Como a ciência descobriu a insulina

Artigo
21 abr 2019
Ampolas de insulina

Em janeiro de 1922, um rapaz diabético de 14 anos chamado Leonard Thompson estava internado, em coma, no hospital da Universidade de Toronto, Canadá. Como qualquer outra criança ou adolescente que desenvolvesse diabetes tipo I na época, tinha perdido peso gradativamente, depois a consciência, e esperava-se que morresse em poucos dias.

Um grupo de pesquisadores então lhe deu uma injeção de um preparado altamente experimental, nunca antes usado em humanos, contendo um macerado de pâncreas animal. Para a alegria de todos os presentes, Leonard melhorou, saiu do coma e os níveis altíssimos de glicose no seu sangue, típicos de diabéticos, se reduziram.

 Antes de janeiro de 1922, todos os jovens diabéticos morriam da doença, perdendo peso e desenvolvendo acúmulo de moléculas chamadas cetonas no corpo, o que leva ao coma e morte. A partir de janeiro de 1922, havia como tratar diabéticos, com preparados contendo justamente a molécula que lhes falta: a insulina.

Para chegar ao momento em que puderam tratar a diabetes com um preparado de insulina, os pesquisadores precisaram se basear em várias décadas de conhecimento acumulado por outros cientistas. Estudos começaram em 1869, quando o anatomista alemão Paul Langerhans descreveu a anatomia do pâncreas, um órgão, em forma de língua, que fica do lado esquerdo e superior do abdômen humano. Ele notou que o pâncreas tinha aglomerados de células, como se fossem ilhas, e as denominou ilhotas pancreáticas. Nesse momento, soube-se que as ilhotas pancreáticas existiam, mas não o que faziam. Descrever a anatomia de um órgão é ciência básica, e ninguém poderia, nesse ponto, suspeitar de uma ligação entre pâncreas e diabetes.

Em 1889, Joseph von Mering e Oskar Minkowski descreveram a função do pâncreas usando uma técnica que pode parecer radical hoje, mas foi como a função de muitos órgãos acabou sendo descoberta: removendo o pâncreas de um cachorro, tomando cuidado para manter o animal vivo e acompanhando as consequências.

Notaram que o cão desenvolvia os mesmos sintomas que crianças diabéticas: perdia peso, tinha muita sede, altos níveis de glicose no sangue e urina. Gradativamente, desenvolveu acúmulo de cetonas, coma e morreu. Soube-se então que o pâncreas continha algo que, quando retirado, causava diabetes.

Mais estudos em cães comprovaram que o que faltava do diabético vinha das ilhotas pancreáticas: remover só as ilhotas, preservando o restante do órgão, ainda causava diabetes. A partir desse conhecimento, começou-se a imaginar a possibilidade de tratar um paciente diabético com material de ilhotas de pâncreas de animais. Foi justamente essa ideia que levou o jovem cirurgião Frederick Banting a procurar o reconhecido cientista John Macleod na Universidade de Toronto no final de 1920.

Macleod, diz-se, não tinha muita confiança no plano ousado de Banting (a ideia não era original – já havia sido testada, sem funcionar), mas mesmo assim deu a ele uma chance, com lugar no laboratório, cães experimentais e um auxiliar.

Charles Best foi o assistente apontado para o projeto, e não poderia ter sido pessoa melhor, pois tinha excelente técnica, essencial para tal projeto. A dificuldade para o isolamento de substâncias funcionais do pâncreas era enorme, porque sabemos hoje que o fator que trata a diabetes, a insulina, é uma proteína, que fica apenas nas ilhotas pancreáticas. O restante do pâncreas, por outro lado, é cheio de enzimas que auxiliam na digestão, incluindo proteases, moléculas que quebram proteínas. Várias tentativas foram feitas, durante 1921, até que finalmente conseguiram um extrato de ilhotas pancreáticas capaz de melhorar dramaticamente a diabetes provocada por remover o pâncreas de um outro cão. Havia esperança!

A equipe, agora acrescida do bioquímico James Collip, continuou aperfeiçoando suas técnicas até que, no início de 1922, houve o primeiro teste com paciente humano, que foi seguido de vários outros tratamentos de jovens. Logo se espalhou pelo mundo que o grupo de Toronto tinha um tratamento para uma doença antes fatal. O tratamento era tão eficaz que foi reconhecido com o Prêmio Nobel em 1923, quando extratos de pâncreas (agora, principalmente, de porco e boi) já estavam disponíveis comercialmente, e médicos da Universidade de Toronto treinavam outros profissionais no tratamento da doença. Foi uma das transferências mais rápidas entre ciência experimental e tratamento de pacientes da história.

Mas os progressos da ciência e do tratamento da diabetes não pararam por aí. Nos anos subsequentes, testes com os extratos de pâncreas indicaram que o fator ativo contra diabetes era uma pequena proteína, a insulina, e estudar essa proteína se tornou prioridade para muitos pesquisadores.

Nos anos 50, Frederick Sanger conseguiu desvendar a estrutura química da insulina, identificando cada um dos aminoácidos que, em sequência, a compõem (proteínas são moléculas feitas de unidades menores, chamadas de aminoácidos). Foi a primeira vez que se conheceu a estrutura química de uma proteína, feito que levou ao Prêmio Nobel de 1959. Outra laureada com Prêmio Nobel, Dorothy Hodgkin, descreveu em em 1969 a estrutura tridimensional da insulina, ou como a molécula se dobra no espaço, abrindo toda uma área de pesquisa em que se usa difração de raios X para determinar a estrutura de proteínas.

Entra a genética

Em paralelo aos estudos com a estrutura da insulina, avançava também o conhecimento sobre a estrutura do DNA, e como ele contém a informação necessária para produzir proteínas.

Descobriu-se que os mecanismos para produzir proteínas são praticamente idênticos em todos os seres vivos, de bactérias a humanos. Com esse conhecimento, nos anos 70 começou-se a imaginar a possibilidade de se fazer bactérias contendo pedaços de DNA que as levassem a sintetizar proteínas de interesse para nós humanos – as chamadas bactérias recombinantes.

A ideia era revolucionária na época, e levou a várias discussões éticas entre cientistas, que estabeleceram parâmetros aceitáveis para se alterar organismos geneticamente. Apesar desses controles, havia a compreensão de que alterar bactérias para produzir proteínas era um passo muito importante para o tratamento de doenças causadas pela ausência de certas proteínas, como diabetes.

Naquela época, eram usadas toneladas de pâncreas animais para produzir apenas alguns gramas de insulina, e se suspeitava que logo não haveria mais como manter a produção necessária, considerando o aumento da procura pelo medicamento.

Bactérias que produziam insulina foram criadas por cientistas no final dos anos 70, e a insulina recombinante recebeu autorização para ser usada em humanos a partir do início dos anos 80. Hoje, é praticamente a única insulina usada, não só por evitar a necessidade de imensas quantidades de pâncreas animais (e possíveis contaminações que trazem), mas também porque essas bactérias recombinantes produzem insulina humana, idêntica à nossa, enquanto porcos e bois possuem alguns aminoácidos diferentes em sua insulina, podendo gerar rejeição pelo paciente.

A tecnologia recombinante é hoje usada para tratar muitas outras doenças, e também para vários outros procedimentos industriais que nos trazem desenvolvimento e bem-estar.

Além de termos desenvolvido a insulina recombinante humana, também estudamos e trouxemos  outras melhorias no tratamento de diabéticos, incluindo maneiras melhores de administrar a insulina, monitorar e controlar os níveis de glicose.

O conhecimento científico básico possibilitou trazer um tratamento para uma doença. Isso então levou à descoberta de uma molécula, que, ao ser mais profundamente estudada, trouxe mais conhecimento, e mais melhorias para o tratamento de várias doenças. Esse é o ciclo virtuoso que liga pesquisa fundamental, avanços tecnológicos, mais pesquisa e qualidade de vida.

Alicia Kowaltowski é professora de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo

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