Passaporte de vacina não é "discriminação"

Questão de Fato
7 fev 2022
Imagem
vacinas

 

Se não fosse uma medida do atual governo federal, ninguém acreditaria. Uma ministra de Estado, que ainda por cima tem sob seu guarda-chuva a proteção da família e dos direitos humanos, emitiu, no fim de janeiro, uma nota técnica com críticas ao passaporte sanitário e à obrigatoriedade da vacinação infantil. E foi além. A titular do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, anunciou também a criação de um canal no disque-denúncia para quem se sentir descriminado pelo fato de recusar vacinação.

De acordo com a nota, “para todo cidadão que por ventura se encontrar em situação de violação de direitos, por qualquer motivo, bem como por conta de atos normativos ou outras medidas de autoridades e gestores públicos, ou, ainda, por discriminação em estabelecimentos particulares, está disponível o canal de denúncias, que pode ser acessado por meio do Disque 100”.

Para o médico infectologista Alexandre Zavascki, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, e professor de Infectologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é “totalmente inapropriado” dizer que quem não tomou vacina está sofrendo discriminação. De acordo com ele, o passaporte sanitário para atividades que envolvam convívio direto com outras pessoas é uma regra baseada não numa pré-condição ou opinião, mas num critério quantitativo e objetivo, que é a proteção contra infecções e uma doença transmissível que a imunização oferece.

Zavascki lembra que a decisão de alguém não se vacinar tem implicações para outras pessoas. “Haverá consequência não só para esse indivíduo, mas para a comunidade em que ele vive”, diz. “Não se está obrigando ninguém a se imunizar, mas está se colocando que essa decisão vai levar a restrições para algumas atividades. Não se aplica, em absoluto, o termo discriminação”.

O médico epidemiologista e doutor em saúde pública Fredi Alexander Diaz-Quijano, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), também afirma que não se pode dizer que não vacinados estejam sendo discriminados. “Eu considero que apenas haveria isso se houvesse alguma restrição para acessar os imunizantes, por causa de alguma condição de raça, sexo, orientação sexual ou ideologia, por exemplo”, explica. “Isso sim seria algo de rejeitar, pois estariam restringindo o direito à saúde. Mas se todos tivermos acesso igualitário à vacinação, a sua exigência para participar de atividades que envolvem contatos com outras pessoas é apenas uma medida sanitária para proteção da comunidade”. 

Diaz-Quijano lembra que o controle da pandemia exige diversas estratégias para evitar que pessoas suscetíveis entrem em contato com potenciais casos infecciosos. Elas incluem distanciamento, uso de máscaras e vacinação. Essa última reduz o risco de complicações e pode diminuir, mas não eliminar, a probabilidade de transmissão. “Por isso, a aglomeração de indivíduos não vacinados com vacinados implica um risco de adquirir uma doença grave nos primeiros e amplificar ciclos de transmissão, envolvendo os primeiros e os segundos”, explica.

Nesse contexto, para ele, restringir o acesso de não imunizados a recintos onde poderiam entrar em contato com outras pessoas não corresponde a um ato contra esse grupo, mas uma medida a favor da proteção da comunidade como um todo. “As pessoas que escolhem permanecer sem se vacinar podem sentir que algumas das suas liberdades estão sendo restringidas, mas isso seria uma perspectiva enviesada”, diz. “Realmente todos temos tido, de uma ou outra forma, alguma restrição durante a pandemia e a imunização é apenas uma estratégia chave para retomar nossas atividades em segurança”.

No entendimento da professora de Direito Daniela Silva Fontoura de Barcellos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), não há nenhum fundamento em comparar grupos vulneráveis social e historicamente às pessoas que se recusam a tomar a vacina contra a COVID-19. A proteção dos grupos vulneráveis tem como fundamento o consenso social e os direitos humanos e sua aplicação não gera prejuízo para os demais.

Diferentemente, diz ela, os não vacinados estão agindo contra o consenso social e científico e sua circulação em ambientes coletivos prejudica os demais, colaborando para a contaminação por coronavírus e, no limite, podendo gerar a morte de alguém. “Por essas razões, não se pode comparar os grupos vulneráveis com os não vacinados”, enfatiza.

Daniela se baseia em aspectos legais para reforçar sua afirmação. “No sentido jurídico do termo, discriminar é agir de forma preconceituosa contra a pessoa ou grupo em razão de algum critério social ou biológico, sendo proibido com fundamento tanto no Art. 7º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, quanto no art. 5º da Constituição Federal”, explica. “A exigência de apresentar passaporte vacinal para frequentar determinados ambientes é regulada por leis estaduais e municipais. Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, esta norma atualmente em vigor é o Decreto 49.904/2021”.

De acordo com ela, a conduta de certos estabelecimentos públicos ou privados de exigir a apresentação do passaporte sanitário é fundamentada em lei expressa e nunca poderá ser classificada como discriminação. “Na verdade, o que ocorre é justamente o contrário, ou seja, quem tentar frequentar ambientes públicos sem ter tomado vacina está realizando uma conduta ilícita, e não sendo discriminado”, diz.

Para o químico Luiz Carlos Dias, da Unicamp, não se pode admitir tantas pessoas morrendo de COVID-19, quando já existem vacinas disponíveis que podem evitar formas graves da doença, hospitalizações e óbitos. “A imunização está salvando milhões de vidas no mundo, é segura e eficaz, inclusive para nossas crianças, e precisamos combater essas campanhas criminosas para desacreditar as vacinas.”

Nesse quadro, o pesquisador diz que o passaporte sanitário é uma medida pedagógica, que serve para incentivar as pessoas a se imunizar contra a COVID-19 e proteger a população. “É essencial ampliar a cobertura vacinal, para frear a disseminação e espalhamento do vírus”, defende Dias.

Por isso, ele considera a iniciativa da ministra Damares, de criar um disque-denúncia antivacinas, mais “uma aberração” deste governo. “Usar o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para emitir uma nota técnica contra a criação do passaporte sanitário e contra a obrigatoriedade da vacinação infantil contra a COVID-19 é mais um retrocesso, que atenta contra a saúde da população brasileira”, critica. “É uma diretriz de caráter ideológico e mais um episódio lamentável de negação da ciência. Não podemos admitir campanhas do governo federal para atrasar e atrapalhar a imunização de nossas crianças”.

Em vez disso, para Daniela, o Poder Público tem como dever agir no interesse da coletividade e, no caso da pandemia do coronavírus, isto se concretiza em ações que colaborem para a difusão de informação verdadeira sobre o vírus e em medidas para evitar a disseminação da doença. “Infelizmente, a ministra Damares Alves teve uma conduta equivocada ao criar um canal de disque-denúncia para pessoas não vacinadas reclamarem de suposta discriminação”, lamenta. “Na verdade, a criação de um canal governamental para denunciar quem está exigindo o passaporte sanitário é uma prática ilegal, que terá como resultado a desinformação e o aumento da contaminação e de mortes por COVID-19”.

Procurada por meio sua assessoria de imprensa, a ministra Damares Alves não respondeu aos pedidos de entrevista.

Evanildo da Silveira é jornalista

Mais Acessadas

Sua Questão

Envie suas dúvidas, sugestões, críticas, elogios e também perguntas para o "Questionador Questionado" no formulário abaixo:

Ao informar meus dados, eu concordo com a Política de Privacidade.
Digite o texto conforme a imagem

Atendimento à imprensa

11 95142-8998 

11 95142-7899