O segredo do sucesso é fazer sucesso

Apocalipse Now
27 fev 2021
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milito

 

Tales de Mileto (624-546 AEC) é tradicionalmente considerado o primeiro "cientista" do Ocidente: ele teria sido o primeiro sábio a tentar explicar os fenômenos da natureza nos termos da natureza, sem apelar para a linguagem da religião e do mito. Também teria sido o primeiro a prever com sucesso um eclipse solar. Era um homem adiante de seu tempo e, sob muitos aspectos, até do nosso. Além de proto-cientista, Tales foi um observador arguto da natureza humana, e um sujeito com um ótimo senso de ironia. De acordo com o biógrafo Diógenes Laércio, certa vez perguntaram a Tales o que teria surgido primeiro, o dia ou a noite, ao que ele respondeu: "A noite, que veio um dia antes". Suas respostas epigramáticas mais famosas são as que deu à questão sobre qual a coisa mais difícil do mundo ("conhecer-se a si mesmo") e a mais fácil ("dar conselhos aos outros"). Incapaz de olhar com clareza para o próprio umbigo, o ser humano ainda assim se sente perfeitamente apto a dizer aos outros como conduzir suas vidas.

 

 

SHAM

O sarcasmo de um dos primeiros grandes intelectuais reconhecidos na tradição ocidental não impediu, no entanto, que a indústria do conselho fácil crescesse, se desenvolvesse e, por fim, desabrochasse no amplo setor da economia conhecido como o mercado de autoajuda. Em sua reportagem-denúncia sobre a indústria de autoajuda, “SHAM”, o jornalista Steve Salerno cita uma pesquisa que conclui que a pessoa que tem maior probabilidade de comprar um livro do tipo é alguém que comprou outro livro do mesmo tipo nos dezoito meses anteriores.

Salerno aponta a contradição implícita aí: "muitos desses livros se propõem a resolver ou amenizar um problema. Se o que vendem funcionasse (...) não seria de se esperar que a pessoa precisasse de ainda mais ajuda sobre o mesmo assunto, e ainda mais, repetidas vezes". Ele conclui que, se os leitores precisam renovar suas doses de "ajuda" a cada ano e meio, isso significa que a "ajuda" não é real, mas uma ilusão que requer sustentação contínua para se manter.

O autor chama ainda atenção para o caráter de autoperpetuação desse tipo de material: se as técnicas apresentadas não resolveram seu problema, a resposta não é que as técnicas são inadequadas – é que você não as usou o suficiente. A gramática, no fim, é a mesma da exploração pecuniária da fé religiosa (sua doação para a igreja foi pequena demais, não foi sincera o bastante...). Só o vocabulário muda.

 

Ki-Suco

A expressão “Ki-Suco para a alma” – “Kool-aid for the soul” – é usada pela jornalista americana Barbara Ehrenreich em “Sorria”, livro que traz uma crítica cáustica à cultura do pensamento positivo, para se referir aos conselhos edulcorados, mas nada nutritivos, desse tipo de literatura. A mais disseminada e insidiosa das superstições que se vende nesse meio é a de que o destino pode ser manipulado subjetivamente, por uma “atitude positiva” que deve ser mantida todo tempo, a qualquer custo.

Como Salerno escreve em ”SHAM”, vende-se a ideia de que “o modo pelo qual definimos as coisas e explicamos a vida para nós mesmos determina como nos relacionamos com as coisas e reagimos à vida em geral”. Daí se conclui que “mudar o modo como as pessoas interpretam subjetivamente o que ocorre ao redor delas deve mudar o modo como operam no mundo”.

O que, dentro de limites bem específicos – é difícil “mudar a interpretação subjetiva” numa queda de 20 andares, por exemplo, ainda mais quando é você que está caindo – até faz sentido: crises podem ser oportunidades, etc. e tal. Mas para muita gente, essa rationale parece justificar uma espécie de otimismo compulsório, de caráter supersticioso, como se vê na famigerada Lei da Atração, a ideia mágica de que pensamentos bons vão atrair coisas boas, e pensamentos ruins, coisas más – o que, se for verdade, diz algo perturbador sobre o estado de espírito da população de Pompeia, cinco minutos antes da erupção do Monte Vesúvio.

Ehrenreich vê aí uma reencarnação da velha neurose cristã do exame constante de consciência: enquanto o puritano tinha de policiar os pensamentos em busca de desejos inconfessáveis e inclinações pecaminosas, a fim de erradicá-los, o empreendedor, coachee, místico ou hipster ouve que precisa fazer o mesmo com suas ideias negativas (ou "crenças limitantes"). 

