A maior parte da população brasileira (70%) prefere procurar um médico convencional para tratar de seus problemas de saúde. A segunda e terceira opções são terapeuta espiritual (7%) e benzedeira (6%). Tratamentos incluídos na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) do Ministério da Saúde ficam ainda mais para trás, com 5% dando preferência ao médico homeopata e 3% ao acupunturista, por exemplo.
No entanto, quando perguntados sobre o acesso efetivo a serviços de saúde, são apenas 55% os que dizem ter se tratado com um médico convencional. Benzedeiras aparecem em segundo lugar, citadas por 26%, praticamente o dobro dos que dizem ter se tratado com um médico homeopata (14%). E 26% afirmam nunca ter realizado tratamentos de saúde com qualquer tipo de profissional. Essa taxa é maior na região Nordeste (39%) e nas classes D e E (42%).
Estes são resultados da pesquisa nacional conduzida pelo Datafolha com exclusividade para o Instituto Questão de Ciência no mês de março. Foram ouvidos mais de 2 mil brasileiros maiores de 16 anos, em 130 municípios de todas as regiões do país, numa amostra representativa da população brasileira. A margem de erro dos resultados é de dois pontos porcentuais, para mais ou para menos.
A primeira parte da pesquisa, tratando da compreensão pública da ciência, foi divulgada em 13 de maio. Esta segunda parte tratou da relação dos brasileiros com a prática médica, incluindo as chamadas práticas integrativas e complementares (PICs), e o Sistema Único de Saúde (SUS).
Ciência primeiro
Para a maioria dos brasileiros, SUS deve considerar em seus atendimentos práticas baseadas em testes científicos (73%). Esse índice aumenta ainda mais se considerarmos o grupo que possui ensino superior (83%). São 62% os que acham que o sistema público deve também oferecer terapias inspiradas na sabedoria popular (52% na faixa com ensino superior). E menos da metade das pessoas defendem a presença, no SUS, de tratamentos baseados em forças espirituais (37%), religião (30%) ou nos conselhos de celebridades (27%).
Esses resultados põem em questão uma das principais alegações feitas pelos defensores da inclusão de PICs específicas na rede pública, a de que existe uma demanda considerável por esses serviços. Não só a demanda espontânea é mínima, como muitas das 29 práticas incluídas no PNPIC são notórias desconhecidas da população. Acupuntura (71%) e homeopatia (69%) têm trânsito amplo, mas apenas 41% já ouviram falar de florais, 21% de reiki e apenas 6% de ayurveda.
Os dados também ajudam a entender a busca por legitimidade científica empreendida por diversas PICs, dada a forte percepção popular de que tratamentos de saúde devem ter fundamentação científica. Se cerca de 70% das pessoas rejeitam a presença de terapias de base espiritual ou religiosa na rede pública, práticas que dependem desse tipo de fator, como reiki (nascido de um êxtase religioso de seu fundador, e dependente de uma visão de mundo mística) e antroposofia (que pressupõe almas e reencarnação) precisam sofrer algum tipo de rebranding e simular validade científica, o que geralmente se dá por meio de ações de mídia e de estudos inconclusivos ou de baixa qualidade.
Mas qual ciência?
Fica em aberto a questão de o que a parcela de 70% da população que quer terapias baseadas em testes científicos entende por “testes científicos”. Nos Estados Unidos, a enquete bienal Indicadores de Ciência e Engenharia faz uma avaliação de letramento científico, pedindo, por exemplo, que os respondentes distingam entre experimentos bem ou mal concebidos.
A pesquisa IQC/Datafolha não incluiu esse tipo de questionamento, mas é possível tirar algumas conclusões a partir do panorama geral apresentado pelas duas partes do levantamento – sobre compreensão pública da ciência e sobre a relação com os serviços de saúde.
Análise realizada pelo Datafolha permitiu dividir a amostra em quatro grupos, de acordo com o grau de adesão a afirmações sustentadas por consensos científicos (por exemplo, vacinas são importantes e benéficas) e de rejeição a alegações pseudocientíficas (por exemplo, alienígenas visitaram civilizações antigas). Um desses grupos, o de perfil mais alinhado aos consensos científicos, compreende 29% da amostra.
No entanto, cerca de um quarto das pessoas incluídas no grupo não tem ideia clara do que é ciência. Isso se torna evidente quando fazemos a média entre os integrantes que discordam das afirmações "Alimentos transgênicos, ou seja, geneticamente modificados fazem mal à saúde" (35%) e "O ser humano e o chimpanzé vêm de uma espécie de origem comum" (14%). Este porcentual se repete quando vemos quantos dos integrantes do grupo discordam de que o critério "testes científicos" deva ser utilizado como parâmetro para a inclusão de tratamentos no SUS (25%).
Quando perguntados sobre qual seria o primeiro profissional que procurariam em caso de doença, 25% não iriam em busca de um médico convencional e optariam por alternativas como terapeuta espiritual, benzedeira, homeopata ou acupunturista. Um quarto dos integrantes do grupo acredita ainda em alienígenas do passado e conspirações governamentais envolvendo alienígenas.
É bem provável que algumas pessoas desse grupo também desconheçam os princípios por trás de várias PICs.
Boa parte das terapias alternativas pressupõe algum tipo de energia vital que fluiria entre seres vivos ou “do Universo”. Isso sugere que 25% das pessoas do grupo mais alinhado com a ciência – porcentagem que é a diferença entre quem discorda das afirmações "medicina alternativa é boa para tratar doenças" (24%) e "energia espiritual tem o poder da cura" (52%) – parecem ignorar o viés “energético”, vitalista, das PICs.
Com isso, temos um quarto do grupo que mais se alinha com a ciência que, na verdade, não tem uma ideia clara do que seja ciência, e outro quarto que parece não enxergar as bases pseudocientíficas das práticas alternativas de saúde. Isso mostra como o letramento científico é inadequado, mesmo dentro do que poderíamos chamar de a parcela "mais racional" da população.
Marcelo Yamashita é doutor em Física, professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência