Circo antivacina toma conta do Senado

Artigo
1 mar 2024
Autor
Congresso

 

O plenário do Senado foi transformado no palco (ou será picadeiro?) de um circo antivacina na última segunda-feira, 26 de fevereiro. Requerida, presidida e organizada por dois legisladores da Casa que ganharam notoriedade em 2021 pela atuação negacionista durante a CPI da Pandemia de COVID-19 - a quem não vou dar mais palco (ou picadeiro?) citando seus nomes aqui -, a "sessão de debates temáticos" teve como justificativa discutir a inclusão da vacina pediátrica contra a doença no Programa Nacional de Imunizações (PNI), mas se resumiu a disseminar desinformação e mentiras comuns sobre o tema que agora, infelizmente, estão eternizadas nos anais do Congresso Nacional.

Seria cômico, não fosse um espetáculo trágico, com a cúpula convexa do Senado como "tenda". Logo depois de invocar Deus na abertura dos trabalhos, o mestre de cerimônias - quer dizer, presidente da sessão - já deu uma ideia do que viria com o que só pode ser descrito, de modo gentil, como uma meia-verdade. Em tom jubiloso - e clara tentativa de conferir legitimidade ao evento -, ele afirmou que a realização da sessão teria sido aprovada "por unanimidade" pelos senadores brasileiros.

Como diz o ditado, porém, o diabo está nos detalhes. A realidade é que o requerimento 1046/2023, assinado por ele e quatro colegas, foi inserido como "item extrapauta" literalmente nos dois minutos finais da agenda da 180ª sessão deliberativa ordinária do Senado, em 28 de novembro de 2023, pelo senador Weverton Rocha (PDT-MA), segundo secretário da mesa da Casa que naquele momento atuava como presidente da referida sessão. Weverton então abriu votação simbólica, que em questão de segundos transcorreu assim (conforme registra o Diário do Senado daquela data):

 

"Votação do requerimento.

Os senadores e as senadoras que o aprovam permaneçam como se encontram.

(Pausa)

Aprovado o requerimento.

A sessão requerida será agendada pela Secretaria-Geral da Mesa".

 

Ou seja: não houve uma votação em si, sequer contagem de votos, para que alguém possa em qualquer caso afirmar que a apresentação do circo antivacina - quer dizer, a realização da "sessão de debates temáticos" - tenha sido aprovada por unanimidade pelos senadores brasileiros. Tampouco fazê-lo em tom jubiloso e desafiador, o que o presidente da sessão repetiria poucos minutos depois.

Mas o "espetáculo" tem que continuar. Ainda na abertura da sessão, o senador presidindo os trabalhos prometeu um debate "científico", "técnico", que deixaria "qualquer tipo de ideologia ou questão de ordem política de lado". Tudo isso só para se contradizer logo depois com uma crítica aberta à inclusão da vacina pediátrica da COVID-19 no PNI, fato que classificou como "grave". Situação que seguiu na leitura dos convidados a palestrar no evento: entre nomes brasileiros e estrangeiros - aos quais também vou tentar ao máximo evitar dar palco (ou picadeiro?) -, absolutamente TODOS ativistas antivacina.

Antes deles entrarem em cena, no entanto, o presidente da sessão solicitou a exibição de um vídeo com depoimentos de supostas vítimas e familiares de supostas vítimas de reações adversas às vacinas da COVID-19 no Brasil. O apelo emocional é uma tática comum dos propagadores de desinformação, e a exploração da tragédia dos raros casos reais de mortes e outros eventos graves possivelmente associados à vacinação é uma arma frequente dos movimentos antivacina.

A realidade, porém, é que de acordo com o último boletim epidemiológico da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde sobre o assunto, de junho de 2023, até então o Brasil havia registrado apenas 50 óbitos que tiveram uma "relação causal considerada como consistente com a vacinação" (nível A) em um universo de quase 385 milhões de doses aplicadas em todo país, com exceção do estado de São Paulo, desde janeiro de 2021, início da vacinação, até março de 2023. Detalhe: nenhuma destas mortes com mais alta probabilidade de causalidade com a vacinação foi de crianças ou adolescentes, com apenas um caso de óbito por miocardite classificado como "B2": "indeterminado" porque "os dados da investigação são conflitantes em relação à causalidade".

Já o mais recente Boletim Epidemiológico Especial da COVID-19 publicado pelo Ministério da Saúde, em dezembro de 2023, registra 211 mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave (Srag) associada à COVID-19 na população brasileira entre zero e 19 anos apenas no ano passado, mais da metade (112) em bebês com menos de um ano, e outras 59 em crianças com um a 11 anos de idade. Somando às 3.562 mortes registradas de 2020 a 2022, são quase 4 mil vítimas fatais da COVID-19 nesta faixa etária até o fim de 2023.

Além disso, o mesmo boletim aponta o registro de 2.121 casos de Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P) associada à doença ao longo de toda a pandemia, com 144 mortes, com um número não especificado de ocorrências suspeitas ainda em investigação. Não é coincidência o fato de que o número de casos registrados de SIM-P relacionada à COVID-19 caiu drasticamente com o início da vacinação da população brasileira de 5 a 11 anos, em janeiro de 2022, saindo de 868 em 2021 para 442 naquele ano e apenas 68 no ano passado.

Já entre toda população brasileira, o último boletim contabiliza mais de 38,2 milhões de casos de COVID-19 e 708.638 mortes atribuídas à doença de fevereiro de 2020 até dezembro de 2023. E, novamente, os números mostram a importância da vacinação, saindo do pico de 424.107 mortes em 2021 - a maior parte nos primeiros meses do ano, quando ela mal havia começado - para 74.797 em 2022 e 14.785 no ano passado.

Todos esses números confirmam que as vacinas contra COVID-19 aprovadas e aplicadas no Brasil são seguras e eficazes, e que os eventuais riscos trazidos pela vacinação são muito menores aos sofridos por quem decide encarar a doença sem a proteção do imunizante: vamos lembrar que as mortes que talvez possam ser atribuídas à vacina não passam de 50, enquanto que as morres por COVID-19, antes de haver vacinas disponíveis, eram da ordem das centenas de milhares, número que caiu drasticamente depois dos imunizantes terem se disseminado. 

 

Falta ciência, sobra desinformação

Nenhum destes fatos e dados, no entanto, deu as caras no picadeiro - digo, plenário - do Senado. Nem, claro, a ciência e imparcialidade prometidas pelo senador presidente no início da sessão. No geral, o que se viu foi a repetição e recirculação de tópicos típicos da desinformação antivacina na forma de meias verdades, afirmações sem fundamento, declarações exageradas e totais mentiras.

Coisas como que crianças não sofrem com doença grave e morte com a COVID-19, e por isso os riscos da vacinação não superam os benefícios - o que os números citados acima deixam claro que não é verdade -; que as vacinas são desnecessárias porque existe um "tratamento precoce" da COVID-19 em coquetéis que incluem remédios como cloroquina ou ivermectina - hipótese totalmente rechaçada pela ciência ainda em 2020 -; que as vacinas são ineficientes, não prevenindo hospitalização ou mortes - afirmação negada pelos números -; ou que as vacinas, especialmente as que envolvem o mecanismo de RNA mensageiro (mRNA), estão provocando uma onda de mortes súbitas de pessoas relativamente jovens - mais uma declaração desconectada dos dados.

E aqui vou abrir uma exceção à minha intenção de não dar mais palco para os negacionistas antivacina, apenas para ilustrar o (baixo) nível do pretenso "debate". Logo o primeiro convidado a fazer sua palestra, o médico americano Peter McCullough foi louvado pelo senador então presidente da sessão como um pesquisador de renome, altamente citado, criador de protocolo de "tratamento precoce" da COVID-19 e um especialista sobre riscos de vacinas. Esqueceu ele de mencionar que ainda em 2022 McCullough teve cassada a certificação da Câmara Americana de Medicina Interna justamente por suas muitas declarações e posicionamentos anticientíficos.

Seu maior feito, no entanto, talvez seja ter visto recentemente um artigo liderado por ele retratado, isto é, removido da literatura científica, pelo periódico Cureus. Explico a proeza, realmente digna de um circo como o armado no Senado: até pouco tempo atrás uma revista científica de publicação independente, a Cureus é conhecida no meio acadêmico pela frouxidão de seus padrões editoriais e por aceitar trabalhos de qualidade tão baixa que jamais seriam publicados em periódicos sérios. Um "periódico predatório", por assim dizer.

A marca foi adquirida recentemente pelo grupo editorial Springer Nature, no entanto, e isso parece estar, aos poucos, mudando. Alertados por pesquisadores também americanos dos muitos problemas do texto - entre eles "a falta de qualificação profissional relevante dos autores", egressos da "Universidade do Google", para fazer as afirmações nele contidas, "alegações regurgitadas sobre as vacinas de mRNA que circulam na internet e já foram desmascaradas repetidamente" - a editora e o editor-chefe da publicação decidiram pela retratação do artigo.

Mas o "feito" de McCullough não é inédito. Em 2022, um conhecido médico negacionista brasileiro já havia realizado a proeza com a retratação pela Cureus de um suposto estudo liderado por ele sobre o uso de ivermectina na prevenção e tratamento da COVID-19 no município catarinense de Itajaí. Médico este que também marcou presença no circo antivacina no Senado, mas apenas como plateia.

É entristecedor e revoltante ver estruturas públicas, construídas e mantidas com o dinheiro do povo brasileiro, sendo usadas para sediar quase oito horas de tão deprimente espetáculo. Um desserviço que o Congresso Nacional, na figura dos parlamentares das duas Casas que promoveram e participaram do evento, (mal) prestaram à Nação.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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