O dano à sanidade mental e ao convívio social – vindo do patrulhamento constante, não só de si mesmo como também dos outros que, afinal, podem ser fontes de contágio pelo “pecado” (ou "vírus") do negativismo – não difere muito de um fanatismo para o outro. Vários estudos mostram que a atitude positiva forçada e a visualização constante das metas (outra superstição popular) não só não entregam o prometido como, muitas vezes, são prejudiciais.

Barbara Ehrenreich, aliás, ficou famosa em 2001, quando a revista Harper’s publicou seu artigo “Welcome to Cancerland” (“Bem-Vinda à Terra do Câncer”), onde ela relata seu horror, não diante do diagnóstico de câncer de mama, mas do universo de fofura cor-de-rosa e otimismo forçado, histérico, em que se viu jogada. “Deixem-me morrer de qualquer coisa, desde que não seja afogada nesse sentimento meloso rosado”, ela implora, a certo ponto.

 

Questão de sorte

Sorte e acaso são termos que andam meio fora de moda. O ser humano sempre gostou de ter algum senso de controle sobre seu destino, e as atuais teologias da prosperidade, somadas à enxurrada de literatura de autoajuda, só fizeram agravar o processo, vendendo uma supersticiosa ilusão de controle às massas afoitas. Claro, não se trata de dizer que a sorte é tudo – preparação, empenho, senso de oportunidade, clareza de visão... tudo isso tem um papel, e um papel importante. Mas é preciso reconhecer como é forte a tentação de se cair no extremo oposto: achar que todas as coisas que ocorrem, acontecem por algum motivo. Que as pessoas sempre e inevitavelmente merecem o que acontece a elas, seja fortuna ou desgraça. Em termos teológicos, substitui-se a doutrina da Graça – segundo a qual Deus distribui dores e recompensas de modo incompreensível e inescrutável, que talvez só venha a fazer sentido para mentes mortais na plenitude dos tempos – por uma visão supersticiosa, quase mecanicista, do funcionamento dos céus: feitos tais e tais sacrifícios (seja um holocausto de touros ou do cartão de débito), decorrem daí os favores da eternidade. E se não decorrerem, é porque você não sacrificou o suficiente no altar de sua igreja, de seu autor/palestrante favorito ou de seu coach. Em termos culturais, cria-se um clima propício para a indústria do pensamento positivo, com suas “leis da atração” e quejandos. E, em termos sociais e econômicos, dissemina-se uma atmosfera de desprezo pelos menos favorecidos – vagabundos, todos – e uma frenética idolatria por quem está no topo. Daí que uma pequena simulação publicada em 2011 no periódico PLoS ONE pode servir como um leve beliscão nas consciências. Economistas da Universidade de Minnesota, nos EUA, criaram um modelo de computador para estudar as condições em que, a partir de uma origem teórica perfeitamente igualitária, surge o fenômeno da concentração de renda. O que descobriram: basta sorte. Em outras palavras: para explicar como nasceram a riqueza e a pobreza, não é preciso invocar fatores como talento, disposição para o trabalho, ética, etc. O acaso trata de garantir que a renda acabe distribuída de forma desigual, mesmo num modelo onde todos começam com exatamente o mesmo capital e exatamente as mesmas qualidades pessoais. O mundo real é obviamente mais complexo do que isso, e nele diferenças de disposição e preparo existem e fazem diferença. No modelo, uma vez inseridas, diferenças intrínsecas entre os indivíduos aceleram a concentração; não são, como talvez se pudesse imaginar, uma força redistributiva.

 

Sucesso!

Esse ponto é reforçado no livro “Sorte e Sucesso”, do economista e professor de administração Robert Frank. “A retórica da meritocracia parece ter escamoteado o quanto do sucesso ou do fracasso dependem, crucialmente, de eventos que estão totalmente fora do controle individual”, escreve ele. E, um pouco mais adiante: “As pessoas detestam ouvir que o sucesso pode ser explicado pela sorte – as pessoas bem-sucedidas, principalmente”.

Frank chama atenção para o fato, a princípio contraintuitivo, de que o caráter altamente competitivo do mundo moderno só agrava a situação: numa condição em que todos se preparam, lutam e se esforçam ao máximo, a probabilidade da sorte acabar sendo o fator decisivo numa disputa, o tira-teima final na hora do desempate, torna-se dominante.

Se o processo seletivo inicial realmente barra os candidatos incompetentes ou inadequados, a última decisão sobre quem fica com a vaga pode acabar dependendo mais da cor da gravata do candidato ou da qualidade do sono do recrutador do que de qualquer diferença real (porque, se houver, provavelmente será microscópica) de capacidade entre os finalistas.

Isso vale, claro, não só para procura de emprego, mas também para o sucesso comercial de produtos e, na economia moderna dos influencers, para o sucesso online.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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