
No mês passado, o conselho universitário da Unicamp aprovou por unanimidade a adoção de cotas, na modalidade Enem, para ingresso de pessoas que se autodeclaram trans, travestis ou não binárias. A USP, em maio de 2022, criou a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento, e a Unesp deu início à implantação da Pró-Reitoria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade. As iniciativas das três universidades estaduais paulistas mostram que, além da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão – princípio estabelecido na Constituição de 1988 –, a Academia está incluindo explicitamente a justiça social como uma de suas atividades-fim.
Questionamentos sobre a unanimidade das votações nos principais colegiados universitários e a alertas sobre a ausência de dissensos mostram que nem todos os acadêmicos se alinharam à militância que, em geral, a população associa à Academia. Pode-se, inclusive, conjecturar que o silêncio de boa parte da universidade – que se autocensura por medo de cancelamento – decorre da existência de grupos com visões de universidade que não se intersectam. Como observa Marcos Nobre, professor de filosofia da Unicamp: “são dois campos diferentes, sem um terreno comum a partir do qual se polariza. Há uma divisão sobre como deve ser o futuro; são duas concepções incompatíveis”.
Desde a adoção obsessiva dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) – suficientemente flexíveis para abrigar quase qualquer projeto imaginável –, passando pelas pautas identitárias e descendo até preocupações de ordem individual, universidades públicas vêm destinando recursos para tentar resolver problemas que, classicamente, seriam da alçada de governos, hospitais, organizações religiosas e ONGs, sem obter impacto comparável ao desses setores especializados.
Chamar para si a salvação do mundo como atividade-fim abre flancos para ataques que poderiam ser evitados se a universidade se mantivesse fiel à sua função primordial: ser a melhor fonte de conhecimento, formação de capital humano e geração de ideias inovadoras, que podem ser assimilados pela sociedade e empregados por empresas, governos e outros setores na solução dos mais diversos problemas.
Afastar-se dos assuntos eminentemente acadêmicos para ingressar no terreno das paixões políticas é optar por um caminho em que a intelectualidade é frequentemente descartada. Entre os efeitos secundários desse movimento estão a diluição da atividade principal em meio a ações pouco objetivas, e o rebaixamento do conhecimento científico ao nível da opinião pessoal.
Esse deslocamento impacta diretamente a percepção dos jovens e do mercado sobre a universidade – um efeito catalisado ainda pela expansão da oferta de cursos de ensino superior, especialmente na modalidade a distância, o que intensifica a concorrência no setor. Matéria da Fortune reproduzida no Estadão mostra que instituições e empresas têm atribuído cada vez menos valor ao diploma universitário: 52% das vagas publicadas na plataforma Indeed, um dos principais sites mundiais de empregos online, não exigem formação acadêmica.
Frente à limitação de recursos como dinheiro e tempo, a resposta para a definição da identidade da universidade e para a recuperação do valor de um diploma não está em atuar em muitas frentes, mas apenas garantir que a Academia seja uma curadora criteriosa dos profissionais e das ideias que dela saem.
O documentário Jiro Dreams of Sushi conta a história do chef Jiro Ono, proprietário do restaurante Sukiyabashi Jiro, que chegou a conquistar três estrelas – a pontuação máxima – no prestigiado Guia Michelin, preparando exclusivamente sushi em um cardápio fixo escolhido por ele. O filme apresenta o conceito japonês de shokunin, que expressa o comprometimento vitalício com a excelência na prática de uma arte ou profissão. Guardadas as devidas proporções, as universidades não fariam mal em se inspirar nessa filosofia.
Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência