Vez ou outra, nos vemos às voltas com o problema da geração de energia elétrica no país. Quando as chuvas não vêm, seja em volume adequado ou nos locais certos, os reservatórios das hidrelétricas atingem níveis mais baixos, mantendo-nos em alerta sobre a possibilidade de racionamento ou apagão, o que frequentemente leva ao acionamento de outras fontes da matriz energética nacional, como as usinas termelétricas.
Para piorar, a sociedade demanda cada vez mais energia elétrica: ar-condicionado em vários cômodos da casa, diversos aparelhos de televisão, computadores, celulares, geladeira, lavadora de roupa com secadora, lavadoras de louça etc. Mesmo com a pressão crescendo – e ações acontecendo – para substituição dos aparelhos atuais por modelos mais eficientes, a demanda energética não parece estar diminuindo.
Não pretendemos, aqui, fazer um apanhado geral sobre todos os caminhos que temos para lidar ou resolver o problema, mas, motivados por uma pergunta de um leitor da Revista Questão de Ciência, vamos explorar uma possibilidade inusitada e curiosa: que tal utilizarmos geradores de energia elétrica à base de antimatéria? Anti-o-quê? Calma!
O que é?
As primeiras ideias de “átomos”, como “tijolinhos” fundamentais da matéria, descreviam-nos como bolinhas rígidas e indivisíveis. Hoje, a Física de Partículas mostra que existe um grande conjunto de partículas elementares, mas, para as finalidades deste artigo, basta lembrarmos que os átomos que formam os objetos ao nosso redor são constituídos por um núcleo, onde estão presentes os prótons e os nêutrons, com elétrons ao redor.
Átomos com diferentes números de prótons em seus núcleos foram batizados com nomes diferentes. Alguns exemplos: o hidrogênio tem 1 próton; o carbono tem 6; o nitrogênio, 7; o flúor tem 9 e o potássio, 19. O número de nêutrons pode variar entre os chamados “isótopos” do mesmo elemento: o carbono-12 tem 6 prótons (por ser “carbono”) e 6 nêutrons (para fechar a soma de “12”); o carbono-14 tem a mesma quantidade de prótons do anterior, mas 2 nêutrons a mais.
Na estrutura de uma borracha, por exemplo, encontramos grande quantidade de carbono e hidrogênio, ambos constituídos por partículas de “matéria comum”, como todos os demais átomos dos objetos à nossa volta. Porém, em 1928, o físico Paul Dirac, a partir de duas soluções possíveis para uma equação, previu que toda partícula de matéria deveria ter uma equivalente em “antimatéria”, a sua “antipartícula”. Em 1932, a primeira antipartícula detectada foi a do elétron: o “antielétron”, portanto (também chamada de “pósitron”).
Basicamente, as antipartículas possuem a mesma massa que as partículas a que correspondem, mas algumas propriedades invertidas, como a carga elétrica, por exemplo. Dessa forma, tudo que você imagina sobre os elétrons, pode também imaginar para os pósitrons, exceto pelo fato de que o primeiro tem carga elétrica negativa e o segundo, positiva. Seguindo o mesmo raciocínio: enquanto um próton tem carga elétrica positiva, o antipróton (que, apenas para deixar claro, não é o elétron), com a mesma massa, tem carga negativa. Assim, uma “antiborracha”, na vida real, seria constituída por “anticarbonos” e “anti-hidrogênios”: antiátomos que, portanto, contêm antiprótons e antinêutrons – que, por sua vez, são eletricamente neutros, da mesma forma que os próprios nêutrons de “matéria comum” – no núcleo, e pósitrons ao redor.
Problema e solução
Um dos fatos curiosos sobre esse tema é que uma partícula e sua respectiva antipartícula não convivem pacificamente no mesmo lugar: quando se encontram, deixam de existir. Esse processo se chama “aniquilação” e libera uma quantidade de energia proporcional à soma das massas das partículas. Aliás, está aí um belo exemplo de situação onde é muito útil aplicar a equação de Einstein da equivalência entre massa e energia (E = m.c2).
Dessa forma, quanto maior for a massa de matéria a encontrar outra massa de antimatéria, mais energia será liberada. Para dar um exemplo: se produzíssemos 1 kg de antimatéria e o aniquilássemos com 1 kg de “matéria comum”, a energia liberada seria suficiente para suprir a demanda do estado de São Paulo por cerca de 2 meses.
É justamente a partir da aniquilação, e da consequente liberação de energia, que surge todo tipo de ideia para tentar solucionar os problemas energéticos do mundo moderno. Mas será mesmo que estamos próximos do dia em que vamos usar antimatéria em geradores devidamente projetados para impulsionar carros e naves interestelares, ou para construir bombas de grande poder destrutivo? Bem, no mundo da ficção, isso já é “realidade”: enquanto, em Anjos e Demônios (2009), uma bomba de antimatéria ameaça o Vaticano, a nave USS Enterprise, em Jornada nas Estrelas (1966-1969), tem seu sistema de propulsão baseado nela.
Se você acha que a produção de “antiátomos” é apenas coisa de ficção científica, está enganado. Acompanhe a linha do tempo: em 1995, os primeiros sinais da produção de anti-hidrogênios, após colisões de partículas, foram detectados; em 2002, foi possível gerar esses antiátomos em estados mais apropriados para permitir explorar suas características; em 2011, após a realização de experimentos para sondar o seu comportamento óptico, constatou-se que ele é equivalente ao apresentado pelo hidrogênio “comum”.
Ou seja, no momento, não temos motivos para desconfiar que um objeto feito de antimatéria seja aparentemente diferente dos que são feitos com “matéria ordinária”: um “antissol” brilharia tal como o nosso Sol; a nossa “antiborracha”, portanto, aparentaria ser uma borracha comum, mas nem pense em segurá-la na mão, pois isso resultaria, literalmente, em um “estouro”.
E, apenas caso você esteja intrigado sobre como se evita a aniquilação precoce nos experimentos com antimatéria, deixo o registro curioso de que eles acontecem sob condições muito boas de vácuo (o que diminui muito, mas não totalmente, a quantidade de átomos atmosféricos, de “matéria comum”, vagando dentro da câmara experimental) e, ainda, as antipartículas são manipuladas e armazenadas a partir da aplicação de campos elétricos e magnéticos, já que a interação delas com qualquer parede sólida, feita de “átomos ordinários”, as destruiriam.
Produção
Atualmente, muitos experimentos que produzem e estudam antimatéria acontecem nas instalações dos chamados “aceleradores de partículas”. Em um dos experimentos do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN), um feixe de prótons, viajando próximo à velocidade da luz, colide contra um alvo metálico. A colisão acaba gerando uma série de pares de partícula e antipartícula: dentre elas, antiprótons, que – quando ejetados com velocidade e direção adequadas – são capturados por um sistema secundário, que os desacelera e os mistura a um conjunto de pósitrons, formando anti-hidrogênios para análises subsequentes.
Mas a antimatéria está mais próxima do que você imagina. Ela pode, inclusive, ajudar a salvar vidas: quando você se submete a uma Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET-Scan), por exemplo, ingere uma substância contendo um átomo radioativo, geralmente flúor-18 ou nitrogênio-13, que vai emitir um antielétron dentro de você. Quando essa partícula encontra um elétron na vizinhança, ambos se aniquilam e liberam energia que é detectada pela máquina, para formar a imagem usada no diagnóstico. Outro elemento radioativo é o potássio-40, presente, por exemplo, na banana e no corpo humano, que também emite pósitrons como um de seus processos naturais de decaimento.
Tecnologia distante
Se já sabemos como fazer antimatéria, e até mesmo conhecemos alguns elementos naturais que a emitem, então podemos começar a planejar a revolução energética mundial? Ainda não. O problema é que toda antimatéria que geramos acaba se aniquilando rapidamente, quando em contato com as partículas de matéria correspondentes. Embora já seja possível armazenar pequenas quantidades de antimatéria por alguns minutos, esse tempo não basta para viabilizar geradores. Não conseguimos, também, estocar antimatéria em quantidade nem sequer próxima da necessária para começar a pensar em aplicações em larga escala.
Não havendo condições de armazenamento, poderíamos projetar algo mais instantâneo: usar a energia da aniquilação “em tempo real”, à medida que as antipartículas fossem produzidas nos aceleradores e encontrassem suas companheiras de matéria comum. Porém, a cada rodada de produção, a massa de antimatéria gerada é da ordem da massa de punhados de átomos, não sendo suficiente para liberar uma quantidade de energia realmente aproveitável.
E que tal encontrarmos algum reservatório natural no Universo que, este sim, diferentemente do que temos aqui na Terra, seja integralmente constituído por antiátomos? Bem, lembre-se de que nós já construímos sondas e veículos espaciais usando “matéria ordinária” e os enviamos a outros planetas e aos confins do Sistema Solar: até agora, não foram aniquilados ao encontrar outros astros e/ou partículas. Nosso Sistema Solar parece mesmo ser feito de “matéria comum”.
De fato, até onde sabemos, todo o Universo também é: estima-se que, nos momentos após o Big Bang, a geração de partículas de “matéria ordinária” superou a de antipartículas apenas por uma pequena diferença – uma partícula de matéria a mais para cada bilhão de pares de partícula e antipartícula –, mas já suficiente para eliminar a possibilidade de encontrarmos reservatórios de antipartículas na constituição de estrelas ou de galáxias distantes (mas, mesmo se fosse esse o caso, esse recurso estaria bem inacessível para uma utilização prática e cotidiana por aqui). Entender o motivo dessa assimetria natural entre matéria e antimatéria persiste como um dos desafios para a Física Moderna.
É por todos esses motivos que, no momento, o processo de aniquilação para gerar energia à sociedade reside apenas na ficção científica. Não há meios conhecidos para produzi-la em larga escala, armazená-la ou encontrá-la em abundância suficiente.
De qualquer modo, outra saída interessante que vem sendo estudada, esta sim bem mais próxima de se tornar realidade, é a implantação de reatores de fusão nuclear – diferentemente dos reatores nucleares já em operação, baseados em fissão –, onde a reação entre átomos mais leves, como deutério e trítio (isótopos do hidrogênio), acaba formando átomos mais pesados, como o hélio, e liberando energia que pode ser aproveitada. As estrelas já fazem isso muito bem. Agora, estamos tentando copiá-las. Porém, enquanto nossos problemas energéticos não são resolvidos, não se esqueça de apagar a luz ao sair da sala.
Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia