Nos séculos 17 e 18, a marinha real inglesa realizava grandes navegações pelo mundo. Essas navegações eram perigosas, e ocorriam com grande custo humano, pois as pessoas facilmente sucumbiam a acidentes, fome e doenças. Uma das várias doenças que apareciam nessas navegações era o escorbuto, que promove perda de integridade de pele e mucosas, como da boca e nariz. Os sintomas incluem pele quebradiça, dificuldade de cicatrização de feridas, gengivas infamadas e sangramentos nasais.
Fato é que as dietas de marinheiros eram muito pobres em variedade, e as suas viagens perduravam por meses. A desnutrição pela baixa variedade era a causa do escorbuto, que sabemos hoje ser relacionado à falta de vitamina C na dieta. A vitamina C é uma molécula presente em vários vegetais e frutas, e especialmente abundante em frutas cítricas, como limão e laranja. Vitaminas são moléculas que nós, humanos, não somos capazes de sintetizar, mas precisamos para o funcionamento dos nossos corpos. A vitamina C é necessária para sintetizarmos colágeno, uma proteína essencial para manutenção da integridade da pele e mucosas. Portanto os marinheiros, com falta de vitamina C, tinham colágeno deficiente, e desenvolviam escorbuto.
No século 17, não se sabia nada sobre vitaminas, colágeno e as causas do escorbuto. Apenas se sabia, por observação, que marinheiros que consumiam geleias de frutas cítricas (uma forma de preservar a fruta para viagens) não desenvolviam escorbuto. Com base nesse conhecimento popular, um médico escocês do século 18, James Lind, resolveu estudar o escorbuto de maneira mais precisa, e criou o que hoje é reconhecido como o primeiro ensaio clínico para estudo de efeitos de medicações em doenças.
James Lind suspeitava que o efeito da geleia de frutas cítricas estava ligado ao seu caráter ácido, que de alguma maneira evitava o escorbuto. Então dividiu marinheiros saindo ao mar em grupos, dando a eles diferentes preparações ácidas, incluindo ácidos de frutas cítricas, vinagre e até vitríolo (ácido sulfúrico diluído), para ver os efeitos no escorbuto.
Ele verificou que somente o grupo que recebeu suplementos cítricos não desenvolveu a doença, concluindo que sua hipótese inicial estava errada, e que o escorbuto estava associado a algo em frutas cítricas, e não à falta generalizada de produtos ácidos. Após algumas décadas, a difusão do conhecimento de Lind (a informação na época eram transmitida de forma bem mais lenta do que hoje), produtos contendo frutas cítricas passaram a ser usados mundialmente em grandes navegações, prevenindo o escorbuto. Hoje, fora pessoas com dietas muito pobres em frutas e verduras, o escorbuto é felizmente raro.
O que James Lind fez para investigar a relação entre um tratamento e uma doença continua sendo feito até hoje, com, é claro, refinamentos baseados em novos conhecimentos. Quando queremos entender se uma nova medicação funciona para uma doença, dividimos pacientes em grupos de pessoas que recebem ou não essa medicação, e avaliamos os efeitos dela – isso se chama um ensaio clínico. Fazemos isso de modo muito, muito mais refinado que os estudos iniciais de Lind, porque aprendemos com o tempo.
Primeiro, os pacientes são escolhidos e selecionados para os diferentes grupos de forma aleatória, mantendo a maior semelhança possível entre os grupos. Isso evita que os grupos com diferentes tratamentos tenham pontos de partida muito diferentes, em termos de gravidade da doença, idade dos participantes e outros fatores.
Esses estudos também têm que passar por avaliações éticas, que evitam darmos produtos reconhecidamente tóxicos, ou fazer tratamentos sabidamente piores que os disponíveis no momento. Descobrimos que existe o efeito placebo, ou a melhora de pessoas só por tomar algo, sem nenhum valor medicinal, então incluímos placebos como controles, e evitamos que os grupos saibam se estão tomando o medicamento ou o placebo.
Descobrimos que profissionais de saúde que avaliam o progresso dos pacientes são sugestionáveis, portanto criamos ensaios clínicos duplo-cegos, em que nem o paciente nem o profissional que o examina sabem o grupo em que está. Por fim, percebemos que humanos são diferentes em regiões distintas do mundo, e que efeitos notados em grupos pequenos às vezes não são substanciais, quando reavaliados em grupos maiores. Criamos então a meta-análise, ou estudos de estudos científicos, para termos melhor certeza dos dados.
É essa a estrutura atual em que se desenvolve medicamentos: ensaios clínicos randomizados, controlados com placebo, duplo-cegos, e testados em diferentes centros e por diferentes grupos através de meta-análises. Tudo isso, claramente, envolve muita gente, trabalho e cuidado. Esse trabalho e cuidado, aliás, vem bem antes do ensaio clínico, pois para desenvolver novos potenciais medicamentos são necessários muitos estudos de ciência básica(veja o exemplo da insulina aqui).
Assim, da próxima vez que você fizer uso de um medicamento alopático (os únicos amplamente testados dessa maneira, portanto os únicos confiáveis), lembre-se de que seu uso foi amplamente substanciado através do trabalho de uma equipe enorme de profissionais dedicados, em benefício da sua saúde!
Alicia Kowaltowski é professora de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo