao luxo de conduzir guerra aberta à razão: trata-se do pior tipo de idealista, o idealista sincero. As vacinas, nesse aspecto, são apenas uma baixa, entre muitas.
Em fevereiro de 1968, o jornalista Peter Arnett, então na Associated Press, entrevistou um major dos Estados Unidos sobre a decisão de bombardear um vilarejo vietnamita, a despeito do grande número de baixas civis. A explicação que ouviu foi: “tornou-se necessário destruir a cidade para salvá-la”.
O compromisso profundo e inabalável do major americano para com seus ideais anticomunistas prefigurava a altivez espiritual do capitão brasileiro.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)