Parcela significativa das pessoas expostas a notícias falsas, no calor de uma campanha eleitoral, tende a se lembrar especificamente do falso evento noticiado, mesmo que ele jamais tenha acontecido. Esse efeito é mais forte quando o suposto “fato” está alinhado com as preferências e preconceitos de quem “se recorda” dele.
Este é o resultado de uma pesquisa conduzida durante a campanha para o referendo irlandês de 2018, que acabou derrubando a emenda constitucional do país que garantia direitos ao “nascituro” e, por causa disso, tornava o aborto ilegal. O estudo, que contou com a participação da americana Elizabeth Loftus, uma das maiores autoridades mundiais no estudo de memórias falsas, foi publicado no periódico Psychological Science.
Partidarismo
Tomaram parte na pesquisa, realizada online, mais de 3 mil voluntários que foram apresentados a seis notícias sobre a campanha do referendo, sendo quatro verdadeiras e duas falsas. Das falsas, uma era desfavorável à campanha pelo “sim” (pela legalização do aborto) e outra, ao “não” (contra a legalização). Uma das notícias falsas denunciava ilegalidade na condução da campanha; outra, inventava declarações polêmicas e as atribuía a líderes da campanha.
Pediu-se aos voluntários que lessem as notícias e selecionassem um item numa escala que ia de “eu me lembro” a “não me lembro”, passando por “lembro-me de algo diferente” e “não me lembro, mas acredito que aconteceu”. Na média geral, 48% dos participantes disseram lembrar-se de pelo menos uma das histórias falsas, sendo que 37% disseram ter uma lembrança específica de um não-evento, e 11%, uma memória genérica.
Quando a dimensão “não me lembro, mas acredito” foi incluída, 63% dos entrevistados apontaram algum nível de apego – memória ou crença – a uma informação falsa. A divisão partidária ficou evidente: 54% dos apoiadores do “sim” disseram acreditar ou lembrar da história sobre ilegalidades na campanha do “não”, enquanto apenas 38% dos eleitores “não” afirmaram o mesmo. Quando a notícia falsa acusava a campanha pelo “sim” de ilegalidade, 40% dos eleitores “não” acreditaram/lembraram, contra 30% do sim”.
Os autores notam que “respostas qualitativas a ambas as versões da história sugerem que alguns participantes formaram memórias ricas e detalhadas”. Alguns voluntários chegaram a descrever as reações emocionais (riso, revolta) que tiveram quando souberam da notícia “pela primeira vez”.
O mesmo efeito, no entanto, não foi verificado quando as falsas notícias envolviam declarações polêmicas inventadas: a taxa de pseudo-lembranças manteve-se em torno de 45% em ambos os grupos, não importando a falsa fonte das declarações.
Os autores especulam, com base em resultados qualitativos, que esse desfecho foi influenciado pelo fato de o evento real por trás das falsas declarações – um julgamento polêmico, envolvendo acusações de estupro – ter ofuscado a análise das falas.
Inteligência
Quando avisados de que algumas das notícias apresentadas poderiam ser falsas, os participantes identificaram corretamente as fake news em 47% das vezes, e acusaram notícias reais de serem falsas em 19%. As notícias falsas sobre irregularidades de campanha foram corretamente apontadas como “fake” por 52% dos participantes que receberam o aviso.
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Uma parcela dos voluntários (69% da amostra) também completou um teste de vocabulário, o Wordsum, que tem forte correlação com os resultados de testes completos de QI, e que foi usado como medida de capacidade cognitiva. Os voluntários que obtiveram alta pontuação no teste mostraram maior resistência à formação de falsas memórias, mesmo que contra seus oponentes políticos.
Por exemplo, quase 60% dos eleitores do “sim” de baixa capacidade cognitiva disseram lembrar-se do escândalo inexistente envolvendo a campanha pelo “não”. Já os de alta capacidade cognitiva que relataram a falsa memória foram menos de 40%.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência