Existe um universo paralelo, um mundo de faz-de-conta, em que as vacinas de mRNA para COVID-19 não salvaram o mundo de uma pandemia, mas desencadearam outra: uma onda de mortes súbitas entre pessoas perfeitamente saudáveis, que sucumbiram logo após serem vacinadas. Há algumas semanas, o Senado Federal ofereceu um potente megafone a um grupo internacional de personalidades que insiste que essa fantástica distopia de ficção científica é, de fato, o nosso mundo. Seu principal argumento? Não exista argumento. O que essas pessoas têm são duas armas: a mentira, aliada à capacidade de mentir sem mostrar vergonha; ou a ignorância, aliada à soberba dos ignorantes.
Não há outras palavras, além de mentira ou ignorância, para definir a cadeia de alegações feitas – de que as vacinas de mRNA não protegem contra COVID-19, que não são seguras e que estão causando uma epidemia de mortes. Nenhuma dessas afirmações é verdadeira. Nenhuma delas passa no teste mais comezinho de veracidade, o da correspondência aos fatos. Quem diz essas coisas, portanto, ou desconhece os fatos (e é ignorante) ou está empenhado em falsificá-los (e é mentiroso).
Há dados globais mostrando a efetividade e a segurança das vacinas contra COVID-19 em geral, e dados específicos do CDC, o Centro para Controle de Doenças dos Estados Unidos, sobre a efetividade das vacinas de mRNA em adultos e também crianças. Há estimativas – na casa dos milhões – do número de vidas salvas pela campanha global de vacinação. Ao mesmo tempo, supostos “estudos” que tentaram ligar a vacinação contra COVID-19 a excesso de mortes e outros malefícios mostraram-se repletos de erros e falsificações, foram considerados falhos e indignos de constar na literatura científica.
Para quem prefere dados brutos, o Escritório Nacional de Estatísticas da Inglaterra (país que adotou a vacina de mRNA em dezembro de 2020) produz tabelas comparando as taxas de mortalidade de vacinados para COVID-19 às de não vacinados – e não apenas mortes provocadas pelo SARS-CoV-2, mas também mortes por “outras causas”. Esses números são importantes porque permitem testar as hipóteses de que a vacina não protege contra COVID-19 (nesse caso, as taxas de mortalidade de vacinados e não vacinados deveriam ser iguais ou muito próximas) e de que as vacinas induzem mortes (nesse caso, a taxa de morte por “outras causas” deveria ser maior entre os vacinados).
O que as tabelas dizem? Os números (normalizados por faixa etária) mais recentes, de maio de 2023, mostram que, em termos de mortalidade geral, a taxa entre os ingleses que receberam pelo menos uma dose de vacina é 9% menor do que a dos não vacinados. Já a dos ingleses que receberam quatro doses é 10% menor. No caso de mortes relacionadas à COVID-19, a taxa dos vacinados é 50% (pelo menos uma dose) e 54% (quatro doses) menor do que a dos não vacinados.
E quanto às mortes não relacionadas a COVID-19? A taxa de mortalidade dos vacinados é 6,5% (uma dose) e 8% (quatro doses) menor do que a dos não vacinados – diferença que vai no sentido oposto ao esperado caso a hipótese “vacinas causam mortes súbitas” estivesse correta. No apanhado mês a mês, entre abril de 2021 e maio de 2023, a taxa geral de mortalidade dos não vacinados sempre – sempre – se mostra mais alta do que a dos vacinados.
Paranoia e vaidade
Diante desse quadro de evidências gritantes, como a mentira e a ignorância se mantêm viáveis? Com a promoção da paranoia e do apelo à vaidade, os componentes básicos das teorias de conspiração. Paranoia reduz ou elimina a disposição de aceitar afirmações e explicações que vêm de fontes oficiais. E se todas as autoridades – estatais, empresariais, acadêmicas e científicas – estão mentindo, em quem confiar? Vaidade fornece a resposta: em si mesmo!
Como parte desse movimento, o mentiroso ou ignorante executa a manobra retórica de forçar uma identificação emocional entre sua pessoa e o público; assim, confiar no falso especialista ou “em si mesmo” passa a ser uma coisa só.
Pelo menos um dos “especialistas” privilegiados com o megafone do Senado Federal afirmou, explicitamente, que a literatura científica não merece confiança (porque estaria “corrompida pela Big Pharma”) e, portanto, só o que resta aos profissionais de Medicina e à população é confiar naquilo que veem ao seu redor, “com os próprios olhos”. Com o campo de visão já devidamente enviesado e delimitado pelo discurso catastrófico da fantasia antivacinas, não é difícil adivinhar qual a imagem que aparece.
Dos componentes dessa fórmula da mentira, a vaidade talvez seja o mais subestimado por comentaristas e analistas, que talvez sintam desconforto em atribuir fenômenos sociais complexos a causas que podem ser vistas como meras falhas individuais de caráter. Mas vaidade não é apenas um problema individual, uma faceta do pecado capital do orgulho; é uma característica humana da qual ninguém escapa por completo, e que por isso mesmo se presta muito facilmente à captura, amplificação e eventual manipulação.
Há a vaidade do “pensador independente”, que passa a enxergar motivos para se sentir mais inteligente e bem-informado do que os vizinhos que insistem em acatar os dados oficiais e os resultados da ciência “vendida”; e há a do conformista que, uma vez inserido numa subcultura já tomada pela paranoia, teme ser visto como ignorante, tolo ou ingênuo pelos pares. Há a vaidade do profissional de saúde, incentivado a crer que sua argúcia pessoal revela verdades sutis e profundas, realidades que escapam dos grandes agregados estatísticos ou dos resultados de testes clínicos bem conduzidos.
Essa confluência entre desconfiança irrefletida, soberba pessoal e espírito de grupo não é exclusiva do movimento antivacina. Com componentes que variam caso a caso, a mesma estrutura pode ser identificada na defesa e na promoção da cloroquina para tratar COVID-19 e da fosfoetanolamina para câncer. Reconhecer sua universalidade ajuda também a explicar o prestígio social e cultural da homeopatia e da psicanálise no Brasil.
Populismo romântico
A epistemologia da vaidade é viabilizada por uma narrativa cultural muito antiga, mas tão fantasiosa quanto o faz-de-conta do imunizante assassino: a jornada do herói da subjetividade, que se insurge contra a tirania do racionalismo estéril.
Nesse roteiro, a Humanidade está prestes a se transformar numa horda de invertebrados frios e sem emoção, incapazes de enxergar qualquer coisa que não possa ser expressa por meio de números, gráficos e tabelas. A emoção, a intuição, a música, o pulso, o tesão, a alma, a experiência direta da realidade encontram-se ameaçados pelos tecnocratas, pelos “cabeças de planilha”, pelos catadores de nota de rodapé, cheios de agudo cinismo na cabeça e de linfa gelada nas veias.
Trata-se, claro, de um conto de fadas. Nenhuma sociedade humana jamais se aproximou de uma organização racional, muito menos da tão ameaçadora “racionalidade fria”, mesmo supondo que “racionalidade fria” seja um conceito coerente, do que duvido (sem valores, aspirações e desejos para informar prioridades e formar premissas, a razão gira em falso e nada produz). Pelo contrário, trata-se de uma acusação-espantalho que diferentes modelos de sociedade lançam sobre seus adversários – a esquerda denunciando a “lógica desumanizante do capital”, a direita, “a lógica desumanizante do Estado”, por exemplo.
O fantasma imaginário da ditadura iminente-que-nunca-chega da razão impenitente enquadra o apelo à vaidade, a aceitação acrítica do subjetivo e do irracional, como formas nobres de “resistência”. O que, a rigor, não passa de capitulação e abdicação das faculdades mais distintivas do ser humano ganha ares de heroísmo em nome da Humanidade. Não são só os movimentos explicitamente anticiência e o circo antivacinas que se aproveitam disso. À fábrica da mentira não faltam clientes.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)