A pandemia causada pelo SARS-CoV-2 trouxe enormes desafios à ciência. Nunca na história foi tão importante desvendar os pormenores de um novo coronavírus, suas complexas mutações, seu modo de transmissão, sua ação no organismo humano e suas consequências de curto e longo prazo. A frustração frente à ausência de um tratamento farmacológico eficaz levou a várias tentativas infrutíferas de reposicionamento de fármacos, estratégia de buscar, entre os medicamentos já disponíveis no mercado, algum que dê conta também da nova doença.
Os casos mais conhecidos são os da hidroxicloroquina e da ivermectina, que têm em comum o interesse inicial baseado em estudos observacionais extremamente sujeitos a vieses, seguidos de estudos clínicos randomizados com resultados negativos ou inconclusivos. É importante notar que não há nada de surpreendente nisso: a busca por um fármaco de reposicionamento sempre constitui aposta com pouquíssima chance de sucesso. Não é surpreendente que seguidas tentativas falhem.
No Brasil a novidade é a proxalutamida, anunciada como uma nova esperança por ninguém menos do que o presidente da República. Ao contrário de estudos robustos, que envolvem diversas equipes em vários centros, no caso desse fármaco, até agora a mesma equipe de pesquisadores fez as observações iniciais, os estudos de viabilidade, os estudos observacionais e os testes clínicos (supostamente) randomizados.
Os resultados, infelizmente, não passam de uma expressão de erros sistemáticos e da falta de experiência dos pesquisadores envolvidos. Este esforçado grupo, composto por outrora ferrenhos defensores de tratamentos inócuos como kit COVID, politerapias diversas e até de aplicativos para prescrição automática de cloroquina para qualquer paciente com algum sintoma de COVID-19, agora clama ter descoberto o elixir da COVID-19.
Em confusos ensaios clínicos, que vamos detalhar a seguir, os autores cravam que a droga proxalutamida, um antagonista androgênico ainda em teste para câncer de próstata, mas até o momento carente de aprovação oficial, em qualquer parte do mundo, para qualquer doença, demonstrou 92% de redução de mortalidade em casos de COVID-19 graves internados, e cerca de 90% redução de hospitalização em casos de COVID-19 ambulatoriais. “Bom demais para ser verdade”, afirmou, com ironia, artigo na prestigiosa revista Science.
Antes dos ensaios
Os únicos artigos publicados sobre proxalutamida antes de 2021 apresentavam dados preliminares in vitro e in vivo promissores para o tratamento de indivíduos portadores de câncer de próstata resistente à castração. Outros estudos in vitro sugeriram que a inibição da enzima TMPRSS2 (serina-serina protease transmembranar) poderia constituir uma opção terapêutica contra o SARS-CoV-2. A TMPRSS2 é regulada por androgênios e tem expressão aumentada em células tumorais prostáticas. A proxalutamida é uma antagonista de receptor androgênico.
A lógica, então, é esta: há estudos que sugerem que reduzir a disponibilidade da enzima TMPRSS2 no organismo dificulta a vida do SARS-CoV-2. A produção dessa enzina é regulada por hormônios chamados androgênios. A proxalutamida, supõe-se, combate esses hormônios. Daí para imaginar que a proxalutamida poderia tratar COVID-19 foi um passo. No entanto, até agora não existem dados de eficácia in vitro da proxalutamida contra o SARS-CoV-2.
A história começa, na verdade, com uma observação enviesada envolvendo calvície. O grupo de pesquisadores publicou um artigo descrevendo um achado peculiar: calvície em homens seria fator de risco para formas graves de COVID-19. O estudo partiu da observação de apenas 65 pacientes, ignorando outros fatores associados à calvície como idade, fatores socioculturais e da história médica pregressa. Ninguém na comunidade científica deu muita importância para esse “achado”, exceto os próprios pesquisadores envolvidos.
A partir daí foi gerada a hipótese dos anti-androgênicos para COVID-19, em particular da proxalutamida. A proxalutamida é uma droga experimental, até agora não autorizada em nenhum país do mundo, produzida pela empresa chinesa Kintor em colaboração para pesquisa com a americana Applied Biology, que emprega os principais pesquisadores do estudo. As justificativas de maior gravidade em homens ou a associação provavelmente espúria com alopecia (termo técnico para a calvície) são falaciosas. Por fim, um estudo observacional em pacientes portadores de câncer de próstata concluiu que o uso de terapia de deprivação androgênica está associado a maior incidência de COVID-19.
Em resumo: ninguém jamais conduziu estudo pré-clínico, de fase I ou fase II, que atestasse eficácia e segurança da proxalutamida para COVID-19. A probabilidade pré-teste de sucesso é baixa, de acordo com o estudo observacional que viu aumento no número e casos de COVID-19 em pessoas submetidas a tratamentos com fármacos de efeito semelhante ao sugerido para a proxalutamida. Mas há plausibilidade biológica para o estudo de anti-androgênicos em COVID-19, diferentemente da cloroquina, por exemplo, cujo suposto "mecanismo de ação" contra o vírus já se mostrou inválido.
Ética em pesquisa
Qualquer pesquisa envolvendo seres humanos, mesmo que não seja da área médica, é regulada por rigorosos protocolos éticos. No Brasil, de acordo com a Resolução nº 466/2012 e a Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, “toda pesquisa envolvendo seres humanos deve ser submetida à apreciação de um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)”, visando assegurar o respeito pela dignidade humana e a proteção devida aos participantes. De acordo com a Declaração de Helsinque, o “protocolo de pesquisa deve ser submetido para consideração, comentários, orientação e aprovação do respectivo CEP antes que o estudo comece”.
Em retribuição à atitude altruísta e à confiança dos participantes de pesquisas com seres humanos, em 2005 o Comitê Internacional de Editores de Revistas Médicas, International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE), estabeleceu que o registro detalhado de todo protocolo de pesquisa deve ser disponibilizado publicamente antes da inclusão do primeiro participante, de maneira a assegurar plena transparência e honestidade científica para com dados passíveis de alterar práticas médicas. A plataforma Clinical Trials, gerenciada pela National Library of Medicine, é a base de registros mais utilizada internacionalmente. O registro no Clinical Trials deve detalhar onde o estudo será feito, qual é o objeto de estudo, o tamanho do grupo estudado, como será feito o recrutamento, como será a randomização, etc. Em geral, cada projeto envolvendo humanos precisa de um registro exclusivo.
Casos leves, sem hospital
No final de fevereiro de 2021 o primeiro estudo sobre proxalutamida e COVID-19 foi publicado na Revista Cureus. Cureus é uma revista que se apresenta como “uma plataforma inovadora, mais eficiente para médicos e pesquisadores publicarem e compartilharem pesquisa”. À primeira vista parece interessante, mas na prática tornou-se um periódico em que uma revisão por pares "camarada" permite que virtualmente qualquer coisa seja publicada.
Artigos que não se enquadrem na categoria “nenhum erro” são taxados com os salgados custos do “serviço de edição preferencial”. A Cureus também tem uma maneira curiosa de recrutar revisores: enquanto revistas de alto prestígio são extremamente cuidadosas ao convidar revisores entre especialistas de renome, se você visitar o site da revista algumas vezes, será convidado para compor o quadro, independentemente de sua formação e competência. A ideia é permitir que artigos que jamais passariam pela rigorosa revisão por pares dos periódicos prestigiosos ganhem o status de “publicação revisada por pares”.
Algumas semanas antes, Cureus já havia publicado outro artigo polêmico dos mesmos pesquisadores, o escore clínico AndroCoV, que passou por revisão por pares ultra-expressa: um processo que normalmente dura algumas semanas foi iniciado e concluído no mesmo dia.
O artigo de fevereiro tem uma particularidade muito grave: os dados de registro e aprovação ética[i] da pesquisa descritos no artigo são compartilhados por pelo menos outros três estudos de intervenção do mesmo grupo de autores, com dutasterida, com combinação de azitromicina e nitazoxanida e com adição de espironolactona, além do próprio estudo observacional AndroCoV. Não foi localizado o protocolo de pesquisa referente a esse estudo no Clinical Trials, tampouco os autores reportaram outra base de registro onde o trabalho poderia constar.
