"Goop Lab" é confusão perigosa e entediante

Resenha
27 jan 2020
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Terapia energética

 

O melhor que se pode dizer sobre Goop Lab, série de documentários – talvez fosse melhor chamá-la de “reality show” – sobre saúde e bem-estar protagonizada pela atriz Gwyneth Paltrow e funcionários de sua empresa, Goop, é que a fotografia é muito bonita. E que o terceiro episódio, sobre sexualidade da mulher, presta um serviço importante ao desmistificar o orgasmo e os genitais femininos. 

Também, há que se creditar Paltrow por abster-se de promover diretamente os produtos pseudocientíficos, inúteis ou perigosos que sua marca empurra para mulheres desavisadas, como duchas vaginais de vapor ou spray “repelente de vampiros”. O temor de que a série, que estreou em janeiro na Netflix, se resumisse a um longo informercial de coisas como docinhos de melatonina, suplementos vitamínicos e chá de cúrcuma não se confirmou. 

E aqui, as boas notícias acabam. Todo o resto é profundamente lastimável. O principal problema da série é o modo como borra a distinção entre pesquisa médica séria (por exemplo, sobre o uso de drogas psicodélicas no tratamento de estresse pós-traumático, tema aparente do primeiro episódio), pseudociência (quiropraxia, reiki, no penúltimo) e fraude descarada (uma médium tentando realizar leituras frias de modo especialmente medíocre, no episódio final).

Para o público, fica a impressão de que um psiquiatra que conduz estudos controlados e aprovados por comitês de ética existe no mesmo plano, e merece o mesmo nível de  credibilidade, que um “terapeuta energético” que uma hora diz que é capaz de detectar o “campo energético” de uma pessoa a cerca de um metro de distância, e no instante seguinte, que o campo não pode ser medido; ou que uma “paranormal” que num instante pede à consulente que não lhe diga nada – ela vai ler sua mente! – e no próximo, começa a fazer perguntas entremeadas por chutes constrangedores, como “vejo uma letra... E... ou talvez L...”.

Os seis episódios seguem uma estrutura mais ou menos consistente. Cada um entrelaça duas linhas narrativas: na primeira, Paltrow e uma ou duas funcionárias da firma entrevistam supostos especialistas, cujas qualificações – seja um PhD numa universidade de primeira linha, uma série de citações no Livro Guinness dos Recordes ou anos de experiência “falando com espíritos” – são tratadas como igualmente importantes (ou irrelevantes). Na segunda, um grupo de funcionários da Goop (e, às vezes, a própria Paltrow) se submete a algum tipo de tratamento ou procedimento recomendado pelos tais especialistas; esta segunda linha dá o caráter de “reality show” à série.

O casamento entre a conversa na sala de estar da sede da Goop – elegante, ensolarada, super-“clean” – e a “missão de campo” nem sempre é perfeito, porém. 

No primeiro episódio, por exemplo, enquanto os entrevistados falam sobre o uso de psilocibina (cogumelos alucinógenos) ou MDMA (ecstasy) em ambientes clínicos controlados, como drogas experimentais para o tratamento de problemas mentais bem definidos, os “goopers” se metem numa viagem à Jamaica para tomar chá de cogumelo no meio da mata, a fim de lidar com o tipo de queixa difusa comum entre os hipsters da atualidade, como falta de espontaneidade, excesso de perfeccionismo ou bloqueio criativo. Este e o episódio sobre “idade biológica” (o quarto) são os mais perigosos da série, ao tratar comportamento com grande potencial de causar danos graves à saúde – consumo de alucinógenos e, no caso da “idade biológica”, dietas altamente restritivas – como questões de recreação, estilo de vida ou macetes de autoajuda.

O segundo episódio apresenta o atleta holandês Wim Hof, criador de um programa que combina técnicas de yoga, meditação e exposição ao frio intenso e que, segundo ele, remove problemas psicológicos, como propensão a ataques de pânico e timidez, e reforça o sistema imune. Ele detém recordes mundiais de natação em águas geladas e de correr descalço na neve. 

Hof parece claramente bem-intencionado e convencido dos benefícios de seu programa. A verdade, no entanto, é que suas técnicas não parecem ser muito mais do que uma versão radical dos tipos de treinamento usados em diversas modalidades atléticas e de artes marciais – técnicas que, de fato, ajudam a construir a autoconfiança e preparam o corpo para feitos, à primeira vista, extraordinários. 

As alegações de cura psicológica e reforço imunológico são oferecidas sem evidência convincente. Um discípulo de Hof aparece dizendo que havia contraído uma doença que tinha “50% de chance” de deixá-lo paralítico, mas que a técnica do holandês o salvara. Fica em aberto a possibilidade de ele apenas ter tido sorte – havia, final, 50% de chance de a doença não o paralisar, independentemente de qualquer treinamento ou tratamento.

O quinto e o sexo episódios são os mais constrangedores. No quinto, um quiropraxista e “terapeuta energético”, John Amaral, oferece massagens a funcionários da Goop em que, em tese, manipula também o “campo energético” de seus corpos. Um médico que acompanha Amaral afirma, categoricamente, que campos de energia gerados pelo corpo humano e “medicina energética” são fatos científicos – o que é categoricamente falso. Conceitos de física quântica são distorcidos e esquartejados sem dó.

Mesmo com o trabalho generoso de edição do episódio, fica claro que os “goopers” que se contorcem em resposta aos passes energéticos de Amaral estão, na verdade, reagindo a toques sutis e deixas verbais do terapeuta, não à manipulação de suas “auras”. É notável que a sessão de massagem mais impressionante seja a que o terapeuta faz com uma bailarina profissional que também é cliente de longa data. 

Trata-se, de fato, de um pas-de-deux muito bem ensaiado (conscientemente, ou não). A mesma dupla, Amaral e a bailarina Julianne Hough, fez uma performance de “limpeza energética” durante o Fórum Econômico Mundial de Davos.

No episódio final, um grupo de funcionários da Goop é enviado a um “treinamento de intuição” com a médium Laura Lynne Jackson. Basicamente, eles deveriam “desenvolver o potencial” de ler mentes, enxergar através de paredes e conversar com os mortos. 

Vários comentaristas que assistiram à série sugerem que, de todos os especialistas entrevistados, Jackson provavelmente é a única impostora consciente: suas tentativas de leitura fria – técnica em que o “paranormal” tenta enrolar o cliente com afirmações genéricas e adivinhações chutadas, enquanto pesca por informação precisa – são tão constrangedoras que passam por comédia involuntária. 

Neste episódio encontramos a que parece ser a única funcionária racional da Goop, que admite não sentir nenhuma energia psíquica fluindo da médium e nem se deixa manipular pelas platitudes da leitura fria. Esperamos que a moça não tenha perdido o emprego.

Como produto de entretimento, Goop Lab é muitas vezes tedioso. Os “fenômenos” apresentados são claramente bem menos impressionantes do que as caras e bocas que Paltrow e colegas dirigem à câmera tentam indicar. 

Como produto de informação, a série comete quatro pecados mortais: o já citado nivelamento dos entrevistados e, mais graves, a transmutação de experiência individual em evidência, a aceitação acrítica das explicações oferecidas pelos convidados e o desprezo pelo risco que as terapias alternativas oferecem. 

Os funcionários da Goop que atuaram como voluntários durante a série foram todos bombardeados por uma série de placebos de alto luxo, e é compreensível que “se sintam melhor” depois disso; ainda mais quando a medida de “melhor” é subjetiva. É isso que placebos fazem, afinal. Mas os convidados não falam em efeito placebo: falam em física quântica, vida após a morte e sistema imune. E ninguém os contesta.

As exceções são o terceiro episódio, sobre o corpo feminino e o prazer sexual da mulher, que é importante e presta um serviço valioso às espectadoras e espectadores; e o quarto, sobre “idade biológica”, em que Paltrow e duas funcionárias se submetem a dietas restritivas para “rejuvenescer”. 

No do rejuvenescimento, ao menos, fica claro que Gwyneth não “se sente melhor” depois de cinco dias consumindo menos de mil calorias diárias, sob a forma de sopas e caldos que mais parecem fórmulas de slime que deram errado. Mas a medida do efeito dessa tortura sobre a “idade biológica” (do rejuvenescimento esperado, enfim) é feita pelos mesmos especialistas que recomendaram a dieta. Em outras palavras, os criadores do produto testado avaliaram o resultado do teste. Não é surpresa que tenha dado tudo muito certo!

(Para quem estiver curioso, os cinco dias de quase-jejum “tiraram” 21 meses da idade-base da atriz).

O desprezo pelo risco aparece nos episódios 1 e 2, durante a terapia com psicodélicos, e o treinamento gelado de Win Hof. Durante sessões de terapia sérias com psicodélicos, existe uma preparação e um acompanhamento do paciente por profissionais sóbrios. No spa na Jamaica, os “terapeutas” conheceram seus pacientes no mesmo dia, compartilharam do alucinógeno, embora em doses menores, e os despacharam para casa sem seguida. O que poderia ocorrer, por exemplo, com um paciente que sofre de depressão? Ou tivesse uma crise psicótica depois de retornar aos Estados Unidos?

Já no tratamento de Hof, uma das “goopers” envolvidas apresentava diagnóstico de síndrome do pânico. Qual seria o desfecho, se ela tivesse sofrido uma crise durante o mergulho num lago gelado? E só porque isso não ocorre no documentário de Paltrow, não quer dizer que nunca ocorreu com outros “pacientes” de Hof. 

Goop Lab parece muito focado, como todos os proponentes de medicina alternativa, na possibilidade de, mesmo por efeito placebo, ajudar o paciente a sentir-se melhor. A medicina de verdade, por outro lado, procura, através de testes clínicos controlados, minimizar o risco e a possibilidade de causar dano. Exemplos, escolhidos a dedo, de pessoas que acreditam ter se beneficiado de um procedimento não provam que o tratamento é eficaz – muito menos, seguro.

O analfabetismo epistêmico – a incapacidade de distinguir uma hipótese bem embasada de uma ideia sem pé nem cabeça, a substituição do senso crítico e dos critérios comuns que permitem distinguir boa de má evidência por uma noção vaga e autoindulgente de “bem-estar” – é a principal marca de Goop Lab. 

Mas o programa de Paltrow reflete apenas a exacerbação de uma tendência mais antiga, vista principalmente em produtos, ditos jornalísticos, de “bem-estar”, principalmente revistas e páginas de jornal voltadas para o público feminino. Sob o pretexto do empoderamento, também abraçado pela Goop, o que se faz é oferecer mulheres estressadas e endinheiradas como público consumidor a charlatães, picaretas e iludidos bem-intencionados.

 

Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e presidente do Instituto Questão de Ciência

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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