Se fosse só placebo, não funcionaria em animais! Essa é a frase mais ouvida por quem tenta explicar a aparente eficácia que a homeopatia às vezes apresenta, e por que a prática se tornou tão popular. A objeção até soa lógica: se animais e bebês pequenos não sabem que estão sendo medicados, não poderiam ser sugestionados. Mas a realidade é um pouco mais complicada.
Falar em efeito placebo, por exemplo, sugere que se trata de um único efeito, um só mecanismo. Mas, na verdade, há vários processos envolvidos: condicionamento, expectativa, compreensão da intenção de tratar, suscetibilidade individual. E complicadores extras como regressão à média, em doenças cíclicas, e remissão espontânea de doenças. Cada um desses elementos pode estar presente, em maior ou menor grau, nos animais.
Também é importante lembrar que animal não fala: cabe ao humano responsável interpretar o comportamento do bicho e deduzir se há sofrimento, e quanto. Mesmo que o animal não seja sugestionável, o dono certamente é.
Breve história
A homeopatia surgiu no final do século 18 na Alemanha, inventada por Samuel Hahnemann, em uma época onde prevalecia a chamada “medicina heroica”, baseada em técnicas como sangria, laxantes e eméticos: a ideia era que, para restaurar a saúde, seria preciso purificar, ou purgar, o corpo. Se tirar sangue e induzir crises de vômito ou diarreia já parece brutal em humanos, na veterinária a situação era ainda mais cruel. As sangrias eram mais intensas. Feridas e infecções eram tradadas à base de queimaduras e ácidos. Tudo sem anestesia. Sorte do animal – e do humano – desta época que fosse tratado com homeopatia. E por que sorte?
Porque a homeopatia, apesar de ineficaz, é inócua para o paciente. E, nas condições da época, quase sempre era melhor não receber nenhum tratamento do que “medicina heroica”.
A homeopatia baseia-se em dois princípios: o da similaridade e o das diluições infinitesimais. O primeiro atesta que “similar cura similar”, ou seja, algo que causa os sintomas da doença no paciente deve ser capaz de curá-lo da doença. Repare que, na época, ninguém sabia nada sobre a real causa das doenças, e o conhecimento sobre agentes infecciosos e anatomia eram escassos.
O segundo princípio diz que o princípio ativo, para funcionar, deve ser diluído em série, segundo um processo de “sucussão”, que consiste em agitar vigorosamente o frasco a cada diluição. Uma diluição típica homeopática é a de C30, o que equivale a 1060, ou seja, uma parte do princípio ativo (similar) diluído em 1060 partes de água. Em diluições assim tão intensas, é cientificamente impossível distinguir um remédio homeopático de água limpa.
O remédio é só água. Quando a homeopatia é submetida a testes com controles adequados, falha. Quem quiser se aprofundar nessa parte da história é bem-vindo a consultar o que já publicamos AQUI, AQUI e AQUI.
Mas a homeopatia veterinária frequentemente é utilizada em contraponto, com o argumento de que “se funciona em animais, não é placebo”. O problema: a homeopatia não funciona em animais, e os animais também estão sujeitos às diversas faces do efeito placebo, ainda que de maneiras diferentes dos seres humanos.
Tipos de placebo
Outro modo de se referir ao efeito placebo é chamá-lo de “efeito não específico”. Isso implica um efeito produzido pelo medicamento ou tratamento que não é causado especificamente pelo medicamento ou tratamento, mas por alguma variável de contexto, por exemplo: expectativa, formato, cor, sabor, preço (placebos caros costumam funcionar melhor que os baratos!), linguagem corporal de quem administra, etc.
Em animais, esses efeitos não específicos podem ser produzidos de diversas formas:
Condicionamento: A primeira descrição que temos de um efeito placebo pode ser encontrada nos estudos de condicionamento de Pavlov, feitos com cães. Ou seja, os primeiros trabalhos que mostram que uma resposta fisiológica pode ser condicionada por uma substância inerte, ou por um comportamento, foi demonstrada justamente em animais!
Além do clássico trabalho de induzir salivação nos cães com o uso de uma sineta, pesquisadores também conseguiram induzir respostas similares àquela obtida com o uso da morfina, usando apenas uma solução salina injetável, como já tratamos aqui, onde explicamos alguns mecanismos fisiológicos do uso de placebos, incluindo ativação de receptores opioides no cérebro. Uma boa revisão sobre o assunto pode ser encontrada aqui.
Mas se animais precisam ser condicionados para se beneficiar de um efeito placebo, será que eles realmente sentem este benefício? Seriam as idas ao veterinário – que, como sabem todos os donos de pets, costuma representar uma fonte de estresse para o animal – suficientes para condicionar o bicho, sabendo que grande parte das consultas de rotina são para vacinas e check-ups, ou seja, o animal será manipulado, sentirá desconforto? E o que dizer de animais de criação?
Expectativa do dono: Se os bichinhos não se beneficiam do condicionamento, ou só se beneficiam em casos de doenças crônicas onde haja relação constante entre tratamento e alívio, carinho e bem-estar, como explicar o efeito placebo em animais?
“Clever” Hans era um cavalo muito inteligente, que sabia aritmética. Ou pelo menos, era inteligente o bastante para enganar o dono e grande parte da sociedade alemã do início do século 20. Quando seu dono ou qualquer outra pessoa dava uma operação matemática para o cavalo resolver, Hans batia um casco no chão até chegar ao número exato da resposta.
Após uma investigação minuciosa, o psicólogo Oskar Pfungst demonstrou que o cavalo só conseguia acertar o resultado quando podia ver o dono, ou outros humanos. Quando vendado, Hans errava. O cavalo estava respondendo à linguagem corporal das pessoas. Cavalos e animais de companhia são extremamente sensíveis à linguagem corporal.
Quem já levou um cãozinho ao veterinário sabe que por mais que tentemos disfarçar e fazer exatamente a mesma rotina que seguiríamos para uma volta no parque, os bichos sempre sabem a diferença. Nossa linguagem corporal involuntária nos entrega.
No livro “No way to treat a friend”, os autores contam a história de um teste clínico realizado com cavalos de corrida, para verificar se suplementos vitamínicos influenciavam a performance. Um jóquei reclamou que seu animal estava apresentando comportamento agressivo por causa do teste. Os responsáveis removeram a dupla do estudo, e o animal voltou a ser dócil. No entanto, o cavalo fazia parte do grupo placebo – não estava recebendo suplemento. Provavelmente, apenas respondia aos sinais involuntários de medo e insegurança do cavaleiro.
Além disso, carinho e contato humano também funcionam como efeito placebo em animais, e temos estudos que demonstram que acariciar cães e cavalos reduz sua frequência cardíaca e o manuseio gentil de novilhas aumenta a produtividade de leite.
Viés cognitivo humano: Na clínica, a percepção do proprietário e do médico veterinário também pode influenciar o “resultado” do tratamento, quando dono e profissional relatam perceber melhora mesmo onde ela não existe: o animal continua doente. Chamamos isso de placebo por procuração, e pode acontecer também com bebês.
Como o paciente não tem voz, a declaração de que houve melhora reflete uma impressão subjetiva do cuidador, vulnerável a todo tipo de viés cognitivo. Este fator, somado à regressão à média e à remissão espontânea, pode ser o que mais contribui para a popularidade da homeopatia na prática veterinária.
Esse é um dado importante: não sabemos se o animal recebe os benefícios analgésicos que o efeito placebo oferece, muitas vezes, a seres humanos. Um dono de pet fã de homeopatia pode imaginar que sim, mas o bicho não fala.
Não faltam relatos, compilados em consultórios veterinários de todo o mundo, sobre entusiastas de homeopatia que submetem seus animais a este tipo de tratamento, recusando-se a perceber que o bicho continua sofrendo, apenas para retomar o tratamento adequado quando já é tarde demais.
Avaliação científica
A literatura que demonstra que homeopatia não funciona em humanos é ampla e de qualidade, mas e em animais? Há menos publicações e revisões sobre tema, mas uma revisão bastante completa pode ser encontrada aqui. Foram analisados trabalhos publicados sobre o uso de homeopatia em animais de criação, desde 1981 até 2014.
Os autores reportam que grande parte dos estudos sofre de falhas metodológicas graves, como ausência de grupos controle e grupos placebo, uso indevido de testes estatísticos, ausência total de informações sobre fatores de confusão, como as condições de hábitat, higiene e alimentação dos animais, e grande número de estudos que não eram duplo-cegos.
Também registram casos em que a “melhora” dos animais era uma declaração subjetiva feita por um veterinário homeopata ou pelo fazendeiro, a ausência de métodos diagnósticos simples como testes de laboratório e exames clínicos e, finalmente, o fato de nenhum dos estudos ter sido replicado, e haver outros que jamais poderiam ser replicados, porque faltavam informações básicas sobre a metodologia utilizada.
Duas outras revisões, que você pode encontrar aqui e aqui, comparando o uso de remédios convencionais e remédios homeopáticos na medicina veterinária, concluem que não existe base farmacológica para a homeopatia, nem qualquer evidência de eficácia, e que a partir do momento em que sabemos que os remédios homeopáticos não têm efeito real, apenas um provável efeito placebo – sobre o dono –, o uso da homeopatia na veterinária pode comprometer o bem-estar animal, e causar sofrimento evitável.
Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e presidente do Instituto Questão de Ciência