O artigo da Cureus conclui que o tratamento com proxalutamida aceleraria o clearance viral, uma espécie de redução da quantidade de vírus no organismo, e diminuiria sintomas da COVID-19. Chama atenção a importante assimetria numérica entre o grupo intervenção (171 indivíduos de ambos os sexos) e o grupo placebo (65 indivíduos), o que poderia indicar algum problema durante o processo de randomização dos participantes. Em um processo de randomização bem-feito, os dois grupos teriam aproximadamente o mesmo número de participantes, pois as chances de um novo paciente cair em qualquer grupo deveriam ser as mesmas.
O exercício para tal entendimento revelou-se infrutífero a partir do momento em que o pesquisador principal afirmou, no Twitter, que o estudo reunia dados de outras pesquisas prévias, apesar do título do artigo se referir a um “estudo randomizado, duplo-cego, controlado por placebo”. Em resumo, o delineamento do estudo parece ter sido apenas observacional, sem controle paralelo com placebo, e ainda empregou cálculos estatísticos equivocados[ii]. Uma revisão por pares minimamente competente teria apontado essas fragilidades e rejeitado o manuscrito.
O segundo artigo
Em julho de 2021 foi publicado um segundo artigo, agora em outra revista, Frontiers in Medicine, baseado no projeto "The Proxa-AndroCoV Trial"[iii], aprovado pelo Comitê Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) apenas em 4 de maio de 2021, ou seja, alguns vários meses após 21 de outubro de 2020, data do início do recrutamento, conforme informado no artigo. O número de parecer 4282108 que consta no texto publicado não foi encontrado na busca realizada na Plataforma Brasil, o que pode indicar um projeto ainda não aprovado, ou inexistente.
O protocolo do estudo foi modificado nada menos que sete vezes na plataforma Clinical Trials. A última alteração foi realizada em 29 de dezembro de 2020, quando, incrivelmente, o fármaco usado foi trocado de dutasterida para proxalutamida. Isso evidencia que o registro definitivo da pesquisa ocorreu após o término do recrutamento de voluntários[iv]. Pior, a substituição, no protocolo, de dutasterida por proxalutamida após o início do estudo demandaria encerramento do estudo vigente e elaboração de outro projeto, sujeito a nova avaliação ética e novo registro na plataforma Clinical Trials. Não é de se esperar que a aprovação ética do estudo de um fármaco seja válida para qualquer outro fármaco, por mais que os efeitos esperados sejam semelhantes: um teste de aspirina não é a mesma coisa que um teste de paracetamol.
Entretanto, o mesmo grupo de pesquisadores havia publicado, na já mencionada Cureus, um suposto ensaio clínico randomizado utilizando dutasterida em pacientes com COVID-19. O manuscrito reporta exatamente o mesmo número de parecer informado no artigo com proxalutamida publicado na mesma revista. Aparentemente, essa aberrante coincidência escapou aos olhos de revisores e editores.
Para quem ficou confuso, as datas: em 1 de fevereiro de 2021, Cureus publicou um estudo sobre o uso de dutasterida contra COVID-19. Em 22 do mesmo mês, Cureus publicou estudo (do mesmo grupo de pesquisadores, com o mesmo número de parecer de comitê de ética) sobre proxalutamida contra COVID-19. E em 19 de julho o mesmo grupo publicou, em Frontiers, um estudo que supostamente começou testando dutasterida contra COVID-19 e terminou testando proxalutamida. Aqui, ao menos, o número do protocolo de análise ética é diferente.
O ensaio clínico randomizado publicado na Frontiers in Medicine incluiu voluntários previamente saudáveis do sexo masculino portadores de COVID-19 leve[v] e concluiu que a proxalutamida reduziria o risco de hospitalização em fantásticos 91%. Contudo, o processo de recrutamento parece associado a viés de amostragem, de maneira que seguidores do pesquisador principal e indivíduos mais engajados em redes sociais tiveram maior chance de tomar conhecimento do estudo.
