Ciência de verdade passa longe de "feira quântica"

Artigo
4 dez 2019
choprabag

A física quântica é uma área da física em pleno desenvolvimento desde o início do século 20. Graças a ela, a ciência e a engenharia vêm desenvolvendo uma série de novas tecnologias em várias áreas do conhecimento. Na área da saúde não é diferente: hoje fazemos exames PET Scan e Ressonância Magnética Nuclear graças aos avanços no entendimento de como as partículas elementares se comportam e interagem. Tratamentos com radioterapia, para o câncer, melhoram as condições de saúde de pacientes no mundo inteiro também graças à física quântica: a física do “muito pequeno”, da estrutura da matéria.

Como físico, cientista e curioso que sou, estou interessado em aprender as novidades dos avanços da ciência. No final de semana de 23 e 24 de novembro, ocorreu o I Congresso Catarinense de Saúde Quântica, na cidade de Florianópolis, SC. Eu fui enviado pelo Instituto Questão de Ciência (IQC) para participar do evento como ouvinte, e depois relatar aqui na Revista os avanços apresentados. Nessa primeira missão como infiltrado pelo IQC, eu adoraria relatar os avanços científicos apresentados nesse Congresso, mas não posso. O que encontrei foi um show de horrores da física, onde termos da mecânica quântica foram usados fora de contexto e, ainda, distorcidos na tentativa de trazer validação científica para ideias pseudocientíficas na área da saúde: a tal da “saúde quântica”.

Já na mesa de abertura do evento, uma surpresa desagradável: os organizadores do Congresso foram apresentados como pioneiros do conhecimento quântico. Ora, pensei eu, o que fizeram com os estudos de Planck, Bohr, Schrödinger, Dirac, Einstein e De Broglie? Será que eu estava com a expectativa alta demais? Talvez. Afinal, a própria pastinha que recebemos no credenciamento já vinha com a foto do médico Deepak Chopra estampada. Era um prelúdio dos absurdos que se seguiram ao longo dos dois dias: junto com citações de Chopra, figuraram também como grandes gurus os nomes dos físicos (ou seriam místicos?) Amit Goswami e Fritjof Capra. Todos eles são, ao invés de gurus científicos, grandes exemplos, dentro da física, de como não devem ser usadas as ideias advindas da física quântica.

Marcelo Yamashita já trouxe à Revista Questão de Ciência uma argumentação anterior alertando sobre as falcatruas com terapias quânticas. Carlos Orsi também já alertou na revista sobre usos indevidos da física quântica aqui e aqui.  Deixo ainda uma tese de doutorado de Sandro Machado analisando a argumentação desses gurus místicos citados anteriormente.

Show de horrores

Como descrevi, existe bastante física quântica na área da saúde. Seria ótimo se “saúde quântica” tratasse dessas aplicações, mas não é o caso. Não ouvi falar nem em exames avançados de diagnóstico por imagem, nem em como melhorar os parâmetros do feixe de radiação da radioterapia. Curiosamente, “saúde quântica” não trata das aplicações corretas e devidas da física quântica na saúde, mas algo bem distinto... Vou explicar baseado nas duas ideias principais que apareceram de forma recorrente nas palestras do evento: a saúde quântica é baseada em “frequência e vibração” para saúde e doença. Assim, uma pessoa saudável possui suas células e órgãos vibrando na frequência adequada. Além disso, a condição de saúde ou de doença pode ser criada pelo próprio paciente, uma vez que “temos o poder de alterar/criar nossa realidade”.

Agora, quero mostrar a você que essas duas afirmações básicas, de onde se sustenta a tal saúde quântica, não passam de uso indevido de fenômenos científicos, e corretos, descritos pela física quântica. Assim, vou tentar explicar brevemente a parte científica correta da física quântica sobre esses fenômenos, depois mostrar como eles são usados na geração de afirmações pseudocientíficas e, por fim, comentar o porquê dessas afirmações não serem validadas pela ciência. Meu objetivo é mostrar como o conhecimento científico é, de fato, distorcido para tentar convencer o leigo sobre a cientificidade das ideias pseudocientíficas:

“Frequência e vibração”

Breve conhecimento científico: hoje sabemos, a partir da Mecânica Quântica, que mesmo partículas elementares, antigamente pensadas apenas como “pequenas bolinhas”, também apresentam comportamento ondulatório. Ou seja, existe um comprimento de onda (e, portanto, uma frequência) que pode ser associado às partículas. Isso gera o que se chama de “dualidade”: as partículas podem se comportar como pequenas bolinhas, mas também podem se comportar como ondas, dependendo da forma como interagimos com elas.

Afirmações pseudocientíficas: esse fenômeno é usado para tentar justificar a ideia de que órgãos, células, saúde e doença também possuem “frequências”. Aqueles indivíduos que conseguem fazer seu corpo vibrar adequadamente, formando uma espécie de “sinfonia da saúde”, estarão livres das doenças. Para citar um exemplo, um dos médicos palestrantes do evento chega a dizer que aquilo que aprendeu sobre bioquímica na faculdade de Medicina, em relação aos mecanismos de ataque aos invasores do nosso organismo e processo de defesa do sistema imune, é besteira. Segundo ele, a explicação correta é uma questão quântica “frequencial”: um agente invasor emite uma frequência que as células de defesa rastreiam, como mísseis guiados para o combate.

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Problema na argumentação: um leigo pode entrar nessa, crente que está aprendendo algo científico. Mas fique alerta. O problema da argumentação está numa característica que os charlatães devem “acabar esquecendo” de contar ao público: quanto maior o tamanho do objeto, mais insignificante o caráter ondulatório que ele apresenta. Assim, células (milhares de vezes maiores que um átomo), órgãos humanos e o próprio corpo humano, para qualquer fim prático, se comportam de forma muito melhor descrita por partículas sólidas do que como ondas oscilantes. Além disso, em ciência, quando falamos em frequência, sempre dizemos claramente qual o mecanismo que a gera, e também como podemos medi-la em laboratório. Na saúde quântica, essas frequências são usadas apenas como recurso de linguagem. No Congresso, em nenhum momento foi apresentada uma forma de medir e caracterizar um espectro dessas frequências.

“O poder do observador”

Breve conhecimento científico: mais um uso indevido de física quântica. Esse vem de um fenômeno difícil de explicar em poucas palavras, mas, tentando colocar da forma mais simples possível, funciona assim: o estado de um sistema quântico não é bem determinado enquanto não se faz uma medida. Dessa forma, quando uma medida é feita, esse processo interage com o sistema e acaba fazendo o que se chama, tecnicamente, de “colapso da função de onda”. Como consequência, o estado do sistema passa a ser bem determinado. Uma analogia: pense em uma moeda. Depois de lançá-la pra cima e segurá-la com a mão fechada, podemos afirmar que ela está com seu “estado” bem determinado dentro da mão (ou seja, ela está ou com “cara” ou “coroa” para cima).

Ao abrirmos a mão, podemos apenas conhecer o resultado do lançamento da moeda. Agora, se a moeda fosse um sistema submicroscópico quântico com dois estados possíveis (“cara” ou “coroa”), após lançá-la para cima e pegar com a mão fechada, não podemos afirmar que o estado dela é bem determinado. Tecnicamente, dizemos que a moeda fica em uma “sobreposição de estados”. É somente no momento que abrimos a “mão quântica” (ou seja, usamos um aparato experimental para medir o estado da moeda) que o estado dela passa a ser, imediatamente, ou “cara” ou “coroa”.

Afirmações pseudocientíficas: esse fenômeno é chamado, principalmente pelos charlatães, de “o papel ou o poder do observador”. O que eles querem que você pense é o seguinte: da mesma forma que o estado quântico só se determina quando uma medida é feita, então nós, como responsáveis por “medir a nossa realidade” a todos instantes, também temos o poder de escolher aquilo que vivemos. Assim, somos responsáveis por nossa cura e nossa doença. Nosso sucesso e nosso fracasso. Nesse sentido, um dos palestrantes de domingo, outro   médico, foi decisivo ao afirmar que é o pensamento que cura. Outro exemplo evidente  apareceu na última palestra do sábado, quando um iridologista usou praticamente todo o tempo da sua explanação para contar ao público como conseguiu acessar o “campo quântico” através da sua consciência e, com isso, o universo o presenteou com uma melhora na condição de vida. 

Segundo ele, graças a esse acesso quântico, hoje dirige um BMW e tem um apartamento de frente para o mar, em Florianópolis. O público se emocionou bastante com a história. Parece que a lição foi realmente compreendida pelos presentes, pois, no final do Congresso, domingo, houve sorteio de brindes. Uma senhora, que ganhou a pulseira mais cobiçada pelos congressistas (pulseira de exercícios que mede batimentos cardíacos, número de passos, estado de sono e ainda conecta com aplicativo no celular) pegou o microfone e disse que acabara de ser sorteada por, também, ter conseguido pedir adequadamente ao universo. O público aplaudiu esse feito maravilhoso. O que eu não deixo de me perguntar é quantos mais ali, sentados, também não pediram ao universo, e ouviram um “não”,

Problema na argumentação: o principal “engano” dos charlatães ao citar esse fenômeno é que o observador (ou seja, o agente que realiza a medida do sistema quântico) não tem nenhuma condição de escolher o resultado da medida. Na nossa analogia da moeda quântica de dois estados igualmente prováveis, cada vez que uma medida for feita na moeda, inicialmente em uma sobreposição dos dois estados, o resultado obtido será ora “cara” e ora “coroa”, ao acaso. Por mais que o experimentador (ou observador) tenha diante de si diversas moedas idênticas em sobreposição de estados e passe a medir uma por uma, independentemente da sua vontade, mentalização ou pedido ao universo para obter o resultado “cara”, isso somente acontecerá, aproximadamente, em 50% das moedas. 

Destaco que se “o papel do observador” fosse usado apenas como uma analogia, eu até não me incomodaria tanto. Afinal, dedicação, alegria e motivação são importantes na tentativa de conseguir resultados melhores na vida amorosa, financeira e até na saúde, mas isso não tem nada a ver com física quântica. Afirmar que o paciente escolhe ser pobre e doente por não conseguir mentalizar adequadamente, e não acessar o campo quântico, chega a ser perverso.

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Florais quânticos

Um dos médicos palestrantes disse ainda que a medicina quântica não é feita para tratar a patologia, mas para tratar o processo que ocorre no corpo para gerar a patologia. E, como você já pode imaginar pelo explanado anteriormente, o que ocorre é um desequilíbrio energético e “frequencial” entre órgãos e células. É nesse sentido que aparecem os florais vibracionais quânticos (ou também chamados de IFF – Indutores Frequenciais Florais): ao longo de todo o Congresso, eles foram o foco de todos os palestrantes. A alegação principal é a de que esses produtos são soluções biofísicas elaboradas com o propósito de “reequilibrar as energias”, ou ainda, afinar as frequências de órgãos e células para o estado de saúde.

Na página do Congresso, a médica e palestrante (carinhosamente chamada pelos congressistas de “A Dama dos Quânticos”) Rosangela Arnt comenta sobre a eficiência do produto para a cura (mencionamos esta palestrante pelo nome porque ela deixou um depoimento registrado por escrito, cujo conteúdo pode ser corroborado de modo independente):

Elas [essências vibracionais florais do Sistema Floral de Ação Quântica] são, a meu ver, o sistema de harmonização da autocura mais simples de usarmos e aprendermos a sugerir para os pacientes e clientes. São moduladores e indutores frequenciais, que usam a mesma ideia da ressonância para transferência de informação, modulando os campos de energia dos órgãos e sistemas, aumentando a biorreceptividade celular para nutrição das células, e equilibrando as funções em geral. (grifo nosso).

Veja que a explicação dela vai ao encontro da ideia das frequências dos órgãos e sistemas, e ainda faz surgir um palavreado clássico das pseudociências: “campos de energia”. De novo, esse termo é lançado como expectativa de fazer parecer ciência, mas esquecem que cada vez que a ciência se refere à “energia” em algum sistema, essa forma de energia é bem determinada, pode ser calculada e ainda pode ser medida. Aqui, na saúde quântica, energia é simplesmente um termo carente de qualquer sentido e significado. Eventualmente, chamam de “energia vital”, “chi”, e coisas do tipo. Lamento informar que chamar algo de “energia” não é suficiente, cientificamente, para que esse algo seja imediatamente comprovado. O artigo do Marcelo Yamashita e outro do Carlos Orsi, ambos da Revista Questão de Ciência, já discutiram anteriormente essa questão.

página do fabricante desses florais quânticos, por sua vez, não colabora em nada na compreensão do seu mecanismo de ação. Veja o que eles apresentam:

Os Frequenciais Florais atuam por um princípio Biofísico. A ação ocorre por ressonância vibratória e magnética, agindo assim no corpo físico através da vibração do corpo energético. Têm como propriedade atuar promovendo o equilíbrio. Também agem alinhando os Chakras, dissolvendo bloqueios, facilitando a abertura e modulando a entrada de energia no organismo [...]. Os Frequenciais Florais e os Suplementos não são medicamentos e não possuem princípios ativos. (grifo nosso).

Novamente, além do termo “energia” aparecer sem qualquer significado prático, o fabricante alega não haver princípio ativo na solução vendida. Isso está de acordo com o que os palestrantes comentavam no evento. Outro médico chegou a sugerir aos congressistas que eles podem prescrever a quantidade que quiserem de florais quânticos aos pacientes, pois, por não possuírem princípio ativo, nas palavras dele, “ninguém vai encher o saco”.

Houve um palestrante que tentou elaborar melhor a explanação sobre como funcionam esses frequenciais florais. Ele usou a analogia com um relógio atômico: da mesma forma que o relógio atômico é baseado nas frequências de emissão do átomo de césio, e ninguém duvida que exista uma frequência de vibração associada ao césio, então esses florais carregam apenas as frequências vibracionais do agente biológico de interesse (como a frequência de um hormônio, por exemplo).

Apesar de ser ótimo argumentar assim, baseado em analogias, há uma diferença crucial na frequência do átomo de césio do relógio atômico e a frequência vibracional do rim, ou do coração, ou da saúde, ou de determinado hormônio: no césio, conseguimos montar um experimento que o excite energeticamente e, depois, medimos as frequências emitidas. Uma molécula grande possui, por sua vez, várias frequências que podem ser medidas por espectroscopia (e todas dependem, obrigatoriamente, de a molécula estar presente na amostra). Agora, para o preparo floral, a pergunta é: como essa frequência de um órgão ou molécula é colocada lá dentro? E mais: como conseguimos medir isso, para garantir que, de fato, temos uma frequência no produto, mesmo sem que qualquer órgão ou molécula esteja presente ali? 

É fácil usar a analogia com as vibrações que podem ser medidas cientificamente, mas as explicações do produto ficam apenas no campo da analogia. Cientificamente falando, se não há princípio ativo, nenhuma frequência de excitação e emissão deve aparecer.

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Mas, para sair dessa enrascada, eles ainda têm uma carta na manga quântica: apelam ao que se chama de “memória da água”: alegam que a água presente no frequencial floral quântico entrou em contato com a molécula de interesse e, graças a certos processos de fabricação não explicados de forma clara, as frequências dessas moléculas são passadas para a água e guardadas na memória dela. De novo, precisamos saber: como essas frequências são medidas? Como garantimos que a água “pura” guarda essas frequências? Não é explicado. O que fazem é apelar para os resultados de memória da água obtidos por Masaru Emoto. Embora eu não vá entrar em todos os detalhes dos resultados de Emoto aqui, já se sabe que eles estão cheios de problemas científicos e não passam de uma ilusão (veja aquiaqui, e aqui, por exemplo).

No fundo, essa ideia de que algo sem princípio ativo, baseado em memória da água e com atuação apenas “energética” no organismo, não é nova. A homeopatia já vem tentando emplacar essa mesma ideia entre os cientistas há anos. Sem sucesso. Quem nunca ouviu falar do tema, pode encontrar vários artigos da Revista Questão de Ciência (aqui). Desde já, fica o alerta de que os preparos usados no tratamento homeopático seguem a mesma lógica pseudocientífica dos florais quânticos. Seriam os preparos florais da medicina quântica a evolução da homeopatia? Eu não tenho essa resposta, mas adianto que o Congresso estava repleto de homeopatas, bastante interessados.

Apesar de não haver princípio ativo, todos os palestrantes são categóricos ao afirmar que os IFFs funcionam para diversos tratamentos. Rosangela Arnt disse que “definitivamente, eles não são placebo”. Outro palestrante já não foi tão convicto. Este, apresentado como bioquímico e psicanalista, disse que o tratamento com florais quânticos, como não tem princípio ativo, consiste, basicamente, em curar pelo placebo. Apesar de soar bastante estranho ele ter afirmado isso, mais estranho ainda é ninguém ter levantado pra ir embora. Eu teria saído do evento, mas fiquei porque tinha que escrever este relato.

Refletindo sobre o assunto, arrisco dizer que o bio-psicanalista não estava se referindo a uma afirmação do tipo “florais quânticos são equivalentes a placebo”. O que suspeito é que ele defenda algo como “florais quânticos conseguem ativar uma cura por placebo”. O problema com essa ideia de “ativar” o placebo é que ela pressupõe que o efeito é uma espécie de poder mágico de cura que pode ser “evocado”. Mas, como explica Natalia Pasternak neste artigo, não é assim que a coisa funciona, muito antes pelo contrário.

De fato, um medicamento, para ser considerado adequado, precisa ter um efeito superior ao do placebo (seja “ativado” ou não). E cientistas sabem como agir para verificar isso: realizando testes duplos-cegos randomizados com grupo controle por placebo. Para saber mais sobre esses protocolos, leia este artigo ou veja a discussão da página 9 do relatório do Conselho de Pesquisas Médicas e Saúde Nacional da Austrália sobre testes de eficácia em homeopatia.

Evidências em jogo

Como já falei em outro artigo aqui na Revista Questão de Ciência, não é porque a ciência não sabe explicar o mecanismo de funcionamento de algo que ela vai, necessariamente, rejeitar que esse algo funcione. Assim, por mais que não consigamos compreender como a frequência poderia ficar na água sem a presença do princípio ativo (e mesmo o fabricante não informando como poderíamos detectar essa “energia”), não podemos manter a cabeça fechada. É necessário avaliar as evidências.

Durante o Congresso, as alegadas evidências impressionantes da eficácia do tratamento com florais quânticos vieram de duas fontes distintas: a primeira saiu dos anais do VIII Congresso de Saúde e Terapias Quânticas. Não encontrei esse livro de anais na internet, mas ele foi disponibilizado aos congressistas dentro da tal pastinha do Deepak Chopra. A segunda fonte veio de uma sessão de apresentação oral de casos de sucesso com terapia com florais quânticos. Essa sessão foi conduzida por Rosangela Arnt e mostrou cerca de 10 casos de sucesso, enviados por diferentes terapeutas que usaram os produtos quânticos em pacientes ao redor do Brasil.

Começando pelo livro de anais: ele contém 32 relatos apresentados como trabalhos científicos. Desse total, 21 eram relatos de melhora a partir da experiência de um único paciente. Outros envolviam mais pacientes, sendo um estudo com 180 pacientes o maior deles. Porém, este último era feito apenas em relato de experiência de anos com os vários sujeitos submetidos a uma série de várias terapias alternativas, e ainda sessões terapêuticas psiquiátricas. Fora isso, os pacientes não foram divididos em grupos distintos, e também não houve procedimento duplo-cego de tratamento e avaliação. Alguns estudos ainda eram relatos de pacientes que melhoraram a partir de uma combinação de tratamento quântico com tratamento convencional.

Por fim, nenhum dos 32 relatos envolvia uma metodologia próxima à necessária para determinar a eficácia do tratamento. Nenhum. Então, apesar de eu reconhecer que muitos relatos envolviam a melhora significativa dos pacientes, infelizmente, eles não permitem concluir nada sólido sobre os florais frequenciais quânticos.

Na apresentação oral, nada diferente. Apesar de a palestrante relatar casos que não estavam no livro de anais do outro congresso, todos os casos apresentados eram, novamente, referentes a melhora de um ou outro paciente. Casos isolados pelo Brasil. Nenhuma comparação estatística séria, duplo-cega, randomizada. Portanto, nada de sólido que se possa avaliar aqui.

Mesmo assim, Rosangela fez um apelo aos terapeutas que participavam do evento: “registrem e enviem seus CASOS de sucesso, pois assim vamos poder publicar uma meta-análise e provar, de uma vez por todas, que esses frequenciais florais não são placebo”. Embora eu não seja pesquisador da área da saúde, arrisco dizer que um compêndio de casos isolados de sucesso continuará sendo apenas um amontoado de casos isolados de sucesso. Enquanto não houver um estudo com todos os controles necessários, arrisco dizer que a comunidade médica global não passará a usar florais quânticos.

Outro tipo de atitude que percebi, durante as palestras, foi uma mistura irresponsável entre dados vindos de artigos científicos da área médica convencional e uma argumentação pseudocientífica, usando o palavreado da física quântica. Um palestrante comentou que alguns médicos prescrevem hormônios aos pacientes, mas não obtêm a melhora esperada. O que explicaria isso?  

O médico quântico cita três artigos científicos argumentando que não adianta prescrever hormônios quando os receptores bioquímicos nas células  dos pacientes não estão disponíveis para recebê-los. Então, o palestrante usa o resultado da ciência legítima para argumentar que os terapeutas precisam liberar os receptores prescrevendo ao paciente determinado frequencial floral quântico. Esse floral, quanticamente, vibraria na frequência adequada para liberar os receptores. 

mais sacolinhas

A falha dessa argumentação é que os artigos científicos sugerem onde está o problema do ponto de vista bioquímico, mas não permitem concluir que a melhor solução pra isso é um floral quântico. Apesar disso, a audiência não se mostrou muito preocupada com a incoerência, e vários congressistas tiraram seus celulares e fotografaram o nome do preparado quântico a ser prescrito.

O lado bom

Para manter meu relato fidedigno, é preciso registrar pontos positivos. A começar pelo local do evento: um hotel à beira-mar, em Florianópolis, muito bonito, com piscina e acesso fácil à praia. Auditório com uma estrutura muito bem montada, sistema de som e imagem bastante adequados. Com capacidade para cerca de 260 pessoas, o evento conseguiu deixá-lo praticamente lotado. O credenciamento inicial foi muito tranquilo, sem qualquer intercorrência que eu tenha visto. Todas as recepcionistas muito atenciosas. Além disso, o DJ mandou muito bem nos intervalos entre as palestras.

Os palestrantes também apresentaram suas ideias de forma clara e desenvolta. Conseguiram agradar e cativar o público. Nem tudo que disseram e ensinaram foi cientificamente incorreto. Acredito que como a maioria dos palestrantes teve formação científica na área da saúde, eles conseguiram fazer uma mescla entre afirmações científicas válidas com outras baseadas no uso indevido da física quântica. Conselhos bons sobre nutrição, sobre o cuidado com o lado emocional e psicológico do paciente, além de especulações interessantes sobre o futuro da medicina personalizada, baseada na genômica do paciente, foram pontos altos. 

Boa formação

Não posso reclamar da formação acadêmica dos palestrantes e congressistas: muitos deles, graduados em áreas sérias das ciências, como medicina, nutrição, farmácia e psicologia. Assim, não deixei de me perguntar: o que está acontecendo com a formação científica desses profissionais? Como eles não conseguem perceber que “frequencial quântico” é um uso indevido de termos científicos da física? Como não refletem que evidências baseadas em caso único não são suficientes para comprovar eficácia de tratamentos?    

 Atualmente, a Escola Internacional de Desenvolvimento (EID) oferece um curso de especialização de 462 horas em Terapia Vibracional Quântica. E a Dama dos Quânticos também salientou, durante o Congresso, que estão montando um mestrado acadêmico na área. Ou seja, profissionais que trabalham com terapias vibracionais quânticas estão sendo formados dentro da academia, para tratar da saúde das pessoas. Isso é oficializar e institucionalizar a pseudociência, colocando a vida das pessoas nas mãos de terapias sem comprovação adequada. Não me parece que esse panorama mudará em algum futuro breve.

Conclusão

A impressão mais forte que tive é de que o evento reuniu pessoas que não estão dispostas a pensar criticamente sobre as informações que recebem. Aceitam as citações “profundas” e “místicas” de Chopra, Goswami e Capra como sendo a mais pura tradução do conhecimento científico. Não se questionam sobre a eficácia dos tratamentos apresentados.

No final das contas, colocando tudo na balança, a mensagem final é a de que as evidências apresentadas não são nem um pouco rigorosas e não permitem, nem de longe, concluir que o tratamento quântico é eficaz. Embora existam casos de aparente sucesso, não passam de casos isolados: o fato de uma pessoa ter experimentado uma melhora de saúde depois de uma intervenção não permite supor que a intervenção causou a melhora, porque uma infinidade de outros fatores pode ter influído no resultado. Atribuições de causalidade requerem controles adequados. 

 

Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia

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