Por que é importante "enxugar gelo" fazendo ciência

Artigo
20 jul 2019
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Em meio às recentes discussões sobre o papel das Universidades Federais e das pesquisas que ali são realizadas, voltei a ler uma frase que costumava ser recorrente quando pessoas não ligadas a academia e, por vezes, até gestores de órgãos de fomento, resolviam criticar a pesquisa básica e a humanística: há muita gente dedicada a enxugar gelo nas universidades e instituições de pesquisa! Pois bem, pondo de lado o sarcasmo, talvez ela seja realmente verdade. Vejamos, então, por que enxugar gelo é uma atividade essencial...

O dito mais famoso sobre a utilidade de pesquisas e invenções é atribuído a Benjamin Franklin, apesar de ter variações repetidas por outros eminentes cientistas. Ao assisitir ao primeiro voo de seres humanos em balões e ser questionado sobre a utilidade de tal experimento, respondeu algo do tipo: “É um bebê que acaba de nascer; não sabemos ainda no que se tornará”.

Abraham Flexner, um dos fundadores do Instituto de Estudos Avançados de Princeton foi muito além dessa observação simples num texto de 1939, que deu origem ao livro A utilidade do conhecimento inútil:  

“Do ponto de vista prático, a vida intelectual e espiritual é, na superfície, uma forma inútil de atividade, na qual o ser humano se delicia porque procura, para ele mesmo, satisfações maiores do que as que podem ser obtidas de outra forma”.  A seguir, afirma (as traduções são minhas): “Uma instituição que liberta gerações sucessivas de almas humanas é amplamente justificada, mesmo que não gere a assim chamada contribuição útil para o conhecimento humano. Um poema, uma sinfonia, uma pintura, uma verdade matemática, um novo fato científico, todos carregam neles mesmos a justificativa necessária da qual universidades, faculdades e institutos de pesquisa precisam.” 

Ao explicar a importância da existência do Instituto de Estudos Avançados de Princeton, Abraham Flexner finaliza: “Não fazemos nenhuma promessa, mas esperamos que a busca, sem obstáculos, do conhecimento inútil provará ter consequências benéficas no futuro, da mesma forma que já teve no passado. Em nenhum momento, defendemos o Instituto com os pés no chão. Ele existe como um paraíso para acadêmicos que, como poetas e músicos, ganharam o direito de fazer o que quiserem e que conseguem o máximo de si mesmos quando podem trabalhar dessa forma.” 

Sobre as consequências benéficas geradas pelo dispêndio de tempo em novas formulações matemáticas e em ciências básicas, há exemplos sem fim que demonstram sua necessidade. Ainda no seu texto de 1939, Flexner cita alguns casos interessantes.  Vou reproduzir, parcialmente, dois deles.

O primeiro refere-se ao fato da inútil formulação teórica das equações que descrevem o eletromagnetismo clássico (hoje conhecida como equações de Maxwell), desenvolvida por Maxwell e Hertz, ter-se tornado o berço de novos meios de comunicação graças a um técnico hábil, Marconi. O segundo relembra o caso de Paul Ehrlich, que, aos 17 anos, em vez de estudar anatomia, como tinham lhe pedido, passava o tempo satisfazendo a sua curiosidade por meio da observação microscópica que, mais tarde, junto com avanços de Koch, deu origem à bacteriologia.

Vou mencionar ainda mais alguns casos ligados a minha área de trabalho, a física. Todo o desenvolvimento da Teoria da Relatividade Geral só foi possível devido à existência de uma formulação tensorial, da utilização da métrica de Minkowski e de varieades relacionadas com a não tão simples álgebra de Grassmann, coisas que, além de não fazerem sentido para um não-estudioso de física ou matemática, quando formuladas separadamente, não tinham lá grande serventia prática…

Mas quando Einstein debruçou-se sobre o problema de entender a fundo o que já havia iniciado ao desenvolver a Relatividade Restrita, a matemática estava lá, perfeita, à sua espera. A importância da Relatividade Geral vai muito além do entendimento do paradoxo dos gêmeos, do espaço-tempo curvo, da fama do eclipse em Sobral e da existência das ondas gravitacionais.  A tentativa de entender a origem e a evolução do Universo, que necessariamente dependem da Relatividade Geral, levou o ser humano a desenvolver inúmeras ferramentas computacionais e tecnológicas, envolvendo telescópios terrestres e espaciais. 

Ainda lembrando de Einstein, vejamos o caso do efeito fotoelétrico (elétrons emitidos de um metal quando absorvem ondas eletromagnéticas, ou seja, luz). Ele não era passível de ser explicado pela física clássica e foi um dos precursores do desenvolvimento da física quântica.  Einstein explicou o fenômeno em 1905, e mais de cem anos depois, ainda estão sendo desenvolvidas e aprimoradas células fotovoltaicas para uso na energia solar. 

Outro caso é o da supercondutividade, descoberta em 1911 por Onnes num laboratório de pesquisa, explicada apenas em 1957 por Bardeen, Cooper e Schrieffer e ainda não totalmente explorada tecnologicamente. 

E o do desenvolvimento da Word Wide Web, a famosa “www”, em 1989 por Berners-Lee? O pesquisador, trabalhando no Cern, encontrou a  necessidade de viabilizar um protocolo de comunicação entre cientistas trabalhando em diferentes laboratórios e universidades ao redor do mundo. É desnecessário discorrer sobre a importância que as redes de comunicação baseadas na Web alcançaram, indo muito além da mera troca de informações entre especialistas numa área “inútil” como física de partículas.

Portanto, aplicações de qualidade requerem tempo investido em pensar, testar e desenvolver coisas inúteis, e exigem embasamento científico consistente que, mais uma vez, nasce da experimentação e da reflexão em torno do que, de um ponto de vista imediato, é “inútil”. Um país que se afasta do desenvolvimento científico fica à mercê de terceiros e cada vez mais distante de sua autocapacitação.  

Precisamos, então, incentivar que mais pessoas sintam interesse em enxugar gelo, e que nossos governantes e população consigam enxergar a importância desse exercício inútil. 

Débora Peres Menezes é Professora Titular do Departamento de Física da Universidade Federal de Santa Catarina, atual representante brasileira na Comissão de Física Nuclear (C12) da International Union of Pure and Applied Physics (IUPAP), membro do Comitê Gestor do INCT – Física Nuclear e Aplicações e Presidente do Grupo de Trabalho sobre Questões de Gênero da Sociedade Brasileira de Física. Foi Pró-Reitora de Pesquisa e Extensão da UFSC de 2008 a 2012. 

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