A divulgação da pesquisa deixava claro que testes confirmatórios para COVID-19 não seriam fornecidos gratuitamente, então pessoas com menor poder aquisitivo e com doenças crônicas possivelmente não foram adequadamente representadas na amostra. Não surpreende, portanto, que 60% dos participantes do estudo não demonstrassem qualquer limitação nas atividades diárias pela COVID-19[vi], e poderiam ter passado despercebidos e sem o diagnóstico, se não fosse o recrutamento ativo para a pesquisa clínica.
O recurso de amostragem não probabilística, ou de conveniência, é bastante usual, porém deveria ter sido reportado na discussão do artigo justamente porque reduz a validade externa dos resultados: o que pode ser verdade dentro do estudo não necessariamente será na vida real. Apesar da conhecida dificuldade de se conduzir estudos controlados com placebo em contextos de grande comoção, como uma pandemia, os investigadores teriam incluído 268 indivíduos no intervalo de apenas 63 dias, o que é impressionante, sobretudo por terem sido envolvidos apenas dois centros na mesma cidade.
O artigo relatou procedimento de randomização completamente diverso do registrado na Clinical Trials. A estratégia adotada – alternando, a partir da ordem de chegada, cada grupo de 20 pacientes ora para placebo, ora para droga-teste, ao invés de sortear a alocação de cada indivíduo – é extremamente frágil e compromete o sigilo de alocação. Basta o médico que atende os pacientes saber contar até 20 para “adivinhar” em que braço da pesquisa cada um foi alocado.
Assim, o pesquisador pode interferir, conscientemente ou não, tratando indivíduos do braço placebo como mais graves do que os do braço que recebeu a droga em experimentação. Isso é conhecido como viés de seleção. Estudos com sigilo de alocação comprometido não podem ser considerados duplo cegos e tendem a superestimar o tamanho de efeito dos tratamentos. De acordo com o protocolo registrado no Clinical Trials, o patrocinador do estudo estava ciente da alocação dos participantes. Não está claro se o patrocinador referido é a Applied Biology, onde o investigador principal é diretor clínico, ou a Kintor Pharmaceuticals, fabricante da proxalutamida.
Outro resultado que chama muito a atenção é a elevada incidência de hospitalização, de 29%, no grupo placebo, que corresponde a quase o dobro das taxas reportadas para a mediana de faixa etária dos participantes arrolados. Ao mesmo tempo, no braço tratado com proxalutamida praticamente não ocorreram hospitalizações. A incidência de hospitalizações, considerando os dois braços do estudo, é igual à média esperada. Curiosamente, os autores não desconfiaram da mais provável causa para esse fenômeno: viés de seleção ocasionado pela quebra de sigilo de alocação e violação subsequente do cegamento, de tal forma que os pacientes mais graves predominaram maciçamente no grupo placebo.
A avaliação dos desfechos, segundo o artigo, ocorreu através de contatos telefônicos ou reavaliações clínicas nos centros de pesquisa. Os próprios pacientes reportaram seu estado clínico, resultando em imprecisão preocupante, particularmente porque o desfecho primário era uma internação hospitalar. Por exemplo, de que maneira os pesquisadores tomaram conhecimento sobre quais pacientes haviam sido intubados, ou mesmo quando recebiam tratamentos supercomplexos, como oxigenação por membrana extracorpórea?
Identificamos ainda outro artigo na forma de preprint dos mesmos pesquisadores, idêntico ao publicado na Frontiers, exceto pelo período de recrutamento de participantes - de 15 de julho a 1 de dezembro de 2020. Esse intervalo de tempo parece mais factível que o do artigo. Como explicar dois estudos extremamente semelhantes, que dividem a mesma autoria e o mesmo número de parecer de ética, conduzidos previamente à data de aprovação do projeto de pesquisa?
Uma outra publicação, esta apenas com mulheres previamente saudáveis e COVID-19 leve, randomizadas para proxalutamida ou placebo, foi recentemente disponibilizada como preprint. A saga se repete: exatamente o mesmo certificado de ética CAAE[vii] 36703320.8.0000.0023 usado na publicação da Frontiers in Medicine, porém com outro número de parecer, 4513428, igualmente não encontrado na Plataforma Brasil, o que pode indicar um projeto de pesquisa ainda não aprovado ou inexistente.
Mantendo o padrão, a inclusão das voluntárias, de 4 de janeiro a 28 de fevereiro de 2021, foi iniciada e finalizada algumas semanas antes da submissão do registro da pesquisa à Clinical Trials e antes da aprovação pelo CEP. A metodologia do estudo apresentou o mesmo protocolo de alocação, com o mesmo truque que resulta em ausência de sigilo[viii]. Coincidentemente, o estudo demonstrou o novamente espantoso tamanho de efeito do tratamento: 86% de redução na incidência de hospitalização.
Pacientes internados
A publicação de maior notoriedade da proxalutamida provavelmente foi o estudo de intervenção multicêntrico conduzido em pacientes hospitalizados em Manaus, e divulgado apenas sob a forma de preprint. No dia 10 de março de 2021, o grupo de saúde privada amazonense Samel exibiu ao vivo, em seu canal do YouTube, uma apresentação de resultados entre os quais estava a espantosa redução de 92% de mortalidade em pacientes hospitalizados tratados com proxalutamida. A apresentação circulou por WhatsApp, no formato PDF.
O projeto de pesquisa "The Proxa-Rescue AndroCoV Trial"[ix] foi aprovado pela Conep apenas em 6 de maio de 2021. O recrutamento de participantes, todavia, teve início em 1 de fevereiro de 2021, ou seja, uma clara violação à Declaração de Helsinque.
Diferentemente dos demais trabalhos, o registro na base de dados Clinical Trials ocorreu previamente ao seu início, não obstante modificações significativas na descrição do trabalho terem sido realizadas em 15 de junho em 2021, isto é, muito tempo depois da conclusão do estudo.
Uma das alterações foi a adição de pacientes em ventilação mecânica invasiva aos critérios de inclusão, o que também pode ser evidenciado no protocolo anexado à plataforma Clinical Trials[x]. Um achado amplamente questionado foram os 162 óbitos dos 328 indivíduos arrolados no grupo placebo, número considerado acima da média observada para a faixa etária mesmo na Região Norte, na época. O material publicado enfatiza que pacientes críticos teriam sido excluídos da pesquisa. Essa divergência, somada à alta taxa de mortalidade no grupo placebo, sugere que tenha ocorrido uma mudança no critério de inclusão ao longo do estudo, o que invalidaria toda a análise dos dados.
Outra modificação foi que tanto o investigador principal como o avaliador dos desfechos não mais estariam cegados para a alocação dos pacientes, condição que gera percepção de viés.
No início de março, aproximadamente 40 dias do início do estudo, dados de 590 (do total de 645) participantes já estavam disponíveis na divulgação via YouTube. Tendo em vista que o desfecho primário era avaliado após 14 dias de tratamento, esse impressionante número de voluntários teria sido reunido dentro de 26 dias. Isso significa a extraordinária figura de 23 voluntários incluídos em média por dia, sem contar todos aqueles que declinaram a participação em um estudo no qual poderiam ser sorteados para receber placebo, mas estavam apavorados e ansiosos por uma droga que julgavam extremamente promissora.
O protocolo do estudo também é discrepante da publicação final com relação ao número indicado de participantes: o cálculo do tamanho da amostra mostrou que seriam incluídos 294 pacientes[xi], porém na amostra final aparecem mais que o dobro (645 indivíduos). É eticamente inaceitável expor tantas pessoas extras ao placebo, quando poderiam ter se beneficiado de um fármaco supostamente tão eficaz.
Mais confusão: o processo de randomização relatado na publicação final diverge do protocolo do estudo[xii], que descreve uma alocação pré-determinada que alternava entre a droga testada e o placebo a cada 20 voluntários incluídos, à semelhança da publicação na Frontiers in Medicine, já descrita.
Os autores também não explicaram o motivo pelo qual uma dose mais alta de proxalutamida (300mg/dia) foi empregada no ensaio clínico de Manaus, considerando que eles alegaram já terem previamente demonstrado benefício da dose de 200mg/dia em pacientes não hospitalizados. Até junho de 2021, Brasília constava misteriosamente como o único local de condução da pesquisa que, quando foi divulgada, apareceu como tendo sido realizada em Manaus.
Se os estudos reportados estivessem corretos, estaríamos diante de um fármaco milagroso, com efeito próximo a 90%, enquanto a maioria dos medicamentos não tem efeito superior a 20%. Experimentos com fármacos que sugerem benefícios desta magnitude devem ser encarados com extrema cautela pela comunidade científica.
A única evidência para efeitos benéficos da proxalutamida em COVID-19 resulta de um ciclo fechado: um único grupo de pesquisadores, com pouca experiência na área e óbvio conflito de interesses, com base em uma hipótese pré-teste oblíqua elaborada por eles mesmo – a associação entre calvície e gravidade da COVID-19 –, pulou diretamente para os ensaios clínicos de fase III, sem testar sua hipótese em animais, sem conduzir testes de segurança e, até agora, seus resultados não foram reproduzidos por um grupo independente e sem interesses cruzados.
As conclusões foram publicadas na forma de preprints (sem revisão por pares) ou em revistas notórias por revisão por pares pouco rigorosa. Há problemas sérios em relação à confusão de pareceres de comissão de ética e no recrutamento de voluntários que teria ocorrido antes da aprovação das pesquisas pelas instâncias de avaliação ética.
Há problemas em relação à suposta rapidez com que os voluntários foram recrutados. Há problemas metodológicos graves em relação à randomização e ocultação de pacientes em supostos duplo-cegos. Esperamos que os novos estudos clínicos com a proxalutamida para COVID-19, já aprovados pela FDA e Anvisa sejam mais rigorosos, realizados por grupos independentes e sem conflitos de interesse, de forma a esclarecer todas essas questões.
Jose Gallucci Neto é médico, Mestre em Ciências pela FMUSP. Diretor dos Serviço de VEEG e ECT do Instituto de Psiquiatria do HC-FMUSP.
Ana Carolina Peçanha é médica intensivista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, membro do Núcleo de Avaliação de Tecnologias de Saúde. Doutora em Ciências Pneumológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Leandro Tessler é Professor associado do IFGW - Unicamp
NOTAS
[i] CAAE 34110420.2.0000.0008; número de parecer: 4173074. CAAE = Certificado de Apresentação de Apreciação Ética – numeração gerada para identificar o projeto de pesquisa que entra para apreciação ética no CEP
[ii] Por exemplo, o emprego de teste qui-quadrado ao invés do teste exato de Fisher para o desfecho primário e a aberrante comparação de médias de amostras independentes com teste t de Student quando o correto seria utilizar uma análise de sobrevida no desfecho de tempo para melhora de sintomas.
[iii] CAAE 36703320.8.0000.0023, conforme reportado pelo artigo.
[iv] O período de recrutamento informado foi de 21 de outubro a 24 de dezembro de 2020.
[v] Compreendeu os escores 1 e 2 da escala ordinal de 8 pontos de melhora clínica proposta pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
[vi] Conforme a tabela 1, 60% dos indivíduos foram classificados com escore 1 na escala ordinal de 8 pontos de melhora clínica proposta pela Organização Mundial de Saúde.
[vii] CAAE: 36703320.8.0000.0023
[viii] Aqui se transcreve ipsis litteris um excerto ininteligível do artigo: "The randomization plan was based on a 1:2 ratio between active (Arm 1) and placebo (Arm 2) arms due to the uncertain safety profile of proxalutamide in COVID-19 on females. Due to the high efficacy of proxalutamide observed in COVID-19 male outpatients, the distribution of the blocks different from typically expected sizes."
[ix] CAAE 41909121.0.0000.5553; número de parecer: 4690573
[x] Página 20
[xi] Página 26 de https://clinicaltrials.gov/ProvidedDocs/02/NCT04728802/Prot_SAP_001.pdf.
[xii] Página 19 de https://clinicaltrials.gov/ProvidedDocs/02/NCT04728802/Prot_SAP_001.pdf.