Um negacionista é aquele que cria uma dúvida intencional sobre teorias e práticas científicas, ignorando ou relativizando as evidências confiáveis disponíveis na literatura. Essa postura se tornou frequente durante a pandemia da COVID-19, com grupos bolsonaristas que negavam a gravidade da doença, espalhavam fake news sobre as vacinas e defendiam tratamentos precoces sem comprovação científica de eficácia, como a cloroquina e a ivermectina.
Psicólogos, filósofos, sociólogos, médicos e outros acadêmicos têm voltado fortes críticas a estes grupos por suas posições contrárias às evidências científicas. Mas algo que poucos estão a se questionar é: será que eles têm tido igual preocupação com o negacionismo em suas próprias áreas?
Longe de sermos exaustivos, podemos separar o negacionismo nas universidades em dois blocos: (1) correntes pós-modernas e decoloniais que se pautam em visões relativistas e pensamentos anticientíficos, visando a desconstrução da “ciência branca, positivista, dominadora e ocidentalizada”. Seus proponentes inspiram-se em autores como Michel Foucault (1926-1984), Jacques Derrida (1930-2004) e Walter Mingnolo. E (2) práticas e teorias pseudocientíficas que se vendem como sendo tão confiáveis quanto a ciência, mas que não são de fato baseadas em boas evidências. Aqui podemos citar como exemplo a psicanálise, tendo como seu fundador Sigmund Freud (1856-1939) , e contando com o desenvolvimento de outros como Jacques Lacan (1901-1981) e Melanie Klein (1882-1960).
O filósofo Lee McIntryre, em “Post-Truth”, argumenta sobre a forte relação entre as posturas pós-modernistas e o negacionismo conservador. O próprio autor apresenta duas caraterísticas que são latentes à corrente: a ideia de que não há verdade objetiva, e que qualquer declaração de verdade é meramente reflexo da agenda política de seu enunciador. Para o pós-moderno, o que faz com que adotemos uma teoria ao invés de outra não são realmente as evidências, mas sim o poder de um certo grupo dominante. Assumir que uma perspectiva é verdadeira e outras são falsas nada mais é do que uma reivindicação pelo poder. É querer colocar sua visão como sendo superior a outras que são, em tese, tão legítimas quanto a sua. A própria ideia de adotar práticas baseadas em evidências como parâmetro adequado de produção de conhecimento já partiria de uma visão ocidentalizada e, portanto, deveria ser questionada.
Psicanálise e Negacionismo
Esse raciocínio poderia ser aplicado para a ciência: se o discurso pós-modernista e decolonial procede, por que seria legítimo a ciência delimitar que os que são a favor do uso da cloroquina e da ivermectina — que não possuem respaldo de boas evidências — estão errados, enquanto a vacinação seria o caminho correto? Isso também não seria uma postura opressora contra a multiplicidade de perspectivas e saberes? Parece que, consistentemente, esses grupos acadêmicos estão muito mais próximos do discurso conservador anti-vacina e negacionista do que do discurso pró-ciência.
Vemos isso no artigo “Bendita Seja a Ciência Branca”, de Everton Silva. Ele afirma que “advogar em defesa da bendita ciência ocidental, atribuindo-lhe uma universalidade epistêmica, é legitimar todo um processo de invisibilização, pautado no racismo e no embranquecimento dos saberes”. Já Sandra Harding em “The science question in feminism”, defende que a linguagem da investigação científica é irremediavelmente sexista e com natureza exploradora, chegando até mesmo afirmar que o livro “Principia Mathematica” do físico Isaac Newton era um “manual de estupro”.
A psicanálise também possui problemas graves em suas bases de fundamentação. A maioria dos psicanalistas assume, nos dias de hoje, o pressuposto de que a subjetividade humana está acima de todas as possibilidades de análise científica. Assim, uma discussão sobre se suas intervenções terapêuticas são eficazes ou não é colocada fora de questão. Quando há uma tentativa de buscar respostas científicas sobre sua eficácia, rapidamente surgem acusações de se estar aderindo a uma suposta “ciência positivista”, de se estar realizando práticas biotecnicistas, e também apagando a individualidade das pessoas, tratando humanos como coisas.
Os movimentos da área da saúde que procuram realizar intervenções bem embasadas, que buscam provas de eficácia antes de tentar tratar alguém que possui algum adoecimento, são atacados. Assim, com a desmoralização de práticas baseadas em evidências como sendo “redutoras” e até mesmo “antiéticas”, os tratamentos psicanalíticos — mesmo quando seus praticantes se negam a fornecer evidências de bons resultados — podem ser endossados e mantidos.
Neste ano foi possível ver um posicionamento favorável do Conselho Federal de Psicologia a favor da vacinação, o que é uma postura benéfica em termos de zelo pela saúde pública. Entretanto, ao mesmo tempo, também há a ampla aceitação de abordagens psicológicas sem embasamento científico como legítimas escolhas abertas aos psicólogos. Usamos como exemplo a psicanálise, que é muito popular no Brasil, mesmo que não possua boas evidências a favor de quase nenhum de seus pressupostos teóricos, como argumenta Joel Paris em seu livro “An Evidence-Based Critique of Contemporary Psychoanalysis”.
Mesmo nos casos de exceção, quando pesquisadores decidiram ir contra a forte resistência ao teste próprio da comunidade psicanalítica e publicaram aquele que é um dos estudos de maior impacto sobre a terapia, o artigo acabou por falhar em todos os critérios de qualidade estipulados para tais investigações, como mostraram Littel e Sholky em “Making Sense of Meta-Analysis: A Critique of ‘Effectiveness of Long-Term Psychodynamic Psychotherapy’”. Isto torna a postura incongruente: qual seria a razoabilidade de se posicionar contra os negacionistas em uma área externa, como a médica, mas aceitar aqueles que estão inseridos no seu próprio meio?
Estas críticas não dizem respeito aos campos da medicina, filosofia, sociologia, psicologia, ou outros, em sua totalidade. É possível realizar investigações científicas rigorosas em todos estes, e existem profissionais que buscam o embasamento de boas evidências para escolher seus procedimentos de intervenção e as teorias que adotam. O que queremos apontar é que este nem sempre é o caso: temos neste momento um problema grave com o negacionismo na pandemia, mas ele está longe de se circunscrever a isto.
Não é apenas quando se trata da COVID-19 que precisamos ser responsáveis e buscar o conhecimento científico, porque não é coerente sermos contra o negacionismo apenas quando nos convém. Ainda assim, esta parece ser a postura adotada pelos pós-modernos, pelos psicanalistas, e outros. Está na hora de começar a reconhecer e superar estes conflitos de interesse, porque é só assim que um real respeito à sociedade que procura estes profissionais poderá ocorrer. Fora disto, a venda de muitas cloroquinas e ivermectinas para a população continuará, só que em novas versões, com outros nomes e formas, para além da área médica.
Clarice de Medeiros Chaves Ferreira é graduanda em Psicologia na Universidade FUMEC. Realiza Iniciação Científica no LINC-UFMG (Laboratório de Investigações em Neurociência Clínica da Universidade Federal de Minas Gerais), e é integrante do grupo de pesquisas SAMBE (Saúde Mental Baseada em Evidências). Criadora do canal no Youtube de divulgação científica "Psicolosofia", que aborda temas relacionados a psicologia baseada em evidências, filosofia analítica e metodologia científica. Coautora dos ebooks “Medidas Cienciométricas: O que são, para que servem e para que não servem?” e “Como saber se uma prática é ‘baseada em evidências’”.
Vitor Douglas de Andrade é graduando em Filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto. Professor de Filosofia e Sociologia. Bolsista de Iniciação Científica de Apoio à Difusão do Conhecimento CNPq – Nível 1A, e integrante do grupo de pesquisas SAMBE (Saúde Mental Baseada em Evidências). Criador do canal no Youtube de divulgação científica “Implicações Filosóficas”, que aborda temas de filosofia com impacto prático para as ciências e sociedade, através da abordagem da filosofia